Mostra em Berlim examina “sentimento alemão” a partir de uma figura controversa. O músico e dramaturgo do século 19 incorporou o melhor e o mais assustador da nação alemã.
Por: Elizabeth Grenier / Augusto Valente
Numa sociedade contemporânea que “cancela” tão sumariamente figuras públicas, com base em um comentário ou ação infeliz, a persistente popularidade de Richard Wagner (1813-1883) é parte de sua atração para os estudiosos. Afinal, o compositor, dramaturgo e ensaísta era notoriamente antissemita: tanto seus escritos quanto sua música seriam mais tarde venerados por Adolf Hitler e outros nazistas.
“Para o bem e para o mal, Wagner é a figura mais influente da história da música”, escreve o crítico musical americano Alex Ross em seu livro Wagnerism: Arts and politics in the shadow of music (Wagnerismo: Arte e política à sombra da música), em que ele mergulha no multifacetado legado do músico.
Essa influência tentacular, entretanto, não chegou só postumamente. Ainda em vida, Wagner soube captar o espírito da época e se tornou o “inventor do assim chamado mito da modernidade”, nas palavras de Michael P. Steinberg, curador da nova exposição do Museu Histórico Alemão (DHM) de Berlim: Richard Wagner e o sentimento alemão.
Segundo o historiador da música nascido nos Estados Unidos, o título é para ser compreendido em dois níveis: o primeiro é o compositor ter ensinado seu público a “sentir”, através de suas obras musicais; e o segundo é também ter lhe mostrado como “se sentir alemão” ao afirmar que “a única música verdadeira é alemã”.
Steinberg frisa que se ocupar de Wagner hoje, seja como fã da ópera ou historiador, significa reconhecer seu gênio criativo e, ao mesmo tempo, examinar e criticar sua ideologia. Com isso em mente, o curador destacou quatro sentimentos centrais à obra e vida do compositor, que também refletiam as questões políticas e sociais de seu tempo.
Alienação gera revolta
O primeiro sentimento, “Alienação” (Entfremdung), se refere à atitude que o jovem músico desenvolveu durante seus três anos de estada em Paris, de 1839 a 1842. Lá ele decidiu rejeitar as tradições da ópera francesa e italiana, concentrando-se na formação de uma nova tradição operística alemã.
Na sociedade europeia das décadas de 1830 e 1840, pairava uma insatisfação com as estruturas de poder vigentes, o que se manifestou numa série de levantes e revoluções. Embora os dramas musicais wagnerianos se situem num passado mítico e distante, as obras produzidas antes de 1848 “podem ser compreendidas como uma expressão da temperamentalidade revolucionária atual”, como consta da mostra no DHM.
Por exemplo: os protagonistas de O Navio-Fantasma e Lohengrin (estreadas em 1843 e 1848, respectivamente) são párias errantes, tentando escapar da tacanhice da sociedade. Outro indicador da coincidência entre as tramas teatrais wagnerianas e o pulso social da era é o Levante de Maio de Dresden, em 1849, cujos participantes almejavam revolucionar as condições reinantes na sociedade.
Também artistas dos setores da música e teatro contribuíram para a concretização dessa mudança, entre eles o próprio Wagner. Para escapar de ser preso, ele buscou o exílio na Suíça, onde escreveu diversos ensaios em que definiu seus ideais artísticos, além de criar as obras que sedimentariam sua fama internacional.
Pertencimento, definição de uma identidade
O segundo sentimento analisado pela mostra, “Pertencimento” (Zugehörigkeit), se refere à contribuição do músico para definir uma identidade nacional alemã. Depois que, em 1862 seu banimento por motivos políticos foi anulado, ele retornou à Alemanha e conquistou o apoio do rei da Baviera Ludwig 2º, que se tornaria seu mecenas.
Após as guerras de unificação dos anos 1860 e a fundação do Império Alemão, em 1871, a autoimagem da nação se tornou uma questão central na política, ciência e arte. Como escreveu em seu diário, compositor via em si a inegável corporificação da alma nacional: “Sou o ser mais alemão [de todos], sou o espírito alemão.”
A fundação do Festival de Bayreuth, em 1876, e sua obra inaugural, a tetralogia O anel do Nibelungo, expressavam a busca pelos supostos primórdios dos contos e mitos germânicos, visando fortalecer a identidade nacional. Os Mestres-Cantores de Nurembergue (1867) celebra “o que é alemão e verdadeiro”: num clímax da ópera, o protagonista, o mestre-cantor e sapateiro Hans Sachs, chega a advertir contra “névoas e vaidades estrangeiras”.
Embora Wagner jamais defina nenhuma personagem como judaica, diversos estudiosos vêm no “vilão” Beckmesser a encarnação dos estereótipos e opiniões racistas do artista sobre os judeus. O que torna ainda mais problemático o legado da obra é Mestre-Cantores ter se transformado em trilha sonora de eventos nazistas, como, por exemplo, as celebrações da ascensão do partido ao poder, em 1933.
Eros, desejo por gente e objetos
Na seção Eros, a exposição do museu berlinense explora até que ponto desejo e posses materiais foram temas centrais tanto da vida privada quanto das obras wagnerianas.
O compositor teve numerosos romances e era um dândi notório, apreciador de roupas caras e móveis luxuosos. Embora frequentemente endividado, ele encontrava patrocinadores que o sustentavam sem cessar.
Assim, Richard Wagner cunhou a imagem do artista que vive para além das convenções burguesas. Mas ele não era o único na Alemanha que cultuava o conforto material.
A Gründerzeit (tempo dos fundadores), uma fase de industrialização meteórica nas décadas de 1850 e 1860, exacerbou o desejo da população por luxo e consumo. A ideia do desejo, a que “Eros” se refere, impulsiona a ação de muitos dos dramas musicais wagnerianas – da ganância pelo epônimo Ouro do Reno, que dá partida à Tetralogia do Anel, ao amor fadado à desgraça em Tristão e Isolda (1865).
Asco, o corpo saudável como metáfora do antissemitismo
O quarto sentimento examinado na mostra, “Asco” (Ekel), aponta para as inovações científicas da época relativas ao saber sobre o corpo humano. Com a crescente conscientização sobre higiene e saúde no século 19, tratamentos como banhos medicinais se tornaram cada vez mais apreciados na Alemanha. Wagner frequentava regularmente estações de águas para se curar de suas diversas moléstias. Lá também encontrava um tranquilo local de retiro.
Ao mesmo tempo, a imagem do corpo puro servia como metáfora para o antissemitismo – o elemento estranho que “corrompia” o tecido social saudável –, e o artista soube empregar sua influência loquaz para propagar o ódio aos judeus. Seu ensaio O judaísmo na música, publicado em 1850, foi apenas um de seus muitos escritos em que denunciava a suposta influência semítica sobre a sociedade e a política.
“Não há como separar o bom Wagner do mau Wagner”, adverte o musicólogo Steinberg: o compositor encarna e reflete tanto as maiores conquistas da Alemanha quanto os aspectos mais alarmantes da identidade alemã. Por isso, há mais a aprender examinando-se de perto essa controvertida personalidade do que simplesmente “cancelando-a”.
A exposição Richard Wagner und das Deutsche Gefühl (Richard Wagner e o sentimento alemão) está em cartaz de 8 de abril a 11 de setembro de 2022 no Museu Histórico Alemão de Berlim.
Veja em: https://www.dw.com/pt-br/o-que-richard-wagner-ensina-sobre-o-jeito-alem%C3%A3o-de-ser/a-61480144
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