A COP27 termina com uma promessa de perdas e danos e com um abismo silencioso quando o assunto é abolir combustíveis fósseis. Com o fim da conferência, a tarefa agora é nossa.
Por: Gabriel Aguiar | Créditos da foto: Christophe Gateau/dpa (Photo by Christophe Gateau/picture alliance via Getty Images)/Getty Images. Lula participa da COP27 nesta quarta-feira, no Egito
Encerra-se a COP e começa a Copa. O que temos pela frente?
A promessa de um fundo multibilionário a ser pago pelos países ricos aos países especialmente prejudicados pelas mudanças climáticas foi sem dúvidas a maior, talvez única, conquista desta edição da Conferência das Partes sediada no Egito. O compromisso de não ultrapassar o aumento de 1,5 graus foi mantido, ao menos formalmente, mas a ausência de uma menção explícita sobre abandonar os combustíveis fósseis preserva o silêncio ensurdecedor sobre o tema no novo relatório da COP27.
A COP, que havia se iniciado sob a sombra da greve de fome do preso político Alaa Abdel-Fattah e com manifestações duramente vigiadas, termina com um sentimento geral de que ainda estamos apenas enxugando gelo. Não houve compromisso definitivo de interromper a catástrofe em curso. Uma delegação recorde de lobistas de combustíveis fósseis conseguiu mais uma vez impedir o compromisso com a eliminação do uso de petróleo, gás e carvão
Trinta anos já se passaram do primeiro encontro das partes, e de lá para cá as emissões globais dobraram. Nossos avanços têm sido, mais que qualquer outra coisa, semânticos. A linguagem dos relatórios ao menos expressa, de maneira cada vez mais contundente, a gravidade da situação. Na terminologia, passamos de “mudança climática” para crise, emergência e, nessa última, “inferno climático”. A escala das palavras têm se aproximado da magnitude do problema; a escala das ações, nem tanto.
O Brasil na COP
Na contramão, que reduziu 7% das emissões de gases estufa em 2020, o Brasil aumentou 9,5%, sobretudo por conta do descontrole no desmatamento, efeito direto da política de “passar a boiada” do governo Bolsonaro. O pesadelo de um governo federal aliado fiel dos mais predatórios setores do capital está, felizmente, chegando ao fim. Experimentamos agora não apenas uma transição de governo; no que diz respeito à agenda climática e ambiental, estamos saindo de um polo a outro diametralmente oposto. Isso foi um evento à parte na COP27.
A chegada de Lula ao som de ‘’o Brasil voltou’’, bem como seu exuberante discurso de enfrentamento à emergência e firme defesa da justiça climática, marcaram o que deve ser um reposicionamento do Brasil no tabuleiro geopolítico. E não só nesta pauta. Mas quais são as perspectivas? Como o quinto maior emissor do mundo, seremos capazes de virar o jogo domesticamente e nos tornarmos um exemplo global? Conseguirá o Brasil, sob nova administração, oferecer aos povos do mundo um exemplo de vanguarda na articulação entre questão social e crise ecológica? A promessa de Lula é de acabar com a fome, gerar emprego, e ao mesmo tempo alcançar o desmatamento zero e realizar a transição energética. Uma aposta ousada. Seremos capazes de assumir a liderança internacional em justiça climática e transição justa? Temos tudo para isso.
O governo da extrema-direita deixa um legado de terra arrasada. A destruição sistemática dos órgãos de fiscalização e controle, assim como a hipertrofia da representação reacionária no parlamento, nos impõe sérios desafios. O quadro geral de desmonte da Política Nacional do Meio Ambiente, a lacuna de informações, a pressão do agronegócio e o desafio de implementar um governo de conciliação com um congresso tomado por uma direita fanatizada e por um centrão economicamente vinculado a setores com interesses materiais na expansão da fronteira agrícola e emissão de carbono sem freios, nos deixa com um desafio em mãos nada trivial. Caberá à sociedade organizada a tarefa de pesar a balança para a execução de um programa forte de transição ecológica. Todo o problema é que ainda não sabemos muito bem como fazer isso.
A raiz do dilema é que precisamos ser capazes de disputar as maiorias sociais. Enquanto a questão ambiental e agenda climática for vista como uma preocupação de nicho, seja de minorias vulneráveis ou elites ilustradas, será muito difícil avançar politicamente no ritmo necessário. A preocupação com os eventos extremos climáticos por si só não se mostrou até hoje suficiente para mobilizar a população em torno de uma agenda de enfrentamento ao aquecimento global. Não basta mais do mesmo. Precisamos de um método concreto de envolvimento e mobilização da classe trabalhadora, a vasta maioria das pessoas comuns, para construir entendimentos, bandeiras e poder concreto de ação capaz de incidir efetivamente sobre os grandes números das emissões de carbono, taxas de desmatamento e temperatura média do globo. Um método capaz de aderir à pauta ecológica um apelo massas, uma vocação majoritária. Para isso será necessário conectar o problema do fim do mundo com o problema do fim do mês, oferecendo soluções concretas, para hoje, que enfrentem a crise ecológica aumentando o bem-estar social. O Brasil pode ser o grande laboratório disso. Como argumentei em um artigo anterior, para a edição imprensa da Jacobin Brasil dedicada à Amazônia e a questão ambiental, o que precisamos é de um ambientalismo popular:
“Um ambientalismo popular vibrante e ousado pretende não apenas preservar a natureza, mas impulsionar a esperança e ampliar politicamente o horizonte de expectativas coletivo. O Brasil pode deixar de ser um pária, como é hoje sob Bolsonaro, para ser um modelo e uma inspiração global. Podemos não apenas vencer a crise climática, mas construir um mundo melhor no processo. Com suas vastas florestas e sua classe trabalhadora politicamente experimentada, o Brasil é o lugar privilegiado onde isso pode acontecer. As fichas estão todas nas nossas mãos. Um Brasil líder em agricultura de baixo carbono, pólo mundial em pesquisa em bioeconomia e energias renováveis, vanguarda nos investimentos públicos para uma nova indústria ecológica, aliando combate à pobreza e desigualdade com descarbonização acelerada, tem tudo para ser um farol da humanidade, atraindo olhares de admiração e apoio de todos os povos do mundo.”
No seu discurso no Egito, Lula ofereceu o Brasil para sediar a COP 30 em 2025. Reafirmou seu compromisso com o desmatamento zero e prometeu que o Brasil está pronto para se juntar aos esforços para a construção “de um planeta mais saudável e de um mundo mais justo”. Que em 2025 já possamos mostrar ao mundo que fizemos nosso dever de caso, provando na prática que outro tipo de desenvolvimento é possível.
Por uma ecologia dos 99%
Aluta pela Mãe Terra é hoje a mãe de todas as lutas. Conectando as demandas por justiça de uma diversidade de atores sociais, já em movimento, é possível articular uma maioria social com poder suficiente para fazer frente aos que lucram com a devastação ambiental. Movimentos socioambientais, sindicatos, ONGs, instituições de pesquisa e ensino, organizações de povos indígenas, partidos políticos, parlamentares e executivos – em uma grande coalizão, diversa, mas coordenada, com um sentido de propósito histórico.
Bandeiras como redução das contas de energia, redução do preço dos alimentos, passe-livre e melhorias no transporte público, geração habitacional sustentável, transformação ecológica das cidades, justiça climática para povos e comunidades vulnerabilizados, pleno emprego com a geração de postos de trabalho verdes, demarcação de terras indígenas, taxação da poluição e de grandes fortunas, incentivos fiscais para menores pegadas de carbono, são o tipo de propostas que podem ‘’cair na graça’’ da maioria da população. Implementadas em larga escala, sob a coordenação de um poder público democrático, têm potencial real de fazer a diferença nos balanços dos próximos relatórios do IPCC.
Por onde começar? Não temos tempo a perder. A urgência da tarefa demanda uma ação organizada de diálogo entre as diversas entidades para costurar entendimentos e compromissos objetivos. Cada segmento da sociedade organizada terá um grau de envolvimento diferente com cada proposta dessa agenda, de acordo com as lutas que já vem travando. É importante que cada grupo se comprometa com as pautas com as quais já sentem um pertencimento, com as demandas que a categoria já levanta.
Mas apenas boas ideias não bastam sem a capacidade de acumular poder. O caminho passa pela mobilização massiva, a agitação criativa: campanhas públicas de defesa dos vários elementos dessa agenda, explorando as diversas linguagens artísticas e culturais; atos de rua e de rede com a cara do ambientalismo popular; envolver catadores, lideranças comunitárias, movimentos de bairro e sindicatos de trabalhadores; promover eventos, congressos e grupos de trabalho para desenharmos, coletivamente, com o que há de melhor da intelectualidade engajada, propostas concretas para fechar as contas e atingir as metas de redução de emissões.
Assim, prepararemos o futuro. Poderemos enfim sair da paralisia do assombro de estarmos condenados a viver em “inferno climático’’. É o único caminho: salvar a nossa casa comum, e a nós mesmos, em um ato de coletividade, comunhão e ação. A hora é agora. Não podemos nos dar ao luxo de esperar que, nas próximas COPs, uma solução caia em nosso colo. Greta Thunberg tem razão: nossa casa está em chamas. E tem mais razão ainda ao reconhecer agora que esse incêndio faz parte de uma crise muito maior, que tem suas raízes em um extrativismo opressivo que explora a maioria para maximizar os lucros de curto-prazo de uns poucos. Isso a COP não é, e nunca será, capaz de enfrentar. Mas a ação coletiva dos de baixo, sim. Ao apagar esse incêndio, podemos construir um mundo melhor: erguer novas casas, plantar alimentos saudáveis, recuperar áreas degradadas e gerar emprego, renda e qualidade de vida para todos. Talvez a melhor notícia que tenha saído dessa COP seja a de que agora o Brasil está disposto a apontar um caminho. É uma oportunidade que não podemos deixar passar.
Veja em: https://jacobin.com.br/2022/11/o-que-fazer-depois-da-cop/
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