Após anos de relações exteriores discretas, López Obrador se aproxima da América Central, propõe saídas à crise migratória e desafia os EUA, ao recusar convite para Cúpula das Américas. O que isso impacta na geopolítica latino-americana?
Por: Rodrigo Guillot | Tradução: Pedro Marin
Em 2010, o ex-presidente de Cuba, Fidel Castro, disse: “López Obrador será a pessoa com maior autoridade moral e política no México quando o sistema entrar em colapso e, com ele, o império”.
Ele se referia a Andrés Manuel López Obrador (conhecido como AMLO), o atual presidente do México e chefe do partido político Morena (Movimento de Regeneração Nacional).
Apesar da ampla vantagem que tinha em todas as pesquisas antes das eleições, a vitória de López Obrador em 2018 pegou quase todos de surpresa. Até os militantes Morena ficaram em dúvida por alguns dias, já que a dinâmica da fraude eleitoral na política mexicana fazia com que a derrota parecesse inevitável.
Poucos de nós sabiam o que esperar do novo governo do México, já que AMLO é o primeiro presidente de esquerda na história política moderna de nosso país. Os dois primeiros anos de seu mandato foram marcados pela ausência de qualquer política externa concreta, pelo menos publicamente. A teoria de que a melhor política externa é a política interna levou o presidente López Obrador a concentrar seus esforços na tentativa de resolver os maiores problemas enfrentados pelo povo mexicano, bem como lidar com a agressiva política anti-imigração do ex-presidente dos EUA, Donald Trump, que foi principalmente dirigida contra a população migrante mexicana que entra nos Estados Unidos, bem como contra aquela parcela que já se encontrava no país.
A Quarta Transformação
A única iniciativa digna de nota da diplomacia pública mexicana empreendida por López Obrador durante os primeiros três anos de seu mandato de seis anos foi defender o Plano de Desenvolvimento Integral para a América Central. Este plano foi desenvolvido por El Salvador, Guatemala, Honduras, México e pela Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina e o Caribe (CEPAL). O governo do presidente López Obrador começou a trabalhar no plano desde o dia em que assumiu o cargo. A iniciativa abordava dois temas: os ataques enfrentados pelos migrantes da América Central nos Estados Unidos e as reais necessidades das pessoas que são obrigadas a migrar para outros países da região. As causas estruturais da migração – pobreza, desigualdade e insegurança – enquadraram a discussão dos atores que trabalharam na finalização da iniciativa. O plano desafiou a doutrina de segurança de fronteira dos EUA, que trata os problemas socioeconômicos como problemas militares.
O triunfo do Morena em um dos maiores países da América Latina abriu um ciclo de esperança entre as forças progressistas da região; líderes e intelectuais latino-americanos falaram do México como o epicentro da nova onda progressista no hemisfério. Mas o triunfo do Morena foi enfrentado por três complexidades. Primeiro, as dificuldades enfrentadas por López Obrador ao tentar lançar as bases para o desenvolvimento nacional e enfrentar as gritantes desigualdades no país (10% dos mexicanos detêm 79% de sua riqueza); isso incluiu um projeto nacional para acabar com a desigualdade e a discriminação, que seria financiado pela revitalização da indústria do petróleo, a nacionalização do lítio e a implementação de várias obras de infraestrutura.
Segundo, porque a pandemia acelerou o processo da crise neoliberal em nível global, inclusive no México, López Obrador falou sobre a necessidade de “acabar” com o neoliberalismo no país até 2022. Terceiro, houve uma renovada agressão dos Estados Unidos por meio de suas campanhas de bloqueios e sanções contra vários países latino-americanos, incluindo Cuba, Nicarágua e Venezuela. A quarta transformação de López Obrador (4T), que é o nome de seu projeto político – referindo-se “a um momento de mudança no sistema político” – gerou disputas com o governo dos EUA e instituições controladas pelos EUA (incluindo a Organização dos Estados Americanos). Foi isso que gradualmente atraiu o governo do México para um papel mais proeminente nas Américas.
A diplomacia pública de López Obrador
O aumento da atividade de López Obrador na diplomacia internacional tem sido gradual e bem calculado. O presidente gradualmente introduziu alguns desses assuntos de política externa na arena do debate político nacional antes de testar as águas da região com eles. Todas as manhãs ele participa de uma coletiva de imprensa, onde muitas dessas ideias são apresentadas pela primeira vez. O compromisso de López Obrador com a construção de uma revolução da consciência dos mexicanos transformou a diplomacia mexicana em um fenômeno público.
Antes de López Obrador, os assuntos de política externa eram discutidos a portas fechadas. Agora, López Obrador usa sua entrevista coletiva para apresentar ao público as razões históricas e políticas da posição do México sobre, por exemplo, o bloqueio dos EUA a Cuba e sua guerra econômica contra a Venezuela, a violenta política anti-imigração dos Estados Unidos e a guerra entre a Rússia e a Ucrânia. Porque López Obrador tentou explicar as razões das decisões diplomáticas tomadas pelo México em vários assuntos globais, ajudou a construir um consenso entre grandes setores da população para essas decisões, incluindo a mais recente decisão tomada por ele de não participar da Cúpula das Américas.
Cúpula das Américas
O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, anunciou em janeiro que os Estados Unidos e a Organização dos Estados Americanos (OEA) sediariam a Cúpula das Américas em Los Angeles, de 6 a 10 de junho. López Obrador fez uma viagem percorrendo a América Central e o Caribe, terminando Cuba, antes da cúpula. Durante a turnê, López Obrador desenvolveu a posição do México sobre a cúpula. Esse ponto de vista também ficou evidente anteriormente, quando o México sediou a cúpula da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) em setembro de 2021, na qual Cuba, Nicarágua e Venezuela puderam participar – ao contrário da Cúpula das Américas, onde esses países foram proibidos de participar do evento. Naquela cúpula de 2021, López Obrador propôs fechar a OEA e substituí-la por “um bloco como a União Europeia”, como a CELAC.
Antes do início da Cúpula das Américas, o presidente mexicano anunciou que o México não compareceria devido a dois princípios da política externa mexicana: primeiro, a decisão dos Estados Unidos de não convidar Cuba, Nicarágua e Venezuela violou o princípio de não intervenção nos assuntos internos de outros países. Em segundo lugar, o princípio da igualdade jurídica de todos os países deve permitir que todas as pessoas sejam representadas em nível internacional por meio de seus governos. A decisão de López Obrador de se retirar da cúpula surpreendeu tanto Washington quanto as capitais latino-americanas; sua decisão foi seguida tanto pela Bolívia quanto por Honduras, e apoiada por países como a Argentina.
Biden, o secretário de Estado dos EUA Antony Blinken e o embaixador dos EUA no México, Ken Salazar, por sua vez, tentaram negociar para garantir a presença do presidente mexicano na cúpula, mas sem sucesso. A hegemonia da OEA começou a declinar após a cúpula da CELAC em 2021, mas parece ter chegado ao fim com esses últimos desenvolvimentos durante a Cúpula das Américas em Los Angeles.
Mas o resultado mais importante da cúpula foi a reação dos diferentes líderes latino-americanos que aderiram à demonstração de dignidade do México e mostraram a força do poder popular, assumindo posições de apoio a uma nova forma de organização regional, que não requer o apoio dos Estados Unidos. O clima geral na América Latina é que os EUA não devem perder seu tempo interferindo ao sul de sua fronteira, mas devem, em vez disso, gastar sua energia tentando resolver suas crises internas em cascata.
Veja em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/mexico-uma-nova-e-altiva-diplomacia-em-construcao/
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