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O CAMINHO DO OURO

Nova refinaria de ouro da Amazônia tem como sócio condenado por lavagem de dinheiro na Bélgica

Por: Hyury Potter

OBrasil terá em breve, no meio da Amazônia, a maior refinaria de ouro do país. Para o governo do Pará, é um passo estratégico para organizar a economia do estado, assolado pelo desmatamento e pela mineração ilegal. Os anúncios, no entanto, escondem quem está por trás da North Star Refinaria: Sylvain Goetz, integrante de uma família dona de um império de minérios preciosos.

A família Goetz enriqueceu por meio de uma empresa que leva o nome do seu patriarca, Tony Goetz, que faleceu em 2005. Em 2020, a justiça belga condenou Alain e Sylvain, filhos de Tony, por lavagem de dinheiro e fraude ao criar um mercado clandestino de ouro. Sylvain é investidor da nova refinaria do Pará, como mostram documentos da Junta Comercial do Pará obtidos pelo Intercept.

A direção da North Star afirma ter investido R$ 55 milhões no prédio de três andares localizado entre a baía do Guajará e a avenida Artur Bernardes, no bairro industrial do Tapanã, na capital paraense. É nesse local que cerca de 120 trabalhadores vão refinar o metal precioso que tem controle frágil no Brasil.

Considerando que o Brasil exporta anualmente mais ouro do que produz, é razoável supor que o ouro refinado no Pará deve ser comprado por multinacionais. Somente nos últimos dois anos, o produto dos Goetz foi parar em componentes eletrônicos da TeslaAmazonDellJohnson & Johnson e da HP, e até cafeteiras da Starbucks.

O sobrenome Goetz aparece no balanço patrimonial da North Star Refinaria, para qual Sylvain fez um adiantamento de R$ 683 mil em 2020. Em assembleia realizada em 12 de novembro do ano passado, Sylvain passou a ser acionista de 24,78% da refinaria, mostra o documento, percentual referente a um investimento de R$ 4,6 milhões que fez na empresa.

No balanço protocolado na Junta Comercial do Pará, além de Goetz, entraram como investidores duas empresas estrangeiras: a North Coast Commodity Advisory & Investment Company LLC, grupo sediado nas Bahamas, com 69,63% de ações; e a Maison Prime Holdings LTDA, de Dubai, com 14,06%. A Omex Comércio e Exportação de Metais Preciosos S.A, do ex-prefeito de Itaituba Roselito Soares da Silva, era a única investidora da refinaria até a mudança proposta em agosto. Os sócios de todas essas empresas mantêm ou mantiveram ligações com o belga.

Apesar dessas conexões, os comunicados do governo paraense sobre o negócio não mencionaram em momento algum o nome de Sylvain Goetz e outros investidores – e o governo não responde sobre isso nem mesmo após perguntas da imprensa.

É um mega empreendimento. A North Star vai refinar metade da produção nacional quando atingir sua capacidade total – 24 toneladas de ouro por ano no início, podendo chegar a 48 toneladas.

As obras estão em fase de finalização. O lucro estimado para o primeiro ano de atividade é de R$ 7,2 bilhões – um número brutal que levou em conta a quantidade de toneladas de ouro a serem refinadas no local.

Uma refinaria é o local em que o ouro passa por processos de purificação e fundição. Para uso em joias, o metal precisa ter entre 70% e 80% de pureza. Para se transformar em ativo financeiro, é necessário chegar a 99,99%. É assim que o ouro da família Goetz vai parar em relatórios de compras de empresas do mundo todo. Esse processo também dificulta o rastreamento da origem do minério: quando ainda está “sujo”, o ouro apresenta outros metais em sua composição, o que auxilia peritos judiciais a identificar a sua origem (se veio de um garimpo ilegal, por exemplo).

“Há o ouro que sai da grande mineradora e o ouro que sai do garimpo, eles têm um caminho diferente, mas a refinadora está nos dois mundos”, explica Larissa Rodrigues, gerente de portfólio do Instituto Escolhas, que colaborou na construção de um projeto de lei que pretende melhorar a fiscalização do ouro produzido no país.

A North Star deverá alimentar o polo joalheiro de Belém, diz o governo paraense. Mas, pelo volume de sua produção, tudo indica que o destino do minério é mesmo o mercado internacional, coração dos negócios dos Goetz.

Decisão menciona esquema para burlar regras e ocultar a origem do ouro.

O império dos Goetz começou em 1984, quando Tony, um rico comerciante de diamantes, criou a empresa. Sylvain, seu irmão mais novo, Alain Goetz, e Sandra Weyler, esposa de Alain, formavam o conselho de diretores da Tony Goetz NV até outubro de 2018, segundo as declarações financeiras anuais da empresa na Bélgica.

Na condenação de 2020, a justiça belga decidiu que a empresa é responsável pela movimentação de mais de um bilhão de euros (aproximadamente R$ 6,3 bilhões) com compras à vista de ouro em 2010 e 2011 que configurava crimes de fraude e lavagem de dinheiro. Seis meses após a condenação, a empresa mudou de nome para Industrial Refining Company, tendo apenas Sylvain Goetz como presidente e membro da diretoria.

De acordo com a decisão, eles criaram um esquema fraudulento para burlar as regras fiscais daquele país e ocultar a origem do ouro negociado. Os irmãos e a empresa tiveram 3,2 milhões de euros confiscados. Além disso, a sentença estabeleceu multas que somam 110 mil euros, 18 meses de prisão e cinco anos afastados de negócios com ouro no país. No entanto, essas últimas penas foram suspensas e só seriam aplicadas em caso de reincidência. Os irmãos e a empresa não recorreram da decisão, segundo o porta-voz do Tribunal de Justiça da Antuérpia.

O enrosco, no entanto, não parece ter atrapalhado os negócios. Em dezembro do ano passado, o jornal belga De Morgen publicou uma reportagem mostrando como a família Goetz continuou refinando ouro – mas, desta vez, por meio do filho de Sylvain, Sam Goetz, dono da refinaria Value Trading. A reportagem narra que as empresas de pai, tio e filho se confundem. A Tony Goetz NV passou a se chamar Industrial Refining Company, mas em seu número de telefone quem atende são funcionários da Value Trading. Ao De Morgen, Sam Goetz negou qualquer ligação da sua empresa com a do pai.

A situação da família Goetz pode se complicar ainda mais no próprio país. Após ser questionada por um deputado sobre possíveis sanções às empresas de Alain Goetz, em uma sessão do Congresso realizada em 28 de setembro do ano passado, a ministra das Relações Exteriores da Bélgica, Sophie Wilmès, disse que sua gestão entregou em fevereiro de 2019 uma denúncia formal contra Goetz à justiça belga. Também afirmou que o Ministério Público Federal do país abriu “diversos processos, ainda em andamento e cobertos por sigilo judicial”.

Os jornalistas Kristof Clerix (Knack), Jelter Meers (Pulitzer Center) e Andy Lehren (NBC News), e a organização sem fins lucrativos C4ADS, colaboraram com esta investigação.

A reportagem conta com o apoio da Rainforest Investigations Network, do Pulitzer Center. Saiba mais.

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Vista aérea da refinaria em janeiro de 2022. Apesar do investimento, Goetz afirma que nunca esteve no local. Foto: Anderson Coelho para o Intercept Brasil

‘A lavanderia dourada’

Afamília Goetz também está na mira da Organização das Nações Unidas, a ONU. Segundo a ministra Wilmès, o Comitê de Sanções do Conselho de Segurança da organização está discutindo confidencialmente os negócios dos belgas na República Democrática do Congo. Entre 2014 e 2018, integrantes da família Goetz tiveram participação societária, de forma direta ou indireta, em uma refinaria em Uganda, a African Gold Refinery, conhecida como AGR.

A Tony Goetz NV foi a principal acionista da refinaria no primeiro ano de funcionamento, mas depois o negócio ficou relacionado apenas ao nome de Alain Goetz. É isso que mostra o relatório “A lavanderia dourada”, de 2018, da ONG investigativa The Sentry, que detalha ainda como Alain Goetz utilizava 15 empresas que ele administrava com o irmão Sylvain em países como Bélgica, Uganda, Luxemburgo e Emirados Árabes Unidos para ocultar a origem do ouro refinado na AGR.

Segundo a investigação, a maior parte do ouro vinha de garimpos ilegais localizados em áreas de conflito armado na República Democrática do Congo. Citando entrevistas com garimpeiros e comerciantes, o relatório conclui que os negócios da família Goetz financiaram grupos armados na RDC.

Em relatórios minerais expostos na Comissão de Valores dos EUA, a SEC, a Tony Goetz NV aparece como fornecedora de ouro para 283 grandes empresas.

A investigação do The Sentry apontou ainda que 103 empresas na bolsa americana declararam ter comprado ouro da refinaria AGR em 2017.

Os negócios dos Goetz em Uganda e na RDC e a cadeia de fornecimento que faz o ouro parar em grandes empresas dos EUA acenderam o alerta para três senadores norte-americanos. Em abril do ano passado, os democratas Cory Booker, Benjamin Cardin e Richard Durbin enviaram uma carta à secretária do Tesouro dos EUA, Janet Yellen, pedindo sanções contra a rede de refinarias relacionadas à Alain Goetz, apontada como “a mais influente no comércio de ouro de origem de conflito” — termo utilizado para informar sobre a possibilidade do minério ter sido extraído de forma ilegal ou comprado de grupos criminosos. A carta dos senadores cita ainda que os Goetz teriam lavado 300 milhões de dólares da Venezuela em ouro.

Dois meses depois, o Departamento do Tesouro dos EUA respondeu em carta endereçada aos três senadores que “não poderia comentar investigações possíveis ou pendentes”, mas afirmou que está “analisando os relatórios de grupos de especialistas da Organização das Nações Unidas e do The Sentry”.

Uma reportagem do jornal Miami Herald, publicada em 2019, utiliza dados obtidos pelo grupo investigativo venezuelano Runrun.es, que, após analisar dados de exportações da Venezuela, apontou que 21 toneladas de ouro daquele país foram compradas pela empresa Goetz Gold LLC, com sede em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, que tem Alain Goetz como sócio. Segundo a investigação, a venda de ouro para refino em outros países seria uma forma do governo de Nicolás Maduro de driblar sanções impostas para a entrada em solo norte-americano do metal extraído na Venezuela.

Há um ano, o máximo que o governo paraense informou sobre os investidores é que a refinaria tem “capital belga”. Em julho do ano passado, tentei em duas oportunidades, ambas por e-mail, saber do governo Helder Barbalho quem eram os investidores belgas. Não tive resposta.

Em novembro, o jornalista belga Kristof Clerix, da revista semanal Knack, colaborador desta reportagem, também enviou questionamentos por e-mail ao governo do Pará sobre o misterioso “capital belga”. Silêncio mais uma vez.

Sylvain Goetz
Sylvain, filho de Tony Goetz: herdeiro de uma das famílias mais ricas da Bélgica. Foto: Divulgação/De Rijkste Belgen

A teia de investidores

Àprimeira vista, Sylvain Goetz e seus 24,07% da North Star sugerem que ele é um sócio minoritário, mas a relação do belga com os outros acionistas indica uma influência bem maior do que esse número. Os representantes das duas empresas estrangeiras que somam quase 75% das ações da North Star são ex-funcionários ou ex-representantes de empresas da família Goetz.

Serge Keyser, representante da Maison Prime, de Dubai, um luxuoso paraíso fiscal, diz em seu currículo em uma rede social que trabalhou na refinaria AGR, da família Goetz, entre 2014 e 2017. A empresa detém 14,06% da refinaria paraense.

Já a North Coast, empresa baseada nas Bahamas, outro paraíso fiscal e maior acionista da refinaria de Belém, é representada pelo empresário surinamês Conrad Issa. Em 2018, quando um projeto similar de construção de refinaria foi apresentado pelo então governador do Pará Simão Jatene, Issa chegou a dar entrevista como representante da Tony Goetz NV.

Comerciante do setor têxtil em Paramaribo, capital do Suriname, e também presidente da Federação Surinamesa de Basquete, Issa atua no mercado de exportação de ouro há mais de 10 anos no país vizinho. Sua empresa, Amazone Gold NV, divide com uma empresa estatal os únicos registros de exportação de ouro no Suriname.

A última investidora da refinaria paraense é a Omex Comércio e Exportação de Metais Preciosos SA. A empresa, que tem como sócios Roselito Soares da Silva, ex-prefeito de Itaituba, e o presidente da North Star, Mauricio Gaioti da Silva, era investidora única da refinaria no seu anúncio – mas, com a entrada dos novos sócios estrangeiros, passou a ter apenas 0,54% das ações.

Há, no entanto, um detalhe nos documentos que indica que a fatia do ex-prefeito pode ser maior. Em maio de 2019, Roselito Soares registrou no Brasil uma empresa com o mesmo nome da Maison Prime, mas de CNPJ diferente do que aparece no balanço patrimonial da North Star. Além do nome, as duas empresas compartilham o mesmo endereço comercial em um prédio chique em Dubai.

Roselito foi prefeito de Itaituba de 2004 a 2010, quando teve o mandato cassado pelo Tribunal Regional Eleitoral do Pará por compra de votos com distribuição de cestas básicas na eleição de 2008. Ainda em 2010, ele tentou pleitear uma vaga de deputado estadual, mas teve a candidatura impugnada por causa da Lei da Ficha Limpa.

 

Saiba mais em: https://theintercept.com/2022/02/16/nova-refinaria-de-ouro-da-amazonia-tem-como-socio-condenado-por-lavagem-de-dinheiro-na-belgica/

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