Desmonte da indústria nacional do petróleo é exemplar da política entreguista dos governos pós-golpe de 2016. No bicentenário da Independência, resgatá-la será alavanca para retomada de um projeto de nação
Por: José Álvaro de Lima Cardoso
O debate sobre o futuro da indústria é extremamente oportuno pela importância estratégica do setor industrial em qualquer conjuntura, e fundamental para a soberania nacional do país. Não existe país soberano sem a presença de indústria desenvolvida, princípio que vale para situações de paz, assim como em eventuais conflitos com outros países. A indústria é também fundamental para geração de emprego e renda. Segundo estimativa da Confederação Nacional da Indústria, para cada 1 real produzido na indústria, se gera 2,63 reais na economia como um todo. É fácil compreender que a alavancagem de valor na indústria significa a movimentação da cadeia como um todo: comércio, setor de pesquisa, serviços em geral, transporte, logística, infraestrutura, e assim por diante.
A cadeia estruturada pela indústria, pode ser exemplificada pelo ramo petroquímico, área da química encarregada dos derivados de petróleo e sua utilização na indústria. A indústria petroquímica transforma petróleo bruto em uma gama enorme de produtos como gás natural, gasolina, gás liquefeito de petróleo (GLP), querosene, óleo diesel, nafta petroquímica, solventes, asfalto, dentre outros. O petróleo, além de fonte de energia essencial, é utilizado como matéria-prima para mais de 3 mil bens industriais. É fácil constatar que a cadeia de produção de derivados do petróleo gera emprego e renda em todo o processo produtivo. Essa característica, com especificidades, vale para todos os ramos industriais.
Indústria significa também desenvolvimento da tecnologia. A política de venda de refinarias e exportação de óleo cru é também prejudicial ao país porque restringe as possibilidades de desenvolvimento da pesquisa e tecnologia. Se a Petrobrás é hoje uma gigante na exploração de petróleo em águas profundas e ultra-profundas, e referência mundial na área, é fruto do desenvolvimento de tecnologia regular e de alto nível. A descoberta do pré-sal é resultado de esforços contínuos em pesquisas, num nível extremamente elevado. É um orgulho muito grande para o Brasil, despontar no conhecimento e exploração de petróleo originário da camada de pré-sal.
A crise da indústria de transformação no Brasil é abissal. Em tabela elaborada pelo Dieese, com dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), se constata que, em 74 anos, desde 1947, a participação da indústria para a formação do PIB (Produto Interno Bruto) no país foi a menor da história em 2021, apenas 11,3%. Em 1985, ápice da industrialização no Brasil, a participação da indústria no PIB era de 35,9%, segundo a tabela mencionada. Passados 26 anos, o país enfrenta um processo de aprofundamento da desindustrialização. Desde a recessão iniciada em 2014, o Brasil assiste o número de indústrias, cair.
Há uma relação direta entre desenvolvimento da indústria e renda per capita, que é um indicador fundamental de potencial de um país, para a distribuição de renda. O golpe de Estado de 2016 foi também contra o desenvolvimento nacional e, portanto, contra a indústria nacional. A fúria de Paulo Guedes e Bolsonaro para entregar as refinarias de petróleo a preço de banana, é um sintoma da natureza dos golpistas, contra o desenvolvimento nacional. O mesmo pode-se dizer em relação à entrega criminosa da Eletrobrás. Nesse ambiente, segundo a Confederação Nacional do Comércio (CNC), entre 2015 e 2020, foram extintas 36,6 mil fábricas, o que equivale a quase 17 estabelecimentos liquidados diariamente. Essa dinâmica, além de decorrer do processo mais estrutural de desindustrialização do país, está ligada diretamente ao golpe. Tanto é verdade que, até 2014 o número de fábricas crescia, apesar da perda de importância da indústria de transformação no conjunto da economia.
Dada a importância da indústria para o desenvolvimento nacional e a complexidade do tema, o país deveria ter estratégias de longo prazo, envolvendo todos os segmentos importantes da sociedade, para que a indústria recuperasse dinamismo e importância na produção de riqueza. Os motivos para a retomada do desenvolvimento industrial são vários:
1º) Não há registro na história do país que tenha chegado ao desenvolvimento econômico e social, sem uma generalizada industrialização e um forte e ativo Estado nacional. Mesmo economias que utilizaram mais as exportações de produtos primários para elevar a sua renda per capita (como Austrália e Canadá), antes atravessaram períodos de elevada diversificação industrial, elemento essencial das suas estratégias de desenvolvimento;
2º) Existe uma relação empírica e conceitual entre o grau de industrialização e a renda per capita, tanto nos países ricos, quanto nos subdesenvolvidos, como mencionado acima;
3º) Há uma associação estreita entre o crescimento do PIB e o crescimento da indústria manufatureira. A dinâmica da economia brasileira nos últimos anos, mostra o fenômeno: o PIB apresentou queda, em boa parte, porque a indústria de transformação recuou drasticamente, criando um círculo vicioso;
4º) A produtividade é mais dinâmica no setor industrial do que nos demais setores. É a indústria que puxa o crescimento de produtividade da economia;
5º) O avanço tecnológico que se concentra no setor manufatureiro tende a se difundir para outros setores econômicos, como o de serviços ou mesmo a agricultura. Os bens com maior valor adicionado produzidos pela indústria incorporam e disseminam maior progresso técnico para o restante da economia.
Nos países desenvolvidos, que em alguns casos se desindustrializaram, a indústria nacional já cumpriu o seu papel no desenvolvimento econômico, colocando a renda per capita da população em elevado patamar. Ao se desindustrializar, o Brasil está perdendo a sua maior conquista econômica do século XX. Entre 1930 e 1980, a economia brasileira cresceu a elevadas taxas (6,8%, entre 1932-1980) baseado no chamado “processo de substituição de importações”, com fortes incentivos estatais à industrialização através das políticas cambial, tarifária e fiscal.
Caberia neste momento um vigoroso projeto nacional, que possibilitasse a retomada da indústria do país. Ou seja, seria fundamental realizar exatamente o oposto do que está fazendo o governo de Bolsonaro, que está destruindo as ferramentas de execução de política econômica. O conjunto de medidas encaminhadas ou anunciadas pelo governo tendem a debilitar ainda mais a indústria. Venda de estatais estratégicas sem política de valorização dos ativos, entrega do pré-sal e de outros recursos naturais, achatamento do mercado consumidor interno via arrocho salarial, regressão em décadas na regulamentação do trabalho, esvaziamento do BRICS, fragilização do Mercosul, tudo isso enfraquece ou dificulta muito a possibilidade de crescimento de uma indústria robusta no país.
Evidente, não se trata de um equívoco, mas de um projeto dos governos a partir do golpe de 2016. A destruição da indústria, e a transformação do Brasil num fornecedor de commodities baratas para os países centrais, não são efeitos colaterais, ou “erros”, da política econômica desenvolvida desde Michel Temer, e sim parte constitutiva de um projeto de recolonização do Brasil. Guedes/Bolsonaro apenas deram continuidade à política entreguista que vem sendo implementada desde o golpe.
O debate sobre indústria e desenvolvimento é bastante oportuno, porque se aproxima a celebração de 200 anos de Independência Nacional, momento crucial na história do país. Gostemos ou não do fato, a construção do Brasil, da qual faz parte sua independência de Portugal, é um acontecimento de grande relevância para os brasileiros e para todo o mundo. Mesmo sendo um país subdesenvolvido, com milhares de problemas, a constituição do Brasil enquanto nação tem grande relevância mundial, nos aspectos econômico, político, cultural e social. Por exemplo, a classe trabalhadora brasileira, de quase 108 milhões de pessoas é superior à população total de praticamente todos os países da América, com exceção do próprio Brasil, EUA e México. Portanto, a independência de um país como esse é extremamente importante, devendo ser valorizada e conhecida por todos os brasileiros. Não devemos confundir posicionamento crítico com o processo de independência do Brasil, que é fundamental, com negação desse fato muito importante.
O governo ilegítimo de Bolsonaro se limita a fazer demagogia com a data e realizar atos comemorativos destituídos de conteúdo nacional autêntico. As ações são de aparência, sem qualquer gesto efetivo de defesa do Brasil e de sua população. O caráter antinacional do governo Bolsonaro se revela não por atos vazios, mas por ações concretas: acaba de entregar a Eletrobrás, está desmontando a Petrobrás, e é responsável pela maior distribuição de dividendos do mundo, entre as petroleiras, para deleite dos especuladores estrangeiros. Todas são ações contra o desenvolvimento do Brasil e o bem-estar de seu povo (têm muito mais medidas nesse sentido), que deveriam ser dois pressupostos da industrialização no país.
Veja em: https://outraspalavras.net/estadoemdisputa/reindustrializacao-como-condicao-para-a-soberania/
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