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O reencantamento do mundo, segundo Federici

Em livro recém-lançado, historiadora reintrepreta conceitos de Marx a partir de olhar feminista e vê no Comum caminho para o pós- capitalismo. Leia capítulo sobre papel das mulheres na construção de novas lógicas sociais na América Latina

Por: Silvia Federici e Peter Lenebauch

Prefácio

Em fevereiro de 1493, a bordo de um navio, voltando de sua primeira viagem à América, Cristóvão Colombo escreveu ao rei da Espanha um relato sobre as pessoas que acabara de conhecer. “De tudo o que têm, se algo lhes for solicitado, nunca recusam; em vez disso, convidam a pessoa a aceitá-lo e mostram tanto amor que dariam seu coração” (Brandon, 1986, p. 7-8). Colombo havia encontrado um comum. Silvia Federici escreve inspirada por esses povos: não só por aqueles que outrora viveram e compartilharam o comum, como também pelos que o vivem e o compartilham agora, no nosso mundo. Federici não romantiza o “primitivo” — está interessada em um mundo novo, reencantado.

Em vez de escrever a bordo de um navio e se reportar ao rei, Federici voa pelos oceanos, viaja em ônibus sacolejantes, se junta a multidões nos metrôs, anda de bicicleta e conversa com pessoas comuns, especialmente mulheres, na África, na América Latina, na Europa e na América do Norte. Com caneta, lápis, máquina de escrever ou computador, registra não o “planeta das favelas”, mas o planeta dos comuns. Como mulher e feminista, ela observa a produção dos comuns nos trabalhos cotidianos de reprodução — lavar, abraçar, cozinhar, consolar, varrer, agradar, limpar, animar, esfregar, tranquilizar, espanar, vestir, alimentar os filhos, ter filhos e cuidar de doentes e idosos.

[…]

Reencantando o mundoressignifica as categorias marxistas, reinterpretando-as em uma perspectiva feminista. […] Ao recuperar o feminismo revolucionário e rejeitar a celebração neoliberal do privado e do indivíduo que nos dá o Homoidioticus(da palavra grega para “privado”), Federici nos oferece a Femina communia. Na sua visão política, não há comuns sem comunidade, e não há comunidade sem mulheres.

O que são os comuns? Enquanto Federici evita uma resposta essencialista, seus ensaios giram em torno de dois pontos: a reapropriação coletiva e a luta coletiva contra a maneira como fomos divididos. Os exemplos são múltiplos. Às vezes ela oferece quatro características: (i) toda a riqueza deve ser compartilhada; (ii) comuns exigem obrigações e direitos; (iii) comuns de cuidado também são comunidades de resistência que se opõem a todas as hierarquias sociais; e (iv) comuns são o “outro” do modelo estatal. De fato, o discurso dos comuns está enraizado na crise do Estado, que agora deturpa o termo para seus próprios fins.

[…]

O que é encantamento? Para Federici, “encantamento” não se refere ao passado, mas ao futuro. Talvez seja essa a parte principal do projeto revolucionário dos comuns, além de ser inseparável deles. Nada se ganha ansiando e postergando. Leia, estude, pense, ouça, converse e, ao lado de outras pessoas, aja, isto é, lute. Como Federici nos diz, o novo mundo está à nossa volta, diz respeito a nós, e somente nossa luta pode trazê-lo à existência e reencantá-lo.

A luta das mulheres e a produção dos comuns urbanos

A luta nas áreas rurais continua na cidade: homens e mulheres deslocados de suas terras formam novas comunidades em áreas urbanas. Apropriam-se de espaços públicos, constroem abrigos, ruas, comércios, por meio do trabalho coletivo e dos processos comunais de tomada de decisão. Mais uma vez, as mulheres tomaram a frente. Como escrevi outras vezes (Federici, 2017b), nas periferias das crescentes megacidades da América Latina, em áreas ocupadas principalmente pela ação coletiva, e encarando uma crise econômica permanente, as mulheres estão criando uma nova economia política ancorada em formas cooperativas de reprodução social, estabelecendo seu “direito à cidade” e criando uma base para novas práticas de resistência e recuperação (Harvey, 2012 [2014]).

Igualmente importante é a socialização das atividades reprodutivas, como fazer compras, cozinhar e costurar. A história dessas atividades é longa. Em 1973, no Chile, depois do golpe militar, mulheres de assentamentos proletários, paralisadas pelo medo e sujeitas a um programa brutal de austeridade, uniram seu trabalho e seus recursos. Começaram a fazer compras e cozinhar em equipes de vinte ou mais pessoas nos bairros em que viviam. Essas iniciativas, fruto da necessidade, produziram muito mais que uma expansão de recursos limitados. O ato de se reunirem e rejeitarem o isolamento forçado a que estavam sujeitas no regime de Pinochet transformou qualitativamente a vida delas, dando-lhes autoestima e quebrando a paralisia induzida pela estratégia de terror do governo. Além disso, reativou a circulação de informação e de conhecimento, essencial à resistência. E transformou a ideia do que significa ser boa mãe e esposa, contribuindo para a redefinição do termo ao saírem de casa e participarem de lutas sociais (Fisher, 1993a). O trabalho de reprodução social deixou de ser uma atividade puramente doméstica e individual; junto com as grandes ollas comunes [panelas comunitárias], o trabalho de casa foi para as ruas e adquiriu uma dimensão política.

Essa política não passou despercebida pelas autoridades, que viram a organização de cozinhas populares como subversivas, como atividade comunista. Em resposta a essa ameaça, a polícia passou a realizar batidas nos bairros. Algumas das mulheres que participavam das cozinhas populares rememoram esse período:

Sara: Com trezentas pessoas envolvidas, era difícil esconder o que estava acontecendo. Eles vinham e derrubavam as despensas, nos faziam parar de cozinhar e prendiam todas as lideranças […]. Vieram muitas vezes, mas a cozinha continuava de pé […].

Olga: A polícia vinha: “O que está acontecendo aqui? Uma cozinha comunitária? Por que estão fazendo isso se sabem que é proibido?”. “Porque estamos com fome.” “Parem de cozinhar!” Eles diziam que fazíamos política. Os feijões quase prontos, e eles jogavam tudo fora […]. A polícia veio muitas vezes, mas conseguíamos fazer com que a cozinha continuasse funcionando, uma semana em uma casa, na semana seguinte, em outra. (Fisher, 1993a, p. 32-3)

Essas estratégias de sobrevivência fortaleciam o sentimento de solidariedade e identidade, e demonstravam a capacidade das mulheres de reproduzir a vida sem depender completamente do mercado, contribuindo, no período pós-golpe, para manter vivo o movimento que havia levado Allende ao poder. Na década de 1980, esse movimento se fortaleceu o suficiente para organizar uma resistência bem-sucedida à ditadura.

Formas coletivas de reprodução social também proliferaram no Peru, na Argentina e na Venezuela. Nos anos 1990, de acordo com o teórico social uruguaio Raúl Zibechi (2012b, p. 236-9 [2015, p. 66-9]), só em Lima havia mais de 15 mil organizações populares que forneciam leite ou café da manhã para crianças e organizavam as cozinhas e os conselhos de bairro. Na Argentina, as piqueteras, mulheres proletárias, ao lado de seus filhos e outros rapazes, exerceram função primordial na resposta à crise econômica catastrófica de 2001, que paralisou o país por meses. Fecharam as ruas, construíram acampamentos e organizaram barricadas (piquetes) que chegavam a durar mais de uma semana. Parafraseando o que Zibechi (2003) escreve a respeito das famosas Madres de la Plaza de Mayo, podemos dizer que as piqueteras “entenderam a importância de ocupar o espaço público”. Elas reorganizaram as atividades de reprodução social nas ruas, cozinhando, limpando, tomando conta das crianças e sustentando as relações sociais; nesse processo, transmitiam a paixão e a coragem que fortaleceram e enriqueceram sua luta (Rauber, 2002, p. 115). O testemunho da pesquisadora e cientista social Isabel Rauber é significativo:

Desde o começo, desde os primeiros piquetes […], a presença de mulheres e crianças era crucial. Determinadas a não voltar para casa sem algo para colocar nas panelas, as mulheres iam aos piquetes para defender sua vida com unhas e dentes. Determinadas a conquistar seus objetivos, participavam diretamente e garantiam a organização da vida cotidiana nas barricadas, que geralmente duravam mais de um dia. Se precisassem montar barracas, se fosse necessário um revezamento para vigiar a segurança do piquete, preparar a comida — certamente, junto com os homens —, para construir barricadas e defender as posições escolhidas, ali estavam as mulheres. (Rauber, 2002, p. 115)

Rauber enfatiza — e eu diria que isso se aplica às lutas de muitas mulheres atualmente, não só na América Latina — que, conforme o neoliberalismo promove ataques genocidas aos meios de subsistência das pessoas, o papel das mulheres se torna mais importante. A luta contra o neoliberalismo deve ter raízes nas atividades que reproduzam nossa vida, porque, nas palavras de um militante citado por Rauber (2002, p. 115), “tudo começa no cotidiano e, então, é traduzido em termos políticos. Onde não há vida cotidiana, não há organização, e onde não há organização, não há política”.

Seu ponto de vista se confirma no que dizem Natalia Quiroga Díaz e Verónica Gago sobre o movimento das piqueteras, argumentando que a crise econômica de 2001 induziu “a feminização da economia e, com isso, a escassez dos recursos necessários para a reprodução” (Díaz & Gago, 2014, p. 13). Assim que a economia oficial colapsou, levando ao fechamento de muitas empresas e até de bancos, impedindo que as pessoas conseguissem sacar suas poupanças, uma economia diferente, “feminina”, emergiu. Foi inspirada na lógica do trabalho doméstico, mas organizada coletivamente em espaços públicos, evidenciando o caráter político e o valor social do trabalho reprodutivo. Uma economia de subsistência emergia quando as mulheres ocupavam as ruas, levando pratos e panelas às barricadas e assembleias de bairro, formando redes de escambo e vários tipos de cooperativas. Isso permitiu a sobrevivência de milhares de pessoas e, ao mesmo tempo, redefiniu o que é valor e onde ele é produzido, identificando-o cada vez mais com a capacidade de gerenciar coletivamente a reprodução de nossa vida, cujo ritmo e cuja necessidade dão uma nova forma ao espaço e ao tempo urbanos.

 

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