Maduro convocou referendo sobre anexar região que cobre a maior parte do país vizinho. Para especialistas, iniciativa visa tirar foco de primárias da oposição venezuelana e dar cheque em branco ao governo.
Por: Andrea Ariet | Créditos da foto: Patrick Fort/AFP/Getty Images. O Essequibo é uma região rica em fauna, flora e minerais, e tem imensas reservas de petróleo em sua costa
A histórica disputa territorial entre a Venezuela e a Guiana sobre a região de Essequibo tomou um novo rumo nas últimas semanas. Embora o conflito esteja sem solução há mais de um século, dois fatos recentes apontam para o agravamento das tensões.
O presidente venezuelano, Nicolás Maduro, anunciou em outubro a realização de um referendo não vinculante para decidir sobre a anexação dessa área, que representa 74% do território da Guiana. A consulta foi agendada para o dia 3 de dezembro.
Em seguida, a Guiana solicitou uma audiência na Corte Internacional de Justiça (CIJ), que vem examinando o caso desde 2020, e pediu que o tribunal determinasse à Venezuela que cancele o referendo. A decisão ainda não foi tomada.
“Estamos em um pico de tensões diplomáticas sem precedentes na história do conflito territorial entre os dois países”, diz à DW Rocio San Miguel, presidente da ONG venezuelana Social Watch.
Referendo questionável
Maduro anunciou em 23 de outubro a convocação do referendo, e para alguns especialistas a escolha da data indicou tratar-se de uma reação ao resultado das primárias da oposição venezuelana. Um dia antes, mais de 2,5 milhões de eleitores haviam escolhido María Corina Machado – que segue inelegível – para concorrer contra Maduro nas eleições presidenciais de 2024.
“Por que trazer à tona uma questão que convoca o espírito mais fervoroso dos venezuelanos após esse resultado eleitoral? Sem dúvida, para instrumentalizá-lo como um elemento que desviará a atenção do profundo impacto político [das primárias]”, diz San Miguel.
Analistas também questionaram a redação das cinco perguntas da consulta e até mesmo a sua constitucionalidade, bem como possíveis repercussões no direito internacional público.
As perguntas são “perversas em sua concepção”, e algumas, como a terceira, “têm o objetivo de abandonar o processo perante a Corte Internacional de Justiça, o que será um erro histórico para a Venezuela”, diz San Miguel. A quarta e a quinta são “um cheque em branco” que poderia agravar o conflito, inclusive com consequências militares”, acrescenta.
Essa opinião é compartilhada por Yoel Lugo, cientista político da Universidade Rafael Urdaneta (URU), em Maracaibo. “O governo de Maduro almeja obter um cheque em branco para que possa considerar várias opções, inclusive a militar, e assim estender seu mandato e adiar a eleição presidencial de 2024 por meio de um possível ‘estado de emergência'”, diz.
Para Jesús Castillo Molleda, cientista político e diretor a empresa de análises Polianalitica, o referendo tem mais uma consequência: colocar em xeque a opinião pública da oposição. “Uma coisa é ser contra o governo, outra é ser contra a defesa de um território que os venezuelanos historicamente dizem que pertence à Venezuela”, diz ele à DW, acrescentando que o próximo dia 3 de dezembro servirá para o governo nacional calibrar suas estruturas políticas.
Disputa histórica
O Essequibo, conhecido como Guiana Essequiba na Venezuela, é um território rico em fauna, flora e minerais e tem uma área de cerca de 160 mil quilômetros quadrados, a oeste do rio de mesmo nome, representando cerca de dois terços da Guiana.
No século 19, quando a Guiana ainda era uma colônia britânica, ela delimitou seu território a leste do rio, mas gradualmente expandiu-se para o oeste, que já fazia parte da Capitania Geral da Venezuela. Uma disputa em 1841 “deixa claro que as autoridades britânicas já reconheciam a fronteira fluvial do rio Esequibo”, diz Lugo.
A descoberta de depósitos de ouro e a chamada Linha Schomburgk, que empurrou a fronteira da Guiana Britânica para o oeste, anexando o atual território em disputa, motivou a criação de um tribunal arbitral em Paris para decidir a respeito. A sentença, emitida em 1899, “retirou da Venezuela todo o Esequibo”, diz Jorge Morán, cientista político da Universidade Rafael Belloso Chacín. A Venezuela, porém, considerou essa decisão “inválida e fraudulenta”, acrescenta Morán, citando indícios de imprecisões e parcialidade dos árbitros.
O Acordo de Genebra de 1966 – que a Venezuela defende atualmente – buscava uma solução política viável e eficaz para o conflito, ao mesmo tempo em que admitia a existência da disputa sobre a sentença arbitral de 1899. Mas as negociações se arrastaram sem resultados e, após esgotados todos os procedimentos, a ONU encaminhou o caso à CIJ, também por insistência da própria Guiana. Em 2020, o tribunal concordou em examinar o caso, mas a Venezuela não reconhece sua legitimidade para tal.
Com o referendo de 3 de dezembro, a Venezuela buscaria consenso interno sobre a rejeição histórica da sentença arbitral de 1899, ratificaria o apoio ao Acordo de Genebra e recusaria novamente a legitimidade da CIJ para decidir sobre o caso.
Reservas de petróleo
O conflito foi exacerbado por descobertas, a partir de 2015, de imensas reservas de petróleo na costa da Guiana, que atraíram grandes consórcios internacionais, sendo a americana ExxonMobil a petroleira mais presente na região.
Hoje a Guiana tem uma reserva estimada em 11 bilhões de barris, o que equivale a cerca da 75% da reserva brasileira de petróleo. Isso está trazendo muito dinheiro ao país e acelerando o seu crescimento, e chamou a atenção de Maduro – que afirma que a zona marítima em frente ao Essequibo é, na verdade, da Venezuela.
“Acho que a Guiana se aproveitou do desinteresse e da irresponsabilidade dos governos de Hugo Chávez e Nicolás Maduro, especialmente do primeiro, que na prática abandonou a reivindicação do Essequibo”, diz Morán.
Desde 2020, a Venezuela participou de duas audiências da CIJ, mas defendeu que o tribunal não tem jurisdição sobre o assunto e se concentrou no Acordo de Genebra.
Resolução pacífica?
Na avaliação de San Miguel, a Venezuela deveria usar a CIJ como um meio de resolver a disputa, em vez de se distanciar dela, e buscar uma solução baseada nas regras do direito internacional.
Isso seria importante, diz, “para solicitar que cesse a concessão de recursos para a exploração de recursos naturais no território de Essequibo” e, ao mesmo tempo “para acabar com a presença de tropas militares da Guiana no território reivindicado”.
Para Lugo, “nenhuma decisão unilateral será benéfica para os mais de 125 mil habitantes do território de Essequibo ou para os mais de 30 milhões de venezuelanos que anseiam por ver o território histórico e legitimamente venezuelano anexado ao seu mapa”.
Veja em: https://www.dw.com/pt-br/a-disputa-hist%C3%B3rica-entre-venezuela-e-guiana-pelo-essequibo/a-67440066
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