Por: Marcus Meneghetti | Créditos da foto: Claiton Dornelles/Jc. ‘A crise � o grande argumento para a reforma da Previd�ncia e privatiza��es’, afirma
A coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida, Maria Lucia Fattorelli, acredita que a reforma da Previdência, privatizações e outras medidas de ajuste fiscal não precisariam ser feitas, caso o Brasil auditasse a dívida pública brasileira – que, em 2018, consumiu 41% do orçamento da União. Dos R$ 5,5 trilhões da dívida, Maria Lucia defende que pelo menos R$ 1,2 trilhão são ilegais, pois dizem repeito a títulos usados pelo Banco Central (BC) para remunerar a sobra de caixa de bancos privados.
Para exemplificar os resultados que uma auditoria geraria, ela cita o exemplo do Equador, que reduziu 70% da sua dívida pública depois de auditá-la. Ela participou da comissão que revisou a dívida do país sul-americano com instituições financeiras privadas.
Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, Maria Lucia Fattorelli defende a tese que a crise econômica brasileira dos últimos anos foi fabricada: ao remunerar a sobra de caixa dos bancos privados, o Banco Central diminuiu a oferta de crédito às empresas e ao comércio, o que elevou os juros de mercado; consequentemente, as empresas faliram por falta de crédito.
Ela também critica a reforma da Previdência, pois, na sua avaliação, o problema da área previdenciária é a diminuição da arrecadação – que ocorreu por conta dos fechamento de empresas, aumento de desempregados e trabalhadores informais, além de desonerações de impostos destinados ao financiamento da seguridade social.
Jornal do Comércio – Nas suas palestras, a senhora costuma dizer que a crise econômica foi fabricada no Brasil. Por que defende essa tese?
Maria Lucia Fattorelli – Segundo os livros de finanças, o que que provoca crise no capitalismo? Primeiro, quebra de bancos; que foi o que provocou a crise de 2008 nos EUA. Isso não aconteceu aqui no Brasil, onde os bancos lucraram mais do que em qualquer outro lugar. Outra coisa que quebra um país é a perda de safra, o que gera falta de comida. No Brasil, temos batido recordes de safras. Adoecimento da população também quebra um país, porque não tem quem trabalhe. Não tivemos isso aqui. Outro motivo para gerar crise é a guerra. Também não tivemos. Portanto, não encontramos em nenhum dos fundamentos da economia a explicação para a crise no Brasil.
JC – Mas as empresas brasileiras começaram a fechar, tanto que o desemprego aumentou…
Maria Lucia – Por que as empresas, o comércio e a indústria começaram a quebrar, gerando desemprego? Porque não tinham crédito. Não deram conta de pagar suas dívidas bancárias. Não tiveram acesso a capital de giro. Isso aconteceu por, basicamente, dois motivos. Primeiro, o aumento da taxa de juros. Em 2013, o Banco Central começou a aumentar a taxa de juros em quase todas as reuniões do Copom (Comitê de Política Monetária). Subiu de 7% para 14,25%, patamar que permaneceu por mais de um ano, em um momento em que o mundo trabalhava com baixas taxas de juros, às vezes até negativas.
JC – E o outro motivo para a quebra das empresas?
Maria Lucia – Os bancos têm um determinado valor para fornecer empréstimos à iniciativa privada ou pessoas físicas, a uma taxa de juros regulada pelo mercado. Só que o que não é emprestado é repassado ao Banco Central, que, em troca, paga aos bancos uma taxa de juros maior que a que seria cobrada dos empreendedores. Ou seja, passa a ser mais lucrativo para os bancos repassar dinheiro – que seria destinado ao crédito empresarial – ao Banco Central. Essas operações foram aumentando a partir de 2013. Então, em vez de os bancos emprestarem para a indústria, para o comércio ou para as pessoas que queriam iniciar um empreendimento, passaram a depositar toda sua sobra de caixa no Banco Central. E, como o Banco Central remunerava isso diariamente, essa operação chegou a R$ 1 trilhão em janeiro de 2016. Isso significa que R$ 1 trilhão que deveria estar no caixa dos bancos, à disposição da indústria, do comércio, para movimentar a economia do País, estava esterilizado no Banco Central sendo remunerado pela maior taxa de juros do planeta. Isso gerou escassez de moeda no mercado. E o que acontece quando há escassez de moeda?
JC – As taxas de juros do mercado sobem…
Maria Lucia – E subiram a patamares indecentes. Não há outra palavra. É indecente a taxa de juro do mercado brasileiro. É para impedir o desenvolvimento de qualquer negócio. Nenhuma empresa, nenhum estabelecimento comercial aguenta sobreviver sob essa taxa de juros. Quando dou palestras em outros países e menciono que a taxa de juro no Brasil chega a 200% ao ano, sempre surge alguém pedindo para eu me corrigir: “minha senhora, corrige aí; a senhora falou 200%; isso é impossível”. Ninguém acredita. E se olharmos a taxa de juro no cheque especial ou no cartão de crédito, chega a 400%, 500%. Isso acontece porque o Banco Central aceita o depósito da sobra de caixa dos bancos e os remunera por isso.
JC – O que aconteceria se esse R$ 1 trilhão não tivesse sido repassado ao Banco Central?
Maria Lucia – Se o Banco Central não estivesse remunerando essa bolada de R$ 1 trilhão, os bancos iam querer ficar com esse dinheiro na gaveta? Claro que não. Iam querer ganhar alguma coisa. Para ganhar alguma coisa, teriam que emprestar. Para emprestar, teriam que baixar a taxa de juros. O que seria da nossa economia irrigada com R$ 1 trilhão a uma baixa taxa de juros? Não haveria crise. Por isso, digo que a crise foi fabricada pelo Banco Central, através da política de aumento da taxa de juros básica e da remuneração pela sobra de caixa dos bancos.
JC – Quando as empresas começaram a quebrar, a então presidente, Dilma Rousseff (PT), implantou uma política de desoneração fiscal para vários setores industriais e comerciais. Como avalia essa medida?
Maria Lucia – Quando as empresas começaram a reclamar que estavam quebrando, em vez de enfrentar os privilégios dados pela política monetária do Banco Central, que estava remunerando a sobra de caixa dos bancos, a Dilma desonerou vários setores produtivos de contribuir em algum tributo. Inclusive alguns tributos destinados ao financiamento da assistência social, o que prejudicou a Previdência. Receberam desoneração o agribusiness, montadoras, vários setores. Consequentemente, caiu a arrecadação e não resolveu o problema das empresas. Afinal, a desoneração só resolve os problemas de empresas que conseguem se financiar, que ainda estão funcionando. No caso das empresas que estão precisando de crédito para comprar matéria-prima, contratar funcionários, investir em uma tecnologia específica, a desoneração não resolve nada. Essas empresas precisam de crédito, que, naquele momento, estava sendo concedido a juros abusivos.
JC – Em 2017, a senhora participou da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Previdência do Senado. Como avalia a reforma previdenciária proposta pelo ministro da Economia, Paulo Guedes?
Maria Lucia – A operação do Banco Central (de remunerar a sobra de caixa dos bancos) gerou escassez de moeda no mercado, elevou as taxas de juros do mercado para patamares abusivos e jogou as empresas da inanição por falta de crédito. Quebrou todo mundo. Por consequência, as contribuições para a Previdência despencaram. Afinal, empresas quebradas, desempregados e trabalhadores informais não contribuem para o INSS (Instituto Nacional do Seguro Social). Além disso, houve desoneração em tributos destinados à seguridade social, fontes previstas no artigo 195 da Constituição: Cofins (Contribuição para Financiamento da Seguridade Social); CSLL (Contribuição Social sobre Lucro Líquido); o INSS, pago por empregados e empregadores, PIS (Programa de Integração Social) etc. Quando a gente acompanha a arrecadação dessas fontes, constatamos um superávit de 2005 a 2015, segundo dados da Anfip (Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil). Por exemplo, sobraram R$ 57,6 bilhões em 2010; R$ 78,2 bilhões em 2011; R$ 83,9 bilhões em 2012; R$ 78,9 bilhões em 2013; R$ 57,6 bilhões em 2014, e R$ 13,7 bilhões em 2015. Por que houve essa queda? Falta de contribuição. Para agravar, as desonerações concedidas pelo governo Dilma agravaram a diminuição da arrecadação. Então, o problema não foram os benefícios da seguridade social, porque eles não aumentaram. O problema foi a queda da arrecadação.
JC – Depois da reforma da Previdência, o ministro da Economia declarou que pretende atacar o problema da dívida pública, que consome quase metade do orçamento da União. É o maior gasto, maior até que o da Previdência, conforme o ministro. A senhora é especialista na dívida pública. Qual é a solução?
Maria Lucia – Uma auditoria é uma ferramenta importantíssima para que a solução seja uma decisão justa, que penalize o que é fraudulento, ilegal e inconstitucional. Por exemplo, sem a auditoria, o cidadão olha aquele número de R$ 5,5 trilhões de dívida interna federal e pensa que tudo aquilo ali é dívida. Mas, através de alguns estudos da Auditoria Cidadã, comprovamos que, desse total, R$ 1,2 trilhão não pode ser chamado de dívida, porque corresponde a títulos que estão sendo usados para remunerar a sobra de caixa dos bancos. Isso é uma fraude. É um absurdo. Essa remuneração da sobra de caixa dos bancos custou, nos últimos 10 anos, em valores nominais, sem atualização, R$ 754 bilhões. Através da auditoria, descobrimos que esse R$ 1,2 trilhão não é destinado à amortização da dívida, como consta no orçamento da União. Em vez disso, é usado para pagar juros. Na CPI da Dívida Pública, promovida pela Câmara dos Deputados em 2010, o próprio Banco Central entregou um documento que mostra que essa é uma dívida de juros sobre juros. Isso é ilegal.
JC – A senhora participou da auditoria da dívida pública do Equador. Qual foi o resultado?
Maria Lucia – Lá, o nosso relatório provou que o Equador já tinha pago muito mais do que devia. Trabalhei na equipe que auditou a dívida externa junto a bancos privados internacionais, que, de maneira semelhante em toda a América Latina, aumentou bastante nos anos 1970. Descobrimos uma série de irregularidades, inclusive contratos sigilosos em que o governo equatoriano renunciava à prescrição de algumas dívidas. O presidente Rafael Correa, diante da descoberta dessas fraudes, suspendeu o pagamento dos juros e submeteu o nosso relatório ao crivo jurídico nacional e internacional. Diante do aval jurídico, disse que o país só pagaria 30% dos títulos que compunham a dívida: “Quem aceitar, receberá; quem não aceitar, entre na Justiça, porque vou me defender com esse relatório”. Do total, 95% dos detentores entregaram os títulos e o Equador anulou 70% da sua dívida externa junto a bancos privados internacionais. O alívio decorrente dessa redução possibilitou investimentos impressionantes nas áreas sociais, na saúde, educação, assistência, como também investimentos no desenvolvimento socioeconômico, em estradas, rodovias, geração de emprego e renda. Depois disso, o Equador passou a obter créditos a juros baixíssimos, porque a situação fiscal melhorou. Então, não é verdade aquele chavão que diz que quem enfrentar o sistema financeiro fica sem crédito.
JC – Uma auditoria na dívida pública resolveria a crise no País?
Maria Lucia – Totalmente. A crise é o grande argumento para a reforma da Previdência, privatizações e algumas medidas que já foram tomadas pelo governo do ex-presidente Michel Temer (MDB), como a PEC do Teto de Gastos. Com uma auditoria, combatendo as irregularidades no sistema financeiro, nenhuma dessas medidas seriam necessárias. Aliás, algumas dessas medidas até agravam a situação do País. Por exemplo, a PEC do Teto de Gastos, cujo objetivo é conter o gasto primário, que engloba as despesas com todos os poderes e com os serviços prestados à população, como saúde, educação, Previdência, assistência etc. A PEC só estabeleceu teto para esse tipo de gasto. Ela não fala nada sobre o gasto com a dívida pública. Ou seja, o gasto com a dívida está livre para crescer. Apesar da crise, estamos tendo aumento de arrecadação. Temos R$ 1,27 trilhão na conta única do Tesouro. E pasmem! Esse dinheiro é excesso de arrecadação que não pode ser gasto em serviços públicos por causa da PEC do Teto de Gastos. Além disso, estamos emitindo títulos além do necessário para rolar a dívida. E o dinheiro fica lá, no Banco Central, porque não pode ser usado. Então, a PEC impõe um limite de gastos com os serviços públicos, mas não ao gasto com a dívida pública. A consequência disso é que o dinheiro “economizado” na saúde, educação, Previdência acaba destinado a pagar a dívida com os bancos, por exemplo, que cresce a juros altos.
Perfil
Maria Lucia Fattorelli Carneiro nasceu em Belo Horizonte (MG), em 10 de abril de 1956. Graduou-se em Administração e em Contabilidade pela UFMG. Em 1982, passou em um concurso da Receita Federal, tornando-se auditora – profissão na qual se aposentou. Possui especialização MBA na Fundação Getulio Vargas, em Administração Tributária. Em 1999, presidiu o sindicato dos auditores fiscais em Belo Horizonte. No mesmo ano, organizou o Fisco Fórum, movimento que reuniu auditores para analisar a dívida. Nos anos 2000, participou do plebiscito popular sobre a dívida pública, organizado por entidades como a OAB e CNBB. Em 2001, foi criada a organização não governamental Auditoria Cidadã da Dívida, coordenada por Maria Lucia até hoje. Entre 2009 e 2010, foi assessora técnica da CPI da Dívida Pública na Câmara dos Deputados. Foi filiada ao PSOL de 2009 a 2014. Chegou a concorrer a deputada federal em 2014. Deixou o partido ao final do pleito, a pedido do conselho político da Auditoria Cidadã, para preservar o caráter suprapartidário do órgão.
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