Ainda sob impacto da pior crise hídrica em décadas, país mantém altas taxas de desperdício do recurso tratado e problemas de acesso à água. Cientistas climáticos preveem agravamento do cenário.
Por: Nádia Pontes
Às margens do maior rio do mundo, o Amazonas, moradores de Macapá (AP) convivem com a incerteza da água potável na torneira. Interrupções no fornecimento são comuns, o que deixa bairros inteiros sem o serviço por dias, ou à mercê de um abastecimento irregular.
A rede de distribuição ainda chega a poucas casas em todo o estado, com apenas 34% dos domicílios nas cidades atendidos. E a água limpa que se perde no caminho faz do Amapá o campeão em desperdício: 74% do volume que sai das estações de tratamento simplesmente não chegam às torneiras.
O recurso se dissipa em pontos principalmente onde a pressão é mais alta, em tubulações antigas ou mal instaladas, explica Arisvaldo Vieira Mello Junior, professor do Departamento de Engenharia Hidráulica e Ambiental da Universidade de São Paulo (USP).
“Esse tipo de perda tem forte conotação econômica, social e ambiental. As companhias perdem água tratada, e esse prejuízo se reflete na conta dos consumidores”, comenta Mello Junior sobre o panorama nacional.
Em todo o país, a perda média de água tratada sofreu poucas variações ao longo dos anos. Se comparada aos dados de dez anos atrás, a taxa aumentou. Em 2011, 37,2% do recurso foi desperdiçado no trajeto até as residências. Em 2021, esse índice foi de 40,1%, apontam dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), do Ministério do Desenvolvimento Regional.
É como se, por dia, cada uma das 61,7 milhões de casas conectadas ao sistema em todo o país perdessem 343 litros de água para vazamentos. E junto com a água limpa que volta para o solo, vão-se quantias consideráveis investidas no processo de purificação.
“Economicamente há um impacto ao gastar mais recursos com o tratamento de água, sendo que este recurso a mais poderia ser investido, por exemplo, em reparar e substituir pouco a pouco a rede de distribuição de água potável”, comenta Adriana Cuartas, pesquisadora do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden).
Perda sem controle
A realidade sobre as perdas de água e dos serviços prestados pode ser um pouco pior do que mostra o SNIS. As informações que compõem o banco de dados são fornecidas pelas mais de 1.900 prestadoras em todo o país, que o fazem de forma voluntária.
“Como não não existe um método bem acurado para quantificar essas perdas, o que é apresentado é muito provavelmente um valor abaixo da realidade. E esse dado, que não é fornecido de forma obrigatória, também não é fiscalizado por nenhuma agência governamental”, comenta Mello Junior.
O cenário não deixa de mostrar uma “enorme irracionalidade”, analisa Wilson Cabral, especialista em gestão de recursos hídricos e membro do Observatório das Águas. Dentre os principais motivos para as grandes perdas, Cabral nomeia o baixo investimento em manutenção e renovação dos sistemas de distribuição, e redução programada da capacidade técnica de diversos municípios e estados para lidar com os serviços de saneamento básico.
“Uma possibilidade [que poderia contribuir para mudanças] é o estabelecimento de metas de uso eficiente e redução de perdas de água para renovações e concessões de outorgas para uso da água. Atualmente, as outorgas apenas consideram a disponibilidade atual na bacia e os outros usos, mas não estão condicionadas a metas de uso eficiente”, sugere Cabral.
Questionado pela DW sobre os dados, o Ministério de Desenvolvimento Regional não respondeu até o fechamento desta reportagem.
Crescente falta de água
Somada ao desperdício, a escassez do recurso nas bacias hidrográficas agrava o panorama. A pior crise hídrica desde 1961, para qual alarmes foram soados em 2021, ainda não acabou, segundo Adriana Cuartas. A região Sul e parte da Sudeste continuam sentindo os impactos da seca, pontua a pesquisadora.
“Em algumas regiões do país, a situação da disponibilidade hídrica é pior hoje que no passado recente, o que nos coloca numa situação preocupante para os próximos meses. O período chuvoso termina sem que tenha havido uma reposição razoável dos reservatórios”, adiciona Wilson Cabral.
Com o fim do verão e, portanto, da estação chuvosa, a preocupação aumenta. Modelos climáticos feitos por cientistas apontam que a situação de crise tende a se repetir com mais frequência nas próximas décadas.
“O futuro nos reserva vários anos de dificuldades em relação à oferta de água para os diversos fins: abastecimento doméstico, agricultura, geração hidrelétrica, saneamento e para a própria manutenção dos ecossistemas”, ressalta Cabral.
Outro ponto preocupante é a poluição: menos água nos rios e reservatórios leva ao aumento da concentração de poluentes. Neste ciclo, água mais poluída custa mais para ser tratada.
“Quanto menor a disponibilidade de água com qualidade boa, mais ela precisa de tratamento, mais caro fica o tratamento, e, no fim, fica mais cara a conta de água, porque as empresas repassam isso para os consumidores”, comenta Gustavo Veronesi, coordenador do programa Observando os Rios na SOS Mata Atlântica, sobre outro fator que influencia a cobrança do serviço.
Litros contados
Com um índice de perda de água de 32%, menor que a média nacional, Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, cobra mais pelo fornecimento do recurso que a média brasileira (R$ 5,01 contra R$ 4,55 por metro cúbico, respectivamente).
É lá que vive Denise Marques Rossalas, moradora da comunidade Vila Pedreira, marcada pela dificuldade de acesso ao recurso natural. A situação fez com que ela aprendesse a viver contando os litros de água.
“Antes eu tinha garrafas PET e garrafa de refrigerante. Enchia todas elas e colocava à minha disposição”, diz sobre a falta constante de água no bairro.
Desde que recebeu em casa uma caixa de 500 litros, beneficiada por um projeto de segurança hídrica da organização Engenheiros Sem Fronteiras, Rossalas se programa para fazer uso racional do recurso, que dura até dois dias segundo o cotidiano da família.
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