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A Modernidade e sua crise – vistas da China

Ao abordar a hegemonia ocidental nos últimos 500 anos, pensador sustenta: desigualdade, individualismo e tentação hegemônica produziram impasse civilizatório. Tradição chinesa propõe sistema alternativo de valores – por isso avança

Por: Yao Zhongqiu

Que tẽm os chineses a dizer sobre a Modernidade, este tema que provoca tanta controvérsia no Ocidente? Comprometida em colocar seus leitores em contato com o pensamento chinês contemporâneo, nossa coluna traz uma reflexão provocadora de Yao Zhongqiu, pensador político na Universidade de Renmin, uma das mais importantes do país. Sua visão surpreende pelo esforço para evitar o maniqueísmo e a polarização.

A civilização chinesa e a ocidental, que passaram a manter contato duradouro há 500 anos, foram capazes de colaborar por séculos, diz ele. Os primeiros contatos culturais mais intensos surgiram com a chegada dos missionários católicos. Eles impressionaram-se com uma civilização distinta da sua. Defrontaram-se com ideias que eram exóticas na Europa, mas iriam alimentar o Iluminismo. Os seres humanos são sujeitos, e não existe um “criador”; os seres humanos devem buscar sua própria felicidade em vez de tentar ascender ao reino de Deus; podem ter convicções e relações morais sólidas, independentes da religião; o Estado pode estabelecer a ordem sem depender da religião.

Mas a China, prossegue Yan Zhongquiu, envolveu-se em disputas internas e em uma sucessão de dinastias. Tornou-se incapaz de encarar um Ocidente que conquistava a América, saqueava sua prata, tranformava-a em moeda e, pouco mais tarde, desenvolvia a indústria e as armas capazes de subjugar o mundo. Derrotados nas duas “guerras do ópio”, os chineses vivem, a partir de meados do século XIX, seu “século de humilhações”.

Ele termina com a revolução de 1949 mas, também, com uma nova relação com o Ocidente. Baseia-se na ideia confucionista de que não se deve anular o Outro, mas assimilar o que ele pode aportar. Atrasada, a China assimila primeiro a indústria e os métodos de gestão soviéticos e em seguida os norte-americanos.

Assimilar, contudo, significa transformar. Yan Zhongquiu está convencido de que a crise civilizatória atual assenta-se, também, no esforço de Washington por manter a qualquer custo seu papel dominante. Mais crucial: ele pensa que a civilização chinesa, segundo mostra sua história, não cultiva ambições hegemonistas. Estaria apta, precisamente por isso, a sugerir uma modernidade distinta da Ocidental, o que inclui o empenho por super as lógicas capitalistas e por valorizar, ao mesmo tempo a unidade (todos dependemos dos destinos do planeta) e da diversidade (nenhuma concepção de mundo tem o direito de se sobrepor às demais).

O texto de Yao Zhongqiu (姚中秋), cujo título original é “Cinco séculos de transformações — uma perspectiva chinesa”, foi publicado pelo Instituto Tricontinental, que está traduzindo, em diversos idiomas, uma seleção de artigos da revista chinesa Wenhua Zongheng. Além de professor em na Escola de Estudos Internacionais de Renmin (localizada em Pequim), o dirige o Centro de Estudos Políticos Históricos da instituição. Publicou numerosos estudos e traduções sobre a história do pensamento e instituições chinesas, e atualmente se dedica a política histórica, teoria de vanguarda partidária e sistemas políticos mundiais modernos. Suas últimas publicações incluem O Momento Chinês na História Mundial (世界历史的中国时刻) e Longa e Duradoura: Uma História Política da Civilização Chinesa (可大可久:中国政治文明史). Os demais textos de Diagonais Chinesas podem ser lidos aqui. (Antonio Martins)

A humanidade passa por uma agitação global de escala inédita em 500 anos: principalmente, o declínio relativo da Europa e dos Estados Unidos, o ascenso da China e do Sul Global, e a consequente transformação revolucionária do cenário internacional. Embora seja usual dizer que a era do domínio global do Ocidente tenha durado cinco séculos, isso é, precisamente, um exagero. De fato, Europa e Estados Unidos ocuparam suas posições como poderes hegemônicos por cerca de 200 anos, após alcançarem suas fases iniciais de industrialização. A primeira revolução industrial foi um ponto de inflexão na história mundial, impactando significativamente a relação entre o Ocidente e o resto do mundo. Atualmente, a era da hegemonia ocidental chegou ao fim e uma nova ordem mundial está emergindo, com a China jogando um papel predominante nesse processo. Esse artigo explora como chegamos a atual conjuntura global, analisando as diferentes fases na relação entre a China e o Ocidente.

Fase I: Mudanças no equilíbrio entre a China e o Ocidente

O primeiro encontro entre a China e a Europa remonta a era das expedições marítimas nos séculos XV e XVI, quando o diplomata e almirante chinês Zhèng Hé (1371-1433) embarcou em suas Viagens Oceânicas (郑和下西洋, Zhèng Hé xià xīyáng) (1405-1433), seguido pelas expedições marítimas portuguesas e espanholas para a Ásia1. Desde então, a China estabeleceu contato direto com a Europa pelas rotas oceânicas.

Durante esse período, a China era governada pela dinastia Ming (1388-1644), que adotou uma visão de mundo orientada pelo conceito de tianxia (天下, tiānxià, “tudo sob o céu”)2. Este sistema de pensamento categorizou a humanidade em duas civilizações principais: a chinesa, que cultuava o céu, e a ocidental que, em geral, cultuava deuses no sentido monoteísta do termo3. É importante notar que, nessa era, os chineses tinham uma compreensão abrangente do Ocidente, considerando que este englobava todas as regiões que se estendiam ao noroeste, desde a Mesopotâmia ao Mar Mediterrâneo e, então, até a costa Atlântica, e não a noção contemporânea que, em geral, limita o Ocidente aos Estados Unidos, Canadá, Austrália, Nova Zelândia e Europa. Por sua vez, a civilização chinesa se estendia para o sudeste, das margens do Rio Amarelo até a bacia do Rio Yangtze em direção à costa. As duas civilizações se encontrariam na confluência dos oceanos Índico e Pacífico e, a partir de então, pode-se falar propriamente em uma história mundial. Ao mesmo tempo, tianxia propõe uma concepção universalista do mundo, na qual considera-se que a China e o Ocidente compartilham a mesma “ilha mundial”. Separadas pelas montanhas Pamir, da Ásia Central, cada civilização era pensada como tendo sua própria história, embora ainda não houvesse uma história mundial unificada, cada uma mantendo a ordem tianxia em suas respectivas partes da ilha mundial, tendo como base seus próprios conhecimentos.

Embora a dinastia Ming tenha descontinuado as viagens marítimas após a Sétima Viagem de Zheng He, em 1433, algumas ilhas nos mares do Sul (南洋, nányáng, que corresponde aproximadamente ao Sudeste Asiático) foram incorporadas ao sistema tributário do império da China (朝贡, cháogòng). Isso constituiu uma mudança significativa na ordem tianxia, comparada com as dinastias anteriores, Han (202 AEC-9 EC, 25-220 EC) e Tang (618-907 EC), nas quais os tributos eram provenientes dos Estados das regiões ocidentais (西域, xīyù, corresponde aproximadamente a Ásia Central contemporânea). Ainda mais importante foi o fato de que essa expansão em direção ao sudeste abriu o caminho da China para os mares, já que a população chinesa da costa sudeste migrou para os Mares do Sul e, com eles, produtos como seda, porcelana e chá foram introduzidos no comércio marítimo. Em comparação com os períodos de prosperidade das dinastias Tang e Song (960-1279), o comércio marítimo se expandiu, com a economia de Jiangnan (江南, jiāngnán, “sul do rio Yangtze”) majoritariamente centrada em exportações, sendo particularmente dinâmica. Consequentemente, a industrialização foi acelerada e a China se tornou, pela primeira vez, a “fábrica do mundo”.

As nações europeias não tinham vantagem no comércio com a China, no entanto, compensavam seu déficit com a prata extraída das Américas, recentemente colonizadas. Essa prata entrou na China em grandes quantidades e se tornou uma importante divisa, levando à globalização da prata. Enquanto isso, a introdução na China das sementes de batata doce e milho, nativas das Américas, contribuiu para o rápido crescimento da população nacional devido à adaptabilidade desses cultivos a condições adversas.

No entanto, o envolvimento da China na formatação de uma ordem mundial conectada pelos mares também trouxe problemas inesperados para o país, sobretudo um desequilíbrio entre a economia e as instituições políticas e militares. Enquanto a economia penetrou o sistema marítimo, as instituições políticas e militares permaneceram continentais. Essa contradição entre a terra e o mar produziu tensões internas consideráveis, levando, finalmente, ao fim da dinastia Ming. Os conflitos fronteiriços no norte e nordeste exigiam recursos financeiros significativos, porém, naquele período, a maior parte da riqueza da China provinha do comércio marítimo e estava concentrada no sudeste. Consequentemente, a educação progrediu na região costeira, levando ao domínio dos processos políticos na China por servidores públicos-acadêmicos (士大夫, shìdàfū) do sudeste, que impediam reformas tributárias orientadas a melhorar a distribuição de riqueza. Pelo contrário, o sistema tributário tradicional foi fortalecido, impondo maiores encargos ao campesinato4. Essas tensões eventualmente chegariam ao limite; o peso das taxações sobre os camponeses do norte, que viviam majoritariamente do cultivo da terra, levou à migração interna; tais migrantes acabaram por derrubar o regime Ming. Ao mesmo tempo, os recursos militares no norte não eram suficientes, o que levou à crescente influência de forças rebeldes Qing no nordeste e à sua ofensiva oportunista rumo ao sul, culminando no estabelecimento da dinastia Qing (1636-1912) em todo o país.

A dinastia Qing se originou entre o povo Manchu do nordeste da China, cujas raízes culturais eram agrícolas e nômades. Ao passo que as forças Qing marchavam rumo ao sul e fundavam seu império, fizeram grandes esforços para estabelecer o controle sobre as regiões fronteiriças da China no norte e oeste, um arco que se estendia do Planalto da Mongólia às Montanhas Tianshan e ao Planalto Qinghai-Tibete. Por milhares de anos, essas regiões do noroeste eram fonte de instabilidade política, com sucessivas dinastias falhando no intento de unificar o conjunto da China. Ao integrar essas áreas ao Estado Chinês, a dinastia Qing se tornou capaz de alcançar seu objetivo histórico e político de unificação. Essa integração interna também teve impacto na posição internacional da China, com a Rússia se tornando, então, o país vizinho mais importante, e com o redirecionamento da Rota da Seda terrestre ao norte pelo estepe da Mongólia, pela Rússia até o norte da Europa.

Na segunda metade do século XVIII, esses dois “arcos” de desenvolvimento, por terra e por mar, tinham peso equivalente, mas diferiam em seu significado para a China: enquanto a terra provia segurança, os mares eram fonte de vitalidade. Contudo, tanto o desenvolvimento por terra como por mar continham dinâmicas contraditórias: as regiões do estepe noroeste não eram internamente muito estáveis, enquanto as relações de vizinhança com a Rússia e o mundo Islâmico permaneceram estáveis. Por outro lado, os mares do sudeste eram internamente estáveis, mas introduziram novos desafios para a China na forma das relações com a Europa e os Estados Unidos. Essas dinâmicas terra-mar historicamente são colocadas para a China como um impasse singular e até hoje permanecem como uma questão estratégica fundamental.

Por sua vez, os países europeus se beneficiaram mais do comércio direto com a China e ascenderam a uma posição dominante na nova ordem global. Durante o século XVI, sob a crescente decadência da Igreja Católica Romana, o nacionalismo étnico surgia na Europa, culminando na Reforma de Martinho Lutero na Alemanha. Na sequência, a Europa entrou em uma era de construção de Estados-Nação, conhecida como o início do período moderno, caracterizado pelo rompimento da autoridade da Igreja Católica e o estabelecimento da soberania das monarquias seculares, superando algumas das hierarquias e divisões criadas pelos senhores feudais e tornando todos os indivíduos iguais perante a lei do rei. O primeiro país a atingir essa configuração foi a Inglaterra, onde Henrique VIII baniu a Igreja da Inglaterra do pagamento do tributo anual ao Papado em 1533. No ano seguinte, aprovou o Ato de Supremacia, estabelecendo o rei como líder supremo da Igreja Anglicana, que se tornou a religião estatal. Por isso a Inglaterra é reconhecida como primeira nação moderna, ao passo que as mudanças constitucionais eram secundárias.

A Igreja Católica, enfrentando uma crise governamental, buscou abrir novas frentes pastorais e começou a pregar fora da Europa por meio das viagens do “descobrimento”. O Cristianismo gradualmente se tornou uma religião mundial, um dos mais importantes desenvolvimentos dos últimos cinco séculos, com missionários finalmente chegando à China no final do século XVI, depois de muitas reviravoltas.

Os missionários cristãos tinham se preparado para espalhar a mensagem de sua verdade aos chineses, e esperavam que estes fossem “bárbaros”. Mas, para a surpresa dos cristãos, eles descobriram que a China era uma civilização poderosa, com um sistema de governança sofisticado e tradições religiosas. Embora não acreditasse nos deuses personificados dos missionários, o povo chinês tinha um sistema de princípios morais, uma economia altamente desenvolvida e uma ordem estabelecida. Isso inspirou alguns missionários a desenvolver uma verdadeira admiração pela China, que incluiu a tradução de clássicos chineses e o envio destes textos para a Europa, onde tiveram um impacto notável no Iluminismo em Paris5.

Durante o Iluminismo, filósofos ocidentais desenvolveram ideias de humanismo e racionalismo, incluindo as noções de que os seres humanos são sujeitos e que um “criador” não existe; de que os seres humanos deveriam buscar sua própria felicidade em vez de tentar ascender ao reino de Deus; que podem ter convicções e relações morais sólidas, independentes da religião; que o Estado pode estabelecer a ordem sem depender da religião; que o governo direto dos indivíduos pelo soberano é o melhor sistema político, e assim por diante. É importante destacar, no entanto, que esses ideais do Iluminismo, tidos como os que formaram a base da modernidade ocidental, eram conhecimento comum na China por milhares de anos. Desse modo, o fluxo de ideias e ensinamentos da China para o Ocidente por meio dos missionários cristãos pode ser uma importante, senão a única, influência no desenvolvimento da modernização ocidental. É evidente que os países ocidentais foram os principais impulsores da modernização global nos últimos dois séculos, mas essa modernidade evocada bebeu em outras culturas, incluindo a China. É preciso reconhecer e afirmar esse fato para compreender a evolução do mundo hoje.

Em suma, durante a primeira fase da história mundializada, que abrangeu mais de 300 anos desde a primeira metade do século XV até a segunda metade do século XVIII, um sistema mundial integrado começou a se formar, com a China e o Ocidente ajustando, transformando e se beneficiando em suas interações. Da perspectiva chinesa, essa ordem mundial foi, em grande parte, justa.

Fase II: Reviravoltas do destino entre a China e o Ocidente

Na segunda metade do século XVIII, os elevados níveis de industrialização dos países ocidentais asseguraram sua superioridade militar, empregada de forma abusiva para conquistar e colonizar quase todo o Sul Global. Isso aproximou o mundo mais do que nunca, mas em uma relação injusta e, portanto, insustentável.

Entre os países ocidentais, a Inglaterra foi o primeiro a atingir um estágio avançado de industrialização, o que foi possível por uma razão especial: a colonização. O império Britânico se apropriou de enormes riquezas de suas colônias, que também serviam de mercado cativo para as manufaturas britânicas. Essa riqueza e demanda de mercado, combinadas com a população relativamente pequena da Inglaterra, conduziu o desenvolvimento científico e tecnológico, e, em última instância, a industrialização baseada na mineração de combustíveis fósseis (especificamente o carvão), na produção de aço e maquinário. Durante os séculos XVIII e XIX, a Inglaterra se tornaria o país mais rico e poderoso do mundo, com sua riqueza se estendendo para a Europa ocidental e suas colônias, como os Estados Unidos e a Austrália. As pujantes potências europeias conquistaram e colonizaram mundo afora com o uso da força militar, incluindo a maior parte da África, da Ásia e das Américas, chegando às portas da China na primeira metade do século XIX.

Nos séculos anteriores de comércio pacífico com a China, as potências ocidentais acumularam um déficit comercial grande, que buscaram equilibrar por meio do comércio de ópio. Entretanto, devido às graves consequências sociais deste comércio, em 1800 a China proibiu a importação de ópio. Em resposta, as potências ocidentais provocaram duas guerras contra a China – a Primeira Guerra do Ópio (1839-1842) e a Segunda Guerra do Ópio (1856-1860) – com o objetivo de reabrir violentamente esse mercado. Com a derrota da China, vários países ocidentais, entre os quais Inglaterra, França, Alemanha e Estados Unidos, forçaram a assinatura de tratados desiguais que garantiram a essas nações concessões comerciais e territórios, incluindo Hong Kong. Como resultado, a ordem tianxia começou a se deteriorar e a China entrou no período conhecido como o “século de humilhação” (百年国耻, bǎinián guóchǐ).

O retrocesso da China se ancorava no desequilíbrio de longa data entre sua economia marítima e seu sistema político-militar continental. Em primeiro lugar, o mercado chinês dependia fortemente do comércio exterior, mas o governo Qing falhou em desenvolver uma política monetária soberana, resultando em um fluxo comercial constantemente controlado por potências exteriores. A prata importada se tornou a moeda de fato na China e, com a incapacidade do governo em exercer uma supervisão eficaz, o país perdeu a soberania monetária e se tornou vulnerável às flutuações do fornecimento de prata, o que desestabilizou a economia. Em segundo lugar, os recursos naturais da China eram super-explorados para produzir grandes volumes de exportações, resultando em uma severa devastação ambiental. Constrangida tanto pelo mercado como pelas limitações de recursos, o crescimento endógeno da China atingiu um ponto de asfixia, com a estagnação da produtividade, a diminuição do emprego e a população excedente sendo deslocada, o que levou a uma série de grandes rebeliões na primeira metade do século XIX. Esse foi o contexto no qual o Ocidente chegou às portas da China.

Sob a pressão dos problemas internos e das agressões externas, a China embarcou no caminho de “aprender do mundo exterior para se defender da intervenção estrangeira” (师夷长技以制夷, shī yí zhǎng jì yǐ zhì yí), uma questão fundamental da história chinesa ao longo de quase todo o século passado. Apesar de ter sido depreciada por muitos desde os anos 1980, com o início das reformas econômicas da China, essa formulação sintetiza a estratégia do país. Por um lado, a China estudou detalhadamente as principais forças motrizes do poder ocidental, a saber, a produção industrial, o desenvolvimento tecnológico, a organização econômica e a capacidade militar, assim como os métodos para a mobilização social baseada no Estado-Nação. Por outro, a China procurou aprender com outros países para avançar em seu desenvolvimento, assegurar sua independência e se construir com base em seu próprio legado.

Até a metade do século XX, no entanto, esse caminho não produziu mudanças significativas para a China, fundamentalmente devido a inadequação de sua capacidade estatal, ainda mais deteriorada após a derrocada da dinastia Qing em 1911. De fato, uma série de iniciativas levadas a cabo para fortalecer o Estado no fim do período Qing terminaram por gerar novos problemas. Por exemplo, o “Novo Exército” (新军, xīnjūn) estabelecido no final do século XIX em um esforço de modernização militar da China se tornaria uma força separatista. Enquanto isso, as teorias do desenvolvimento propostas pelos servidores públicos-acadêmicos no período, tais como o conceito de “salvação nacional pela indústria” (实业救国, shíyè jiùguó), eram impossíveis de ser implementados devido a falta de habilidade do Estado em prover suporte institucional. Assim, o comércio continuou sendo o setor econômico de crescimento mais dinâmico, o que, apesar de trazer benefícios econômicos de curto prazo, resultou em uma subordinação ainda maior da China ao Ocidente.

No entanto, no período da Segunda Guerra Mundial, que foi precedida pela Guerra de Resistência Chinesa à Agressão Japonesa (1937–1945), a posição internacional do país começou a melhorar, enquanto o Ocidente experimentou um declínio relativo. A Segunda Guerra Mundial e as lutas anticoloniais de liberação nacional infligiram um duro golpe à velha ordem imperialista, já que as potências ocidentais foram forçadas a se retirar, iniciando um declínio na medida em que não eram mais capazes de extrair dividendos coloniais. Países da Ásia, África e América Latina, incluindo a China, conquistaram sua independência. Enquanto isso, a União Soviética, que se estende pela Eurasia, emergiu como um grande rival do Ocidente. Em meio a essas turbulências globais, o peso da China no cenário internacional aumentou dramaticamente e o país tornou-se uma força importante.

Nesse contexto global, a China iniciou sua jornada rumo ao rejuvenescimento nacional com duas prioridades principais. A primeira prioridade era política. Aprendendo com a União Soviética, os partidos Nacionalista e Comunista da China estabeleceram um Estado forte, que era a pedra angular do desenvolvimento econômico ocidental, enquanto a falta de capacidade de organização e mobilização estatal era a principal debilidade da dinastia Qing frente às potências ocidentais. A segunda prioridade era a industrialização, que avançou passo a passo a partir de três fases.

O primeiro marco na industrialização teve lugar após a Revolução Chinesa de 1949 e foi possível pela ajuda da União Soviética, que exportou um sistema completo de indústria básica para a China. Embora esse sistema tivesse sérias limitações, alcançando seu ápice nas décadas de 1970 e 1980, isso permitiu que a China desenvolvesse uma compreensão abrangente da natureza sistemática da indústria, especialmente da estrutura básica da industrialização, ou seja, a indústria pesada.

O segundo marco na industrialização se deu após o estabelecimento das relações diplomáticas entre a China e os Estados Unidos nos anos 1970, quando a China começou a importar tecnologias dos Estados Unidos e de países europeus. Durante essa fase, a China concentrou seu desenvolvimento na costa sudeste, uma região com longa trajetória de indústria e comércio rurais. Apoiando-se no maquinário e conhecimento obtidos na primeira rodada de industrialização, o setor de bens de consumo nas regiões da costa sudeste pode se desenvolver rapidamente em âmbito municipal, a esfera de governo com maior flexibilidade. Ao absorver um grande volume de trabalhadores, o sistema industrial intensivo em trabalho melhorou significativamente as condições de vida da população.

O terceiro marco da industrialização começou na virada do século, e foi impulsionado pela ênfase tradicional de um Estado forte e pelo desejo de continuar a revolução. O governo dedicou sua capacidade para a construção de infraestrutura e a condução do desenvolvimento industrial. Como resultado, a China experimentou crescimento continuado da produção industrial e seguiu avançando ao longo da cadeia industrial, criando o maior e mais abrangente setor manufatureiro do mundo. Assim, o cenário econômico internacional mudou drasticamente.

Hoje a China está em seu quarto marco de industrialização, que gira em torno da aplicação de tecnologias de informação à indústria. No atual período, a preocupação dos Estados Unidos é a de ser superado pela China, o que desencadeou uma mudança fundamental nas relações bilaterais e inaugurou uma era de transformações globais.

Em suma, as mudanças nas dinâmicas entre a China e o Ocidente estiveram no centro da segunda fase da história mundial. Por mais de 100 anos desde o início do século XIX, as potências ocidentais ascenderam, enquanto a China experimentou um declínio. No entanto, desde a Segunda Guerra Mundial, as tendências se inverteram, com a China em ascensão e o Ocidente em declínio. Agora, parece que o ponto crítico dessa relação se aproxima, onde ambos os lados alcançarão posições equivalentes, exaurindo os limites da velha ordem mundial.

Fase III: O declínio da ordem liderada pelos Estados Unidos

Na esteira da ascensão da China, a velha ordem mundial dominada pelo Ocidente foi abalada. No entanto, o detonador de seu colapso é a instabilidade resultante da incapacidade dos Estados Unidos em assegurar o domínio global unipolar que perseguiram após o fim da Guerra Fria.

Historicamente, o império Romano não conseguia alcançar a Índia, muito menos aventurar-se além das Montanhas Pamir. Por outro lado, as dinastias Han e Tang dificilmente conseguiriam manter seu poder, mesmo que tivessem conseguido atravessar essa cordilheira. A estabilidade estrutural do mundo é que as nações se mantenham em equilíbrio, ao invés de que sejam governadas por um único centro.

Mesmo os imensos avanços tecnológicos em transportes e guerras foram incapazes de mudar essa lei de ferro. Antes da Segunda Guerra Mundial, as potências ocidentais penetraram quase todos os cantos do mundo, apesar de seus interesses concorrentes e da necessidade de uso da força para manter suas colônias, esse sistema de governo foi, em certo sentido, mais estável que a atual ordem, por ter distribuído o poder de forma mais ampla entre diferentes países. Enquanto isso, no período do pós-guerra, a União Soviética e o Ocidente formaram dois blocos opostos na Guerra Fria, com cada um dos campos tendo seu próprio espectro de influência e, em alguma medida, sendo equilibrados um pelo outro.

Em contraste, com o fim da Guerra Fria, os Estados Unidos se tornaram a única superpotência a dominar todo o mundo. Os Estados Unidos, como o país ocidental mais recente a ser estabelecido, o último “Novo Mundo” que foi “descoberto” pelos europeus, e o mais populoso dentre tais potências, estava destinado a ser o último capítulo nos esforços do Ocidente por dominar o mundo. Os Estados Unidos anunciaram com convicção que sua vitória sobre a União Soviética constituía o “fim da história”. No entanto, a ambição não pode superar os duros constrangimentos da realidade. Sob domínio exclusivo dos Estados Unidos, a ordem mundial imediatamente se tornou instável e fragmentada. A chamada Pax Americana foi muito curta para ser escrita nas páginas da história. Depois da breve euforia do “fim da história”, sob os governos de Bush e Clinton, a era Obama viu os Estados Unidos iniciarem uma “contração estratégica”, buscando aliviar, pouco a pouco, seus fardos de governo global.

Somados aos custos externos, a busca fugaz de Washington pela hegemonia global também induziu tensões internas. Embora os Estados Unidos tenham obtido muitos dividendos de seu domínio imperial, com o desenvolvimento de um sistema financeiro que permite a alocação global de capital, isso teve um custo. Como diz o ditado chinês, “uma bênção pode ser um infortúnio disfarçado” (福兮祸所依, fú xī huò suǒ yī). O boom do setor financeiro dos Estados Unidos, junto com a especulação volátil que o nutre, provocou a desindustrialização do país, cujos efeitos foram sentidos pelas condições de vida da classe trabalhadora e da classe média. Devido às medidas de autoproteção dos países emergentes, como a China, tornou-se impossível que esse sistema financeiro extraísse integralmente os ganhos externos para cobrir as perdas provocadas pela desindustrialização, sofridas pelas classes populares. Como consequência, os Estados Unidos desenvolveram níveis extremos de desigualdade de renda e se tornaram uma sociedade altamente polarizada, com divisões e antagonismos crescentes entre diferentes classes e grupos sociais.

A desindustrialização está na raiz da crise dos Estados Unidos. Durante o século XIX, as potências ocidentais puderam exercer sua tirania sobre o mundo, incluindo o assédio à China, devido principalmente a sua superioridade industrial, que os permitiu produzir os mais poderosos navios e canhões. A desindustrialização faz com que o fornecimento desses “navios e canhões” se torne insuficiente. Mesmo o sistema industrial-militar dos Estados Unidos tornou-se fragmentado e excessivamente custoso dado o declínio das indústrias que o sustenta. As elites estadunidenses compreenderam a gravidade desse problema, mas os sucessivos governos enfrentaram dificuldades para lidar com a questão. Obama defendeu a reindustrialização, mas não obteve nenhum progresso devido aos impasses entre republicanos e democratas, em uma dinâmica que inibe ações efetivas do governo, denominada por Francis Fukuyama uma “vetocracia”. Trump seguiu essa linha com o slogan oportuno “Torne a América Grande Novamente” (em inglês, “Make America Great Again”), prometendo fazer com que os Estados Unidos fossem novamente a potência industrial mais forte do mundo. Essa intenção também pode ser vista no impulso da atual administração de Biden pela implementação da “lei dos Chips” (em inglês, CHIPS and Science Act) e outras iniciativas que objetivam impulsionar o desenvolvimento industrial interno. Os Estados Unidos teriam que minar o poder dos magnatas do capital financeiro para reviver sua indústria, mas como isso pode ser possível?

Ao contrário da desindustrialização que tem tido lugar nos Estados Unidos, a China está avançando consistentemente em seu quarto marco da industrialização, ascendendo rumo ao topo da indústria manufatureira global, apoiando-se nas fundações sólidas de uma cadeia industrial completa. Sentido a ameaça de que serão ultrapassados em termos de “poder duro” (em inglês, “hard power”), a elite estadunidense declarou a China como um “concorrente”, e a natureza da relação entre os dois países mudou fundamentalmente.

A elite estadunidense há tempos se refere a seu país como “Cidade na Colina”, uma noção cristã segunda qual os Estados Unidos teriam um status excepcional no mundo e seriam um “farol” a ser seguido por outras nações. Essa profunda crença de superioridade significa que Washington não pode aceitar a ascensão de outras nações e civilizações que há milhares de anos têm seguido seu próprio caminho, como a China. A ascensão econômica da China e, consequentemente, sua crescente influência na reformatação da ordem global liderada pelos Estados Unidos, não é nada mais do que um retorno do mundo a um estado de maior equilíbrio. Isso é, no entanto, um sacrilégio para Washington, comparável à rejeição da conversão religiosa para os missionários. É evidente que a boa vontade das elites dos Estados Unidos com relação à China já se esgotou, e que agora estão unidas na construção de uma estratégia hostil contra o país. Irão usar todos os meios para a disrupção do desenvolvimento da China e sua influência no cenário internacional. Por sua vez, a abordagem agressiva de Washington fez com que a China fortalecesse sua determinação em se desprender dos limites do sistema global liderado pelos Estados Unidos. A Pax Americana só permite que a China se desenvolva de forma subordinada aos ditames dos Estados Unidos, e por isso a China não tem escolha senão trilhar um novo caminho e atuar para estabelecer uma nova ordem internacional. Essa disputa entre Estados Unidos e a China certamente irá dominar as manchetes de todo o mundo no futuro próximo.

Ainda assim, há uma série de fatores que diminuem as possibilidades de que essa disputa se desenvolva em termos catastróficos. Em primeiro lugar, os dois países estão separados geograficamente pelo oceano Pacífico. Em segundo lugar, embora os Estados Unidos sejam uma nação marítima adepta ao equilíbrio offshore, são muito menos capazes de empreender incursões por terra, particularmente contra um país como a China, uma potência de mar e terra com grande profundidade estratégica. Como resultado, os esforços dos EUA em lançar uma guerra total contra a China não seriam viáveis. Mesmo se Washington instigasse uma guerra naval no pacífico ocidental, as chances não estariam a seu favor. Além destas duas considerações, os Estados Unidos são, essencialmente, uma “república comercial” (definição inicial do país por um de seus Pais Fundadores, Alexander Hamilton), o que significa que suas ações são fundamentalmente baseadas em cálculos de custo-benefício. A China, pelo contrário, tem longa experiência em lidar com forças externas agressivas6. Somados, esses fatores indicam que uma guerra total entre os dois países pode ser inteiramente evitada.

As mudanças nas posições da China e dos Estados Unidos diferem muito das dinâmicas similares no passado, como a evolução da hegemonia no continente europeu nos últimos séculos. Neste contexto, os estreitos confins da Europa não comportam múltiplas potências, ao passo que o vasto oceano Pacífico certamente o permite. Esse é o elemento principal da relação entre os dois países. Assim, uma vez que China e Estados Unidos irão competir em todas as frentes, contanto que a China continue a incrementar suas forças econômicas e militares, e nitidamente expresse sua disposição de usar este poderio, os Estados Unidos irão recuar, da mesma forma como fez seu suserano anterior, a Inglaterra. Uma vez que os Estados Unidos se retirem do Leste Asiático e do Pacifico Oriental, uma nova ordem mundial começará a tomar forma.

Nos últimos anos, os esforços da China nesse aspecto surtiram efeito, resultando em que alguns setores nos Estados Unidos reconheçam o poder e a determinação da China e, de acordo com isso, ajustem sua estratégia, pressionando países aliados a assumir custos maiores na defesa da ordem liderada pelo Ocidente. Apesar da postura dos países ocidentais, não existe, de fato, uma “aliança das democracias”. Os Estados Unidos sempre basearam seus sistemas de aliança em interesses comuns, entre os quais o mais importante é trabalhar juntos não para alcançar qualquer ideal superior, mas sim para sugar o sangue de outros países. Uma vez que esses países não consigam mais assegurar lucros externos juntos, eles terão que competir entre si e seu sistema de alianças rapidamente será rompido. Em tal situação, os países ocidentais retornariam a uma situação similar ao período que antecedeu a Segunda Guerra Mundial, enfrentando-se uns contra os outros, em vez de dividir o mundo em colônias. Essa batalha de nações, embora não aconteça necessariamente por meio de uma guerra “quente”, pode fazer com que os países ocidentais retornem à situação em que se encontravam no início do período moderno.

A disposição dos Estados Unidos de fazer qualquer coisa em busca de lucro levou a uma rápida degeneração de seu sistema de valores. Desde que o ex-presidente Woodrow Wilson conduziu o país à posição de líder do sistema mundial, os “valores” estão no centro do apelo estadunidense. Naquela época, Wilson tinha grande influência entre muitos intelectuais chineses, embora isso tenha rapidamente se transformado em desilusão. Entretanto, hoje o mito do “sonho americano” e dos valores universais dos Estados Unidos permanecem cativando uma proporção considerável das elites chinesas, mas a presidência de Trump desmascarou esses supostos valores. Os Estados Unidos retornaram abertamente à crueza e brutalidade da conquista colonial e da expansão para o oeste.

Além disso, a atual geração das elites ocidentais sofre de um déficit em sua capacidade de pensamento estratégico. Muitos dos principais estrategistas e táticos da Guerra Fria estão mortos, e no bojo de duas décadas de arrogância e dominação que marcaram a era do “fim da história”, os Estados Unidos e países europeus não foram capazes de produzir uma nova geração de intelectuais afiados. Consequentemente, diante de seus dilemas atuais, o melhor que essa geração das elites pode oferecer não passa de reformulações de velhas soluções e do retorno à banalidade do período colonial.

Esse tipo de banalidade pode chocar alguns, mas tem raízes profundas na história dos Estados Unidos: do genocídio contra os povos indígenas provocado pelos colonos puritanos para construir sua chamada “Cidade na Colina” até os Papéis Federalistas que desenharam um complexo sistema de separação de poderes para garantir liberdade, mas discutiram superficialmente sobre comércio e guerra entre países, chegando a obsessão com o direito de portar armas, que dá a cada indivíduo o direito de matar em nome da liberdade. Assim, podemos ver que Trump não trouxe a banalidade aos Estados Unidos, apenas revelou a tradição escondida da “república comercial” (é válido notar que, na tradição ocidental, os comerciantes também tendem a ser piratas e saqueadores).

Atualmente os Estados Unidos quase completaram esta transformação de sua identidade: de uma república de valores para uma república de comércio. Essa versão de país não possui a vontade unitária de retomar sua posição de líder da ordem mundial, como tem sido evidenciado pela contínua e forte influência da retórica “América Primeiro” (em inglês, “America First”). O crescente apoio a essa banalidade política entre algumas parcelas da população dos EUA irá encorajar mais políticos a seguir esse exemplo.

A ordem mundial continua sendo liderada por um número de Estados poderosos, mas em meio a instabilidades significativas, uma vez que os esforços de fortalecimento da União Europeia fracassaram, a Rússia tende a continuar em declínio, a China está ascendendo, ao Japão e à Coréia do Sul faltam real autonomia, e os Estados Unidos, devido a pressões financeiras, têm rapidamente se desresponsabilizado de apoiar a rede de alianças e instituições multilaterais do pós-guerra, passando a construir sistemas bilaterais que maximizem seus interesses específicos. Em termos mais simples, a ordem mundial está desmoronando, e as questões relevantes do momento estão relacionadas com quão rápido será esse processo, como uma ordem mundial alternativa deveria ser, e se essa nova ordem pode emergir e ser efetiva no tempo para evitar a proliferação de graves instabilidades globais.

 

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