Um estrategista chinês destacado sustenta: seu país não pode abandonar o sistema hoje hegemônico – mas precisa, em paralelo, construir um novo, baseado em outros valores. E só poderá fazê-lo em aliança com o Sul Global
Por: Yang Ping
Ninguém mais contesta a emergência da China no cenário global. Depois de tornar-se, desde 2010, a maior economia do planeta (no critério “paridade do poder de compra”, que exclui a valorização artificial das moedas), o país passou, nos últimos anos, a exercer peso político destacado. Sua diplomacia recolocou em diálogo Arábia Saudita e Irã, dois rivais atávicos no Oriente Medio e persegue um caminho para a paz na Ucrânia. Seu governo lançou, há meses, um feixe notável de proposições ligadas à colaboração civilizatória, ao desenvolvimento e à segurança internacional. Mas como os pensadores chineses veem seu país e o mundo?
O jornalismo comercial brasileiro não busca informar a respeito. Está preso a preconceitos coloniais e não assimilou o declínio do eurocentrismo. Surge, em consequência, um abismo informativo. Para ajudar a saná-lo, Outras Palavras abriu, em 27/4, uma coluna semanal a respeito. A iniciativa tira proveito de outra, anterior. O Instituto Tricontinental, dirigido pelo pensador indiano Vijay Prashad, passou a traduzir publicar, também em abril, artigos selecionados da revista teórica chinesa Wenhua Zongheng (文化纵横). Nossa coluna irá reproduzi-los, bem como localizar e apresentar aos leitores outros artigos que expressam o pensamento chinês contemporâneo.
O texto abaixo é particularmente importante. Intitulado originalmente “A Crise na Ucrânia e a construção de um Novo Sistema Internacional”, foi publicado em junho de 2022, logo após o início do conflito na Europa. Seu autor, Yang Ping, constata a hipocrisia da ordem liberal, que prega o “respeito à lei” e o “direito à propriedade” mas não hesitou em sequestrar os fundos russos depositados no exterior (aproximadamente 400 bilhões de dólares), quando isso lhe foi conveniente. Nem duvida em lançar-se agora a um movimento de “desglobalização”, que visa precisamente impedir o acesso da China a tecnologias.
Yang Ping sugere um caminho para seu país. Ele não pode desligar-se agora de uma ordem internacional a que está muito ligado. Mas precisa empenhar-se em construir um sistema alternativo. E deve enxergar que, durante algum tempo, ambos sistemas – o hegemonizado por Washington e o que Pequim pode lançar – conviverão e se interpenetrarão. Fique com o artigo e aguarde nossas próximas traduções. (Antonio Martins)
A eclosão da crise na Ucrânia não apenas alterou o cenário geopolítico, mas afetou drasticamente a atual ordem internacional. Particularmente, a imposição de extensas sanções dos Estados Unidos e outros países ocidentais à Rússia comprometeu as regras do sistema internacional vigente, revelando sua verdadeira natureza coercitiva. Essa crise deve servir como um forte alerta para a necessidade de que a China aprofunde sua “análise de pior cenário possível” (底线思维, dǐxiàn sīwéi) e considere seriamente a construção de um novo sistema internacional, paralelo a atual ordem dominada pelo Ocidente, como um objetivo primordial.
Preparação para crises iminentes
O atual sistema internacional é dominado pelos países ocidentais, liderados pelos Estados Unidos, e é capitalista liberal por natureza. Nos períodos em que o capitalismo liberal funciona sem problemas aparentes, esse sistema se expande globalmente e parece ser justo e baseado em regras, sendo capaz de incluir a maior parte dos países e regiões do mundo. No entanto, em períodos de crise, o capitalismo liberal se deforma, abandona as regras internacionais estabelecidas ou procura criar novas, o que pode ser exemplificado pela crescente desglobalização, quando a nação hegemônica renuncia a seus supostos deveres de liderança e retorna a política do poder.
Em meio a crise na Ucrânia, os Estados Unidos e os países ocidentais desrespeitaram as normas internacionais, ao expulsar a Rússia da arquitetura financeira internacional, a saber, do sistema SWIFT (abreviação, em inglês, de Sociedade para Telecomunicações Financeiras Interbancárias Mundiais), confiscar ativos russos – pessoais e do Estado – e congelar as reservas cambiais do país. Tais medidas extrapolam os meios não violentos de confrontação tipicamente empregados pelos Estados-nação, como guerras comerciais, bloqueios tecnológicos, embargos ao petróleo, e contradizem abertamente os princípios liberais atemporais segundo os quais “as dívidas devem ser pagas”, “a propriedade privada é sagrada”, entre outros. Essas violações flagrantes da chamada “ordem baseada em regras” revelaram o caráter arbitrário, ilegítimo e parcial do sistema internacional, bem como o modo pelo qual o mesmo é manipulado pelos Estados Unidos e seus aliados para disciplinar violentamente outros países.
De uma perspectiva chinesa, a crise na Ucrânia é um alerta de que a China deve se preparar para cenários na qual será alvo de medidas hostis como as mencionadas anteriormente. É preciso reexaminar a atual ordem internacional para obter uma compreensão precisa tanto sobre seus benefícios como sobre suas desvantagens, abandonando quaisquer ilusões sobre sua justiça e viabilidade de longo prazo. E, ao passo que a China participa e maximiza a utilidade do sistema atual, é necessário simultaneamente preparar-se para a construção de uma nova ordem internacional.
Considerando o tamanho da China, a tarefa de rejuvenescimento da nação chinesa requer muito mais do que uma estratégia de “circulação doméstica” (内循环, nèi xúnhuán). Para alcançar industrialização e modernização, a China deve se engajar com o mundo e desenvolver uma “circulação internacional” (外循环, wài xúnhuán) mais abrangente, por meio do acesso a recursos, tecnologias e mercados externos. A tarefa central da política de reforma e abertura1 nas últimas quatro décadas tem sido abrir o país para o exterior e participar no sistema global para promover um ambiente internacional mais favorável à busca pela modernização. Ao mesmo tempo, a China teve que tomar medidas necessárias quando aspectos hostis do atual sistema ameaçavam os interesses fundamentais do país. Na situação atual, é preciso, por um lado, que a China enfrente com firmeza a manipulação do atual sistema pelos Estados Unidos e os países ocidentais, e, por outro, que comece a construir um novo sistema internacional, mais justo e democrático, em parceria com os países em desenvolvimento.
O destino histórico da China é estar com o Terceiro Mundo
A ordem mundial vigente não foi formatada apenas pela China, Rússia, Estados Unidos e Europa. Países e regiões da Ásia, África e América Latina também criaram uma diversidade de redes regionais em meio ao declínio do poder dos Estados Unidos. Trabalhar junto a outros países em desenvolvimento é necessário para que a China fortaleça os esforços para construir um novo sistema internacional. Desde que foi proposta pelo presidente Xi Jinping, em 2013, a Iniciativa Cinturão e Rota (ICR)2 tem criado, de fato, as bases para tal cooperação e para a concretização de um novo sistema.
Desde que a República Popular da China foi fundada em 1949, o Terceiro Mundo consistentemente proporcionou novos espaços para a China sobreviver e crescer, assim como novas fontes de fortalecimento, sempre que o país enfrentou pressões de grandes potências. Nisso estão incluídos os movimentos de libertação nacional da Ásia, África e América Latina nas décadas de 1950 e 1960, a Conferência de Bandung de 1955 e o Movimento dos Não-Alinhados (MNA), a teoria dos Três Mundos de Mao Tse-Tung, desenvolvida nos anos 1970, a ênfase na cooperação Sul-Sul durante as primeiras fases da reforma e abertura nos anos 1980, a criação do mecanismo dos BRICS no início do século XXI e, mais recentemente, o desenvolvimento da ICR na última década. Ao longo dos últimos 70 anos, a China adotou uma ampla gama de política externa, desde a política de “pender para um lado”3 (一边倒, yībiāndǎo) com a União Soviética nos anos 1950, à política de “integração com o mundo”4 (与国际接轨, yǔ guójì jiēguǐ) (ou com os Estados Unidos, para ser exato) na virada do século. No entanto, consciente ou inconscientemente, a China recorreu sistematicamente ao Terceiro Mundo sempre que percebeu sua independência e soberania ameaçadas.
Essa relação com o Terceiro Mundo é o destino histórico da China. Na medida em que se torna um importante polo mundial e enfrenta a estratégia hostil de contenção do poder hegemônico dos Estados Unidos, hoje a China não pode seguir a política de alianças estabelecida pelos Estados Unidos e a União Soviética durante a Guerra Fria. A divisão do mundo em blocos antagônicos conduziria a humanidade à beira da guerra e a uma catástrofe global. Em vez disso, a China deveria perseguir uma política externa independente e não alinhada, focada em reunir os diversos países do Terceiro Mundo – que constituem a maioria global – para forjar novas formas de parceria, estabelecer novas redes multilaterais e criar um novo sistema internacional.
Refletindo sobre as práticas e experiências da ICR até agora, e considerando os desafios colocados pela crise na Ucrânia, a abordagem da China em direção a construção de um novo sistema internacional deveria ser guiada pelas seguintes considerações:
Em primeiro lugar, a orientação da China deve se basear em interesses estratégicos, mais do que comerciais. A China não pode se preocupar apenas com a exportação de sua capacidade produtiva e capital, ou com assegurar o acesso das empresas chinesas a recursos e mercados externos. Em vez disso, deve priorizar o que é necessário para garantir sobrevivência estratégica e desenvolvimento nacional. Ao adotar essa perspectiva estratégica, fica evidente que a abordagem de muitas empresas chinesas e governos locais em direção a outras nações e regiões5, como parte da Iniciativa Cinturão e Rota, não é sustentável, porque priorizam interesses comerciais e tendem a ignorar objetivos políticos e estratégicos.
Em segundo lugar, a criação de um novo sistema internacional requer o desenvolvimento de uma nova visão, filosofia e ideologia que guiem e inspirem os esforços para tal construção. Nesse sentido, são insuficientes os princípios da ICR de “consulta extensa, contribuição conjunta e benefícios compartilhados” (共商共建共享, gòngshāng gòngjiàn gòngxiǎng). Enquanto os Estados Unidos mobilizam o campo ocidental com a bandeira de “democracia versus autoritarismo”, a China deve levantar com firmeza a bandeira da paz e do desenvolvimento, unindo e liderando o vasto mundo em desenvolvimento. Ao mesmo tempo, deve apelar e persuadir os Estados europeus a se somarem a esta causa. O chamado global de Xi Jinping para construir uma “comunidade de futuro compartilhado para a humanidade”, (人类命运共同体, rénlèi mìngyùn gòngtóngtǐ) deve ser adaptado à nova situação internacional. O conceito chinês de “prosperidade comum e desenvolvimento comum” deveria ser compartilhado com o mundo e promovido como valor fundamental na construção de um novo sistema internacional.
Em terceiro lugar, uma “Internacional do Desenvolvimento” (发展国际, fāzhǎn guójì) deve ser institucionalmente estabelecida para criar um novo sistema global. Diferente dos mecanismos ocidentais de aliança, como o Grupo dos Sete (G7) e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), que são dominados por uma minoria de países ricos, um novo sistema global deve responder a questão fundamental enfrentada pela grande maioria do mundo: como os países em desenvolvimento podem se organizar mais efetivamente sob o princípio do não alinhamento. Iniciativas pouco organizadas e não vinculantes, como conferências e declarações, são totalmente inadequadas para essa tarefa. Um mecanismo institucional, como uma “Internacional do Desenvolvimento”, deveria ser promovido e construído para impulsionar ações organizacionais mais poderosas e desenvolver redes de conhecimento e cultura, de comunicação e mídia, de cooperação econômica, entre outros projetos. Em síntese, formas de ações organizadas sob o mandato da paz e do desenvolvimento, devem ser estabelecidas e experimentadas.
A relação entre os dois sistemas
A construção de um novo sistema não significa o abandono do atual.
Nos quarenta anos de reforma e abertura, a direção e objetivo da China foi a integração à ordem internacional existente. Tendo desenvolvido tardiamente sua industrialização e modernização, a China não teve escolha senão aprender com os países ocidentais e absorver suas experiências e conhecimentos avançados. Romper com esse sistema inevitavelmente conduziria a China de volta ao velho caminho da política de “portas fechadas”6 (闭关锁国, bìguānsuǒguó) dos anos 1960 e 1970, isolando o país das economias avançadas do mundo contemporâneo.
Ultimamente, a China percorreu um longo caminho no sentido da globalização e se beneficiou disso. A reforma e a abertura se uniram aos interesses básicos do povo chinês. Por isso, não é viável e nem desejável abrir mão dos benefícios proporcionados pela participação no sistema vigente.
Mas isso não significa, absolutamente, negar a necessidade urgente de preparação para a ameaça de sabotagem ao sistema global vigente pela aliança ocidental liderada pelos Estados Unidos. O desenvolvimento de um novo sistema internacional e a participação ativa no atual sistema são dois processos que podem ser implementados simultaneamente, e sem conflitos. Ambos os sistemas irão se sobrepor e interpenetrar um ao outro. Quando as mudanças quantitativas acumuladas pelo novo sistema se transformarem em mudanças qualitativas, uma nova ordem surgirá naturalmente.
Veja em: https://outraspalavras.net/descolonizacoes/a-china-desafiara-a-ordem-norte-americana/
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