Clipping

Os povos do Rio Negro investigam a crise climática

Secas intensas, que incendeiam até a floresta inundada. Enchentes recordes. Extinção da fauna. Na bacia do rio amazônico, pesquisadores indígenas lançam expedições e para examinar os eventos climáticos que ameaçam seu modo de vida

Por: Instituto Socioambiental | Créditos da foto: Ana Amélia Hamdan. Expedição a áreas atingidas por incêndios e cheias no Rio Caurés. Na foto, Rodrigo Silva, do povo Baré (blusa preta); Maria Yrinéia, do povo Tukano; Francisco Saldanha, do povo Baré; Ezequias Pereira (blusa cinza) e o coordenador do grupo, Clarindo Chagas Campos, do povo Tariano

A comunidade indígena de São Roque, no município de Barcelos (AM), fica às margens do Rio Caurés, afluente do Rio Negro, que é difícil de ser encontrado devido ao labirinto de ilhas e canais situados em sua foz, só identificada por quem conhece a região. Nos últimos seis anos, a paisagem nessa área e em outros rios do município está mudando. Grandes extensões de árvores queimadas — algumas com partes submersas — passaram a fazer parte do ambiente de rios como o Aracá, Demeni, Rio Preto, Quiuini, Padauiri, além do Caurés e do próprio Negro.

Esse cenário impactante é resultado de eventos climáticos extremos ocorridos nos últimos anos. Em 2016, uma grande seca causou incêndio em áreas de igapós (floresta inundada), que secaram. Sobrou um rastro de troncos queimados. Já em 2021 e 2022, foram registradas duas cheias recordes consecutivas, deixando muitas áreas submersas.

Conhecedores relatam prejuízos para as roças e a floresta e percebem a perda de algumas espécies de árvores. Há risco de insegurança alimentar, pois os moradores da região dependem da produção das roças, da caça e da pesca,que sofreram com as alterações climáticas.

Os eventos extremos e seus efeitos para as famílias que vivem em comunidades do município estão sendo acompanhados pela Rede de Agentes Indígenas de Manejo Ambiental (Aimas), que atua no Médio Rio Negro. Entre os dias 29 de agosto e 2 de setembro, a comunidade de São Roque recebeu a III Oficina dos Aimas de Barcelos, com troca de experiência entre os participantes e expedições aos locais atingidos.

Durante o encontro, o conhecedor e pesquisador indígena Clarindo Chagas Campos, do povo Tariano, foi escolhido como coordenador dos pesquisadores indígenas em Barcelos.

O projeto é desenvolvido em conjunto pelo Instituto Socioambiental (ISA) e pela Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) e reúne, no total, cerca de 50 Aimas que atuam no Médio Rio Negro e no Alto Rio Negro, nas regiões dos rios Tiquié, Uaupés, Içana (veja o mapa). Em Barcelos, o projeto conta com o apoio da Associação Indígena de Barcelos (Asiba).

Durante as expedições, os Aimas e conhecedores da região indicaram pontos de queimadas e, ainda, onde a vegetação ajudou a segurar as chamas, como nas áreas de mologonzais – com concentração de molongós pretos. Também explicaram que o fogo só diminuía após alcançar a floresta em terra firme, fora das áreas de igapós. É possível ver os restos das árvores queimadas, com parte dentro d’água e, nelas, as marcas da cheia recorde, uma vez que o nível do rio já está mais baixo.

O agricultor Pedro Raimundo Fernandes, do povo Baré, foi criado na região do Caurés e vive em São Roque. Ele é um entusiasta da pesquisa e colaborador do jovem Aima local, Ezequias Pereira, também do povo Baré, e faz anotações diárias das observações dos eventos ambientais. Ele participou da oficina e das expedições, relatando o impacto dos incêndios e das cheias não só para as roças, mas também para a floresta.

“A floresta onde não estava acostumada a ir para o fundo, entrar n’água, elas (as árvores) morreram. Com a enchente do ano passado, até o nível que ela chegou, morreram muitas árvores e muitas palmeiras também. Eu não sei explicar. Essa enchente deste ano para nós foi maior. Talvez ela tenha feito um dano também, só que nós ainda não procuramos andar para ver o que aconteceu”, disse Seu Pedro durante a expedição, em meio à área atingida tanto por queimadas quanto por enchentes.

Sobre o incêndio, ele destacou a gravidade da situação. “Foi uma grande seca que tivemos aqui na região do Rio Negro e causou devastação na floresta aquática (igapós). Estou com 62 anos e me criei nesse Rio Caurés. Nunca tinha visto uma enchente dessa e nem uma seca do ano que aqui pegou fogo, nunca tinha visto”, lamentou.

Paisagens alteradas: incêndios em áreas de igapós registrados em 2016 e cheias extremas ocorridas em 2021 e 2022 estão mudando a floresta. Foto: Ana Amélia Hamdan/ISA

A percepção de Seu Pedro pode ser comprovada por dados. A plataforma Global Forest Watch (GFW), que fornece ferramentas para o monitoramento de florestas, indica que de 2001 a 2021 Barcelos perdeu 130 mil hectares de cobertura arbórea por queimadas e 20,7 mil hectares devido a todos os outros fatores. O ano com a maior perda de cobertura arbórea devido a queimadas durante o período citado acima foi 2016, com 104 mil hectares perdidos por queimadas.

Outro dado que mostra a intensidade do problema indica que os focos de incêndio em 2015 foram 196 e, em 2016, passaram para 14.321, conforme o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). A alta entre um ano e outro foi de 7.200%.

No outro extremo, o Amazonas passou por uma cheia recorde em 2021, com o nível do Rio Negro atingindo 30,02m em Manaus, o maior índice desde o início da medição, em 1902. Este ano, a cheia na capital não ultrapassou o período anterior, mas ainda assim a enchente foi extrema.

No município de Barcelos foram duas cheias recordes seguidas no Rio Negro: em 2021, o nível chegou a 10,46m, sendo o recorde até então. Em 2022, a água ultrapassou essa marca, chegando a 10,52m, segundo dados do Serviço Geológico do Brasil – CPMR.

Na comunidade de Cauburis, no Rio Negro, os moradores marcaram na escada de acesso o nível da água na cheia de 2021 e observaram que, em 2022, o nível foi além. O Aima Rodrigo da Silva Gomes, do povo Baré, que vive em Cauburis, disse que os espaços para fazer roça na comunidade já estão ficando difíceis devido aos eventos climáticos e pressão por terra.

O Aima Rodrigo Gomes, morador da comunidade de Cauburis, mostra marca da enchente de 2022, que atingiu nível acima à do ano anterior. Foto: Ana Amélia Hamdan/ISA

“Foi enchente grande sim. A gente já está se acostumando com enchente grande. Por aqui a gente fala assim que dá para matar macaco de cacete. Porque o rio sobe e quem está nas embarcações dá de acertar os macacos que ficam no alto das árvores. Clima, tempo, enchentes, muita coisa não regula mais”, relatou.

A comunidade também passou pelos impactos do incêndio, mas Rodrigo não estava lá na época. Ele estava trabalhando em áreas de piaçabais — um dos recursos naturais da região, ampla e historicamente explorado —, onde via cinzas caindo do céu.

O Aima Ezequias Pereira, que mora em São Roque, lembra a agonia na época dos incêndios. “A gente não respirava o ar natural por causa da fumaça. O céu escurecia mais cedo, o sol ficava avermelhado”. Nascido na comunidade de Manapana, que significa “borboleta”, em Barcelos, o Aima Ezequias foi criado em São Roque. Foi ele quem conduziu o barco, que saiu de Barcelos com o grupo de pesquisadores indígenas, quando a embarcação entrou no Rio Caurés, atravessando as ressacas à noite, guiando-se por seus conhecimentos e pela lua nova.

Também morador da comunidade de São Roque e conhecedor da região, o Agente Indígena de Saúde (AIS) Ely Gomes Pereira, do povo Baré, pai de Ezequias, fala dos impactos de outro extremo climático: as enchentes. Ele chegou a se mudar com a família para o barco durante as inundações de 2022. “Nunca tinha morado em barco antes”, disse ele, que passou cerca de 2,5 meses na embarcação.
“O que eu vi da enchente é que era só um mar de água. Houve diminuição dos peixes, que acharam muito espaço. Caçar ficou mais difícil. Era preciso mais de seis horas remando para alcançar a terra e encontrar a caça. O barco foi meu abrigo, meu socorro.”

Ely Gomes Pereira, do povo Baré, saiu de casa e foi morar com a família no barco devido às cheias: “Era um mar de água”. Foto: Ana Amélia Hamdan/ISA

A casa de forno comunitária de São Roque também ficou cheia de água. “Eu olhava para o rio subindo e só pedia para secar de volta, que não enchesse muito”, afirmou Iranilda Sales Santana, esposa de Ely. O agente de saúde fala sobre a cheia, mas ainda guarda na memória os incêndios de 2016. “Foi um desespero. Para onde a gente ia, tinha fogo. As chamas chegaram muito perto das casas. O fogo durou cerca de um mês, mas a agonia continuou por cerca de três meses devido à fumaça”, lembrou.

Relatos semelhantes a esse foram coletados pelos Aimas em questionários aplicados nas comunidades. O pesquisador indígena e liderança Francisco Saldanha da Silva, do povo Baré, da comunidade Bacabal, Rio Demeni, também fala sobre a sua experiência à época. “O fogo chegou bem perto da comunidade. Ficamos agoniados com a fumaça. A gente tentava fechar a casa para evitar a fumaça, mas não dava. E tinha muito carapanã (pernilongo). Algumas vezes fomos dormir na praia, onde era mais fresco”, relatou.

Nas comunidades cercadas pelo fogo, os homens costumavam sair à noite para tentar conter as chamas, mas as ações não eram suficientes para conter os focos, que avançavam tanto pelas árvores, como debaixo da terra, na camada chamada de “bucha”, formada pelas folhas caídas.

Francisco Saldanha da Silva, do povo Baré, da comunidade Bacabau, Rio Demeni, faz anotações em seu diário de Aima. Foto: Ana Amélia Hamdan/ISA

Mais pesquisa

Renata Alves, ecóloga e analista de geoprocessamento do ISA, explica que, a partir da ocorrência dos incêndios, foi proposto aos Aimas como tema da pesquisa os impactos do fogo. Enquanto o estudo estava em andamento, veio o extremo das enchentes. Os dois eventos estão sendo acompanhados pelos pesquisadores indígenas, que anotam em diários suas observações e ainda fazem registros com tablets e celulares.

Ela conduziu a oficina dos Aimas em São Roque e explicou que as observações e anotações feitas pelos pesquisadores indígenas até agora apontam para uma maior imprevisibilidade dos eventos climáticos, o que está levando a uma mudança no manejo das roças e da floresta.

Renata Alves, analista de geoprocessamento do ISA, conduz oficina dos Aimas em Barcelos. Presidente da Asiba, Rosilene Menez, do povo Baré, (blusa preta) acompanha o grupo. Foto: Ana Amélia Hamdan/ISA

“Os cuidados até então tomados durante a queima de roça ou nas fogueiras dos acampamentos não foram suficientes para evitar o incêndio de 2016. Novos cuidados passaram a ser tomados”, contou.

Os resultados parciais das pesquisas feitas pelos Aimas sobre os incêndios e enchentes entre 2016 e 2021, por meio de questionários aplicados aos moradores das comunidades, indicam que a maioria das pessoas (61%) mudou a forma como maneja o fogo para queimar a roça após os grandes incêndios de 2016. Também foram relatados impactos principalmente nas roças, mas também na pesca e na caça.

 

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