A filósofa e militante feminista argentina Verónica Gago analisa como Javier Milei conseguiu se catapultar com a crise mundial do neoliberalismo e porque o seu governo deve ser uma ameaça fatal para as mulheres e trabalhadores pobres.
Por: Chryslen Mayra e Isadora Emanuelly Gonçalves | Créditos da foto: Reprodução. Javier Milei (à esq.) em imagem publicada pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP)
Afilósofa, politóloga e militante do movimento argentino “Ni una Menos”, Verónica Gago, veio ao Brasil para um ciclo de palestras, iniciadas na Feste Literária Pirata das Editoras Independentes (FLIPEI), sobre o último livro escrito em coautoria com as intelectuais feministas Lucí Cavallero e Silvia Federici. A vinda de Gago, já prevista anteriormente, coincidiu com a vitória do ultra neoliberal Javier Milei, com mais de 55% dos votos, na Argentina.
Os temas apresentados pelas intelectuais em todas as atividades que participaram tocavam nos perigos dos projetos neoliberais e do endividamento para a vida das mulheres e demais identidades políticas da América Latina. As autoras enfatizaram a necessidade, apresentada pela economia feminista, de dar corpo à financeirização da vida, de tornar didáticas as gramáticas econômicas normalmente utilizadas por economistas homens, brancos e da classe dominante.
Economia feminista: quem deve a quem?
Oabismo existente entre as mulheres e a gramática econômica faz com que estas não se sintam integrantes da economia, quando elas são as maiores mantenedoras da economia nacional e afetadas pelo neoliberalismo e pelo endividamento da vida produzido, sobretudo, nos últimos 20 anos. Por este motivo, falar de economia feminista tem duas funções importantes para a economia geral: desfetichizar a relação entre mulheres e finanças, e, ao fazê-lo, entender que os trabalhos reprodutivos – historicamente não pagos – e as atividades realizadas pelas mulheres são fundamentais na manutenção da sociedade.
Trata-se da indução de um processo de desconstrução deste inventário de gestos cotidianos contido nos pressupostos do mainstream que sujeitam às mulheres a mais horas de trabalho e mais violência. Ou seja, desvelar ou trazer ao campo da essência o que foi invisibilizado ou não-reconhecido: os corpos femininos, seja no ambiente doméstico ou no interior do mercado de trabalho.
Cabe destacar, ainda, a relevância do estabelecimento de conexões entre a macroeconomia e a vida cotidiana, de forma a compreender os vínculos entre a questão da dívida do Fundo Monetário Internacional (FMI) e o empobrecimento e exploração desses setores trabalhadores invisibilizados. É justamente na promoção desse reconhecimento que está situada a desobediência epistêmica e política dos movimentos feministas e segundo a qual eles devem nutrir-se a fim deslegitimar os discursos neoliberais e politizar as questões tributária e fiscal na Argentina, mas também no Brasil e em outros países da América Latina.
O retorno do neoliberalismo reacionário
Oprograma político de Javier Milei, que propõe uma série de privatizações, redução completa das funções do Estado – especialmente o gasto público – e entrega destas funções para os interesses privados, afeta diretamente os corpos das mulheres. Mulheres que terão que pagar pela saúde, pelo acesso à educação de qualidade e que se endividarão ainda mais com esta entrega econômica ao FMI.
Verónica Gago explica que a vitória de Milei é o resultado de uma saturação popular com a situação política da Argentina, com uma inflação de 140% que impossibilita a vida das pessoas, especialmente pela desvalorização da moeda argentina. Esta insatisfação é capturada pela extrema direita com a figura de Javier Milei, canalizando-a na direção de políticas neoliberais que, mais do que resolver o problema, agravam a situação de crise econômica que a Argentina vive.
Para Gago, o pacto entre Milei e o ex-presidente Mauricio Macri (2015-2019) é o exemplo da continuidade de políticas neoliberais que a Argentina já vivia e o agravamento da situação econômica das mulheres. Nas palavras dela:
“Isto significa que os mesmos que governaram entre 2015 e 2019 vão regressar ao poder com as mesmas receitas, só que agora numa ‘versão de choque’. Eles dizem que tem sido muito gradual e que agora o ajuste dos próximos seis meses vai acabar com cerca de 80% da população pobre, certo? Esse será o resultado, dizem eles, das suas políticas, mas deve ser feito para limpar a economia. Esse é o discurso dele. E a verdade é que se trata de uma proposta suicida. Em suma, pensamos em como sair de uma crise que significa efetivamente que hoje as nossas sociedades não são sociedades democráticas. Portanto, os discursos políticos que falam em defender a democracia não impactam muita gente porque o que é vivido como cotidiano não é vivido como vida democrática, então há algo da direita e da extrema direita que ficou como uma leitura realista da falta de democracia em nossos países, certo? Esta é a situação econômica de que falamos.”
Gago enfatizou, ainda, que Javier Milei utilizou um discurso misógino na campanha, um claro ataque aos movimentos feministas que se mostraram opositores à ele desde o começo, especialmente pela posição do ultra neoliberal contra o aborto e a educação sexual integral. Esta misoginia, também, tem gerado e fomentado uma série de violências em espaços públicos contra lésbicas e pessoas queer.
Os perigos deste novo-velho cenário da política argentina é, justamente, os “afetos odiosos” que as propostas de Milei fomentam:
“O que ele consegue captar é uma enorme raiva e frustração por parte de boa parte da população, o que é completamente legítimo e real, para traduzi-lo em afetos odiosos realmente muito preocupantes. E acho importante desmistificar a sua figura porque acredito que agora ele terá uma enorme visibilidade na imprensa internacional.”
Veja em: https://jacobin.com.br/2023/12/a-extrema-direita-esta-manipulando-a-politica-dos-afetos-odiosos/
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