Cenas de carros em chamas nas ruas parisienses foram usadas para retratar os curdos franceses como uma minoria rebelde. No entanto, a revolta é alimentada por uma série de assassinatos racistas — e a recusa das autoridades francesas em revelar todos os fatos dos acontecimentos.
Por: Emre Öngün |Tradução: Sofia Schurig | Crédito Foto: Vincent Koebel / NurPhoto via Getty Images. Os manifestantes foram às ruas de Paris em 24 de dezembro de 2022 para protestar contra um tiroteio em um centro cultural curdo, que resultou em três mortes
Na sexta-feira, 23 de dezembro, a comunidade curda em Paris foi vítima de um novo ataque racista. Armado com uma pistola, William M., de 69 anos, lançou sua ofensiva contra o Centro Cultural Curdo Ahmet-Kaya, no distrito de Strasbourg-Saint-Denis, na capital francesa. Ele também assassinou Emine Kara, uma líder do movimento de mulheres curdas na França; o músico Mîr Perwer; e Abdurrahman Kizil, um cidadão comum.
O assassino acabou sendo neutralizado pelos clientes do cabeleireiro curdo que fica de frente para o centro cultural. A polícia não interveio até que ele já tivesse sido rendido por civis. O assassinato também aconteceu dez anos depois de um assassinato anterior de três ativistas do mesmo centro cultural — naquela época, por um agente do serviço secreto da Turquia.
Haviam pistas iniciais do que estava por trás dessa atrocidade. Já no final de 2021, armado com uma espada, William M. atacou e feriu imigrantes franceses que viviam em tendas nas ruas. Esse é o primeiro elemento desse caso: o criminoso é um racista radicalizado que já havia “atuado” anteriormente.
No entanto, também há fatores políticos mais amplos que prepararam o terreno para esse ataque: a banalização do discurso público que desumaniza os imigrantes e as populações minoritárias; seu uso como bode expiatório conveniente em tempos de crise social; o constante direcionamento islamofóbico de “inimigos internos”; o discurso racista da “grande substituição” — uma teoria racista que acredita que imigrantes do Sul Global migram com o intuito de “acabar” com a raça branca —; e a disseminação de ações de rua por grupos fascistas violentos, que enfrentam pouca ou nenhuma repressão estatal. Para dar apenas um exemplo: o governo francês propõe uma nova lei ainda mais restritiva para os imigrantes em 2023, dando toda a ajuda possível aos grupos de direita que hoje se superam em suas provocações xenófobas.
Lobo solitário?
Aqueles que preparam o terreno para ataques como o de sexta-feira podem se distanciar do “gesto solitário de um indivíduo desequilibrado”. Mas eles certamente criaram o alvo para esse tipo de fanático radicalizado.
Os discípulos de Emmanuel Macron e seus parceiros de direita surfam na onda de pânicos morais artificiais — por exemplo, nos últimos meses, uma onda de transfobia — enquanto permanecem muito mais discretos sobre a violência de rua da extrema direita. Não há foco semelhante nos ataques recentes aos comícios da France Insoumise, ou nos ataques a ativistas de esquerda nas ruas de Lyon — uma cidade onde os fascistas conseguiram realizar uma manifestação (proibida por lei).
No entanto, o ódio racista parece insuficiente para explicar completamente esse acontecimento. Há, no mínimo, questionamentos legítimos e fortes suspeitas sobre outros fatores em jogo, especialmente depois dos elementos revelados pelo jornal de esquerda francês L’Humanité. Acontece que William M. planejou seu ato para um momento em que cerca de sessenta ativistas curdos estavam programados para se reunir. Felizmente, a reunião foi adiada por uma hora no último minuto.
“Não há dúvida de que, se a França continuar em seu curso atual, indivíduos ou grupos radicalizados cometerão novos ataques assassinos.”
Ele foi diretamente ao centro cultural. Se sua motivação era o ódio racista cego, por que ele não atacou os muitos comércios frequentados por imigrantes no mesmo bairro, os quais são muito mais acessíveis do que o centro cultural? Como devemos interpretar que ele agiu de maneira tão direcionada apenas uma semana após sua libertação da detenção? A sombra do regime turco, ou pelo menos de alguns dos seus serviços, paira inevitavelmente sobre este caso.
Impunidade
Esse foi o contexto em que o Ministro do Interior da França — cargo semelhante ao Ministro da Segurança Pública no Brasil —, Gérald Darmanin, foi ao centro cultural após o ataque e se recusou a se encontrar com os líderes das associações curdas. Discursando no local dos assassinatos, ele insistiu que os serviços nacionais não conheciam o indivíduo que havia sido preso, apesar do terrorista ter atacado migrantes com uma espada em 2021.
Darmanin tentou apresentar esse ataque como o ato de um indivíduo isolado e desequilibrado, não visando especificamente os curdos — ao mesmo tempo, prometeu “dar prioridade” sobre o assunto. A mensagem do ministro soou como uma repetição sinistra das palavras de outro Ministro do Interior igualmente desprezível, Manuel Valls, que fez as mesmas promessas após um dos piores ataques a população curda na França, em 2013.
Mas, até mesmo no caso do homem que matou os três ativistas Fidan Doğan, Sakine Cansız e Leyla Söylemez, há uma década, foi preso e morreu sob custódia. O caso ainda tem muitas áreas nebulosas. Ele permanece envolto em segredo de justiça por motivos de “assuntos de defesa nacional”, em particular no que diz respeito ao envolvimento dos serviços secretos turcos.
Ao longo da última década, o não levantamento do sigilo desse “segredo de defesa” gerou forte e compreensível desconfiança em relação às autoridades francesas entre os curdos do país. Nesse contexto, a visita de Darmanin e seu desprezo pelos líderes curdos, bem como o próprio conteúdo de seu discurso, acenderam o barril de pólvora da raiva e desencadearam uma revolta entre os muitos jovens curdos presentes, que entraram em confronto com a polícia durante toda a noite.
“Assim, a única intervenção do departamento de Darmanin foi reprimir aqueles que se reuniram após o ataque assassino contra três de seu próprio povo.”
A polícia de Darmanin desaprendeu qualquer outra forma de manter a ordem (como visto até mesmo com o espancamento de torcedores franceses na final da Liga dos Campeões de 2022) e, portanto, se contentou com lançar bombas de gás e agredir os manifestantes. Houve cenas semelhantes em Marselha, onde uma manifestação pacífica foi denunciada pela polícia.
No dia seguinte, 24 de dezembro, a manifestação para exigir justiça foi, mais uma vez, submetida ao uso massivo de gás lacrimogêneo. Assim, a única intervenção do departamento de Darmanin foi reprimir aqueles que se reuniram após o ataque assassino contra três de seu próprio povo. Incompetência oficial e racismo se complementavam perfeitamente.
No final, duas coisas se destacam após esse ataque. Primeiro, há uma necessidade urgente de uma ofensiva antifascista unida e realmente ativa para impedir a corrida desenfreada da França em direção à banalização do discurso racista e da violência fascista. Esse é um problema estrutural: não há dúvida de que, se a França continuar em seu curso atual, indivíduos ou grupos radicalizados cometerão novos ataques assassinos.
Nesse caso, há um segundo aspecto, mais especificamente relacionado a população curda. No comício realizado em 24 de dezembro, antes do uso massivo de gás lacrimogêneo contra os manifestantes, o parlamentar pró-Macron, Sylvain Maillard, prometeu que o governo francês “daria prioridade” sobre esse ataque. Para ter um pingo de credibilidade, as autoridades francesas poderiam começar levantando o sigilo sobre o triplo-homicídio ocorrido uma década atrás.
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