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A vida na maior favela do país

Nas bordas de Brasília, e com 93 mil pessoas, comunidade do Sol Nascente já supera a Rocinha (RJ). Lá, os Correios não chegam. Não há hospital. Apenas 8% dos lotes estão regularizados. Há dez mil em áreas de risco. “Quando a chuva desaba, só me resta orar”

Por: Marcos Amorozo

Diariamente, os Correios entregam mais de 60 mil cartas e encomendas em todo o Distrito Federal (DF). No Sol Nascente, porém, a história é outra. Os 32 mil domicílios da maior favela brasileira não recebem nenhuma correspondência – nem sequer boletos de cobrança. Se comprar algo online, por exemplo, o morador da comunidade precisará retirar a mercadoria numa agência dos Correios ou em caixas postais que ficam a pelo menos 5 km de distância. Como as vias do Sol Nascente carecem de identificação, os carteiros não conseguem achar os endereços. O mesmo contratempo afeta os entregadores que trabalham para aplicativos. Apenas os comerciantes das redondezas conseguem fazer entregas por ali, pois conhecem bem a geografia local. De acordo com a prévia do Censo 2022, a comunidade – que tem 93 mil habitantes e é vizinha de Ceilândia, uma das regiões administrativas do DF – ultrapassou a Rocinha em população e número de residências. A favela carioca, a mais populosa do país ao longo de décadas, reúne agora 67 mil habitantes e 31 mil domicílios.

As principais ruas do Sol Nascente até dispõem de asfalto, mas estão em frangalhos. A falta de reparo, aliada ao trânsito frequente de carros, ônibus e caminhões, provocou rachaduras e depressões na pavimentação. Mais comuns são as vias de terra. Estreitas, tortuosas e repletas de buracos, se enchem de poeira nos períodos de seca, o que dificulta a limpeza das casas e a respiração. Já na época das chuvas, o problema são as enxurradas e as inundações. Por quase não haver bueiros na comunidade, a água toma conta dos logradouros, arrasta o que encontra pela frente e invade as moradias.

“Assim que começa a chover, fico doidinha. Meu peito explode de aflição”, diz Ana Lúcia Dias da Silva, de 54 anos, que vive no Sol Nascente desde 2021. Em dezembro passado, às vésperas do Natal, uma tempestade derrubou o muro da residência dela. A água invadiu o imóvel e destruiu tudo. Não sobrou uma mobília para contar a história. ”Foi desesperador. Só me reergui graças a doações. A culpa é do governo, que nunca zelou pela infraestrutura daqui.” Desempregada, Silva cuida de uma irmã com deficiência física e de dois netos. Antes do temporal de dezembro, a família já havia enfrentado quatro enchentes. “Não temos outro lugar para ir. Ficamos nas mãos de Deus… Quando a chuva desaba, só me resta orar e pedir que o aguaceiro não venha muito forte. Meu psicológico está nas últimas.”

Cerca de 10 mil moradores da favela ocupam áreas com risco de inundações e desabamentos ou contaminadas por serem antigos lixões. Um estudo de 2019, realizado pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional do Distrito Federal (Codhab), sugeriu a remoção de 2,5 mil casas que se encontravam naqueles locais. Quatro anos depois, a situação deve estar pior, uma vez que o Sol Nascente cresceu.

Não bastasse, outros quatrocentos domicílios se localizam em pontos da comunidade por onde passam as tubulações de esgoto instaladas pela Companhia de Saneamento Ambiental do Distrito Federal (Caesb). A Defesa Civil proíbe construções nesses trechos, considerados inseguros. Em 2019, umas das tubulações se rompeu. Houve um grande estrondo, e o buraco que se abriu engoliu uma casa quase por inteiro.

Com tantos imóveis ameaçados, a legalização e a consequente titulação dos terrenos ficam impossibilitadas. Há dois anos, só 8,5% dos lotes que integram o Sol Nascente estavam regularizados. Para que o quadro melhore, é necessário atualizar o estudo de 2019 e elaborar um plano de realocação das famílias sob perigo.

As ocupações que deram origem à favela começaram em 1998. De início, os 978 hectares onde a comunidade se estabeleceu – área semelhante à de mil campos de futebol – abrigavam chácaras que abasteciam a Feira do Produtor e Atacadista de Ceilândia. Os arrendatários daquelas modestas propriedades foram assentados na década de 1970, em virtude de um programa governamental que almejava desenvolver zonas rurais ainda inexploradas no DF. Os contratos de arrendamento duravam quinze anos, renováveis por igual período.

Os primeiros moradores da favela em formação vinham justamente da periférica Ceilândia. Por não conseguirem pagar aluguel, eles invadiram os estábulos e as plantações de algumas chácaras. Simultaneamente, parte dos chacareiros loteou ou vendeu por preços convidativos os terrenos que arrendava. Embora ilegais, as negociações ocorriam normalmente, sem que nenhuma autoridade interferisse.

O pastor Ronaldo Aguiar, de 51 anos, é um desses “filhos de Ceilândia” que encontrou no Sol Nascente a possibilidade de ter uma casa própria. Em 2001, ele e a mulher venderam um carro e rasparam as parcas economias para adquirir um lote de 300 m² na comunidade, onde construíram uma residência simples, coberta com telhas de fibrocimento. “Não havia praticamente nada na nossa rua. Fora a minha casinha, existiam só mais três, além de lama, pedra e mato. Eu recebia menos de um salário mínimo. Mal dava para comer… Ter meu canto foi um alívio”, relembra Aguiar. Quando se fixou por lá, o pastor não pagava nem pela água nem pela energia elétrica. “Eu conseguia tudo na base da gambiarra.” Mesmo com uma infraestrutura tão precária, ele investiu no aprimoramento de sua casa. “Em pouco tempo, o cenário mudou. Outras famílias chegaram, e o Sol Nascente deslanchou. Muita gente sem dinheiro construiu do jeito que dava, em terrenos bem menores que o meu.”

Nas últimas duas décadas, a população da favela aumentou 1.299%. Em 2000, aproximadamente 7,5 mil pessoas viviam ali, segundo a Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan). Em 2021, o número de habitantes saltou para os atuais 93 mil. A maioria são mulheres (50,3%) e se declara preta ou parda (67,9%). A idade média dos moradores é de 28,6 anos e a renda média, de 1.578,78 reais.

Hoje, o lote de Aguiar está legalizado. O pastor não somente começou a pagar IPTU como passou a usufruir de ligações regulares de água e luz. “Infelizmente, o governo continua fazendo muito pouco pela comunidade”, reclama. “Faltam coisas básicas por aqui.”

A primeira das cinco escolas do Sol Nascente surgiu em 1999, mas as instalações oficiais de esgoto só começaram dez anos depois. O primeiro posto de saúde apareceu em 2018, e o hospital ainda não chegou. As áreas de lazer se limitam a três quadras poliesportivas, três academias comunitárias e um campo de grama sintética.

Em 2019, a comunidade deixou de pertencer a Ceilândia e virou uma região administrativa independente. O governo do DF decidiu pela autonomia sob o pretexto de melhorar a qualidade de vida local. Até agora, no entanto, a sede da administração regional não ficou totalmente pronta e seus funcionários trabalham de maneira improvisada.

“O planejamento urbanístico do Distrito Federal potencializou um fenômeno que já existia em outras cidades do país: a segregação entre ricos e pobres”, diz Aldo Paviani, geógrafo e professor emérito da Universidade de Brasília (UnB). A miséria se concentra nas bordas do abastado Plano Piloto. Lá mora uma parcela significativa da população, que depende de serviços e empregos oferecidos nas regiões mais prósperas. “A especulação imobiliária expulsou os negros e pobres para longe da riqueza, obrigando-os a fazer o trajeto periferia-centro todos os dias. O Sol Nascente, em especial, é a periferia da periferia, já que acolheu quem não podia mais pagar para viver em Ceilândia”, explica Pavani. A favela está a 35 km do Plano Piloto. O professor defende a descentralização dos postos de trabalho e equipamentos públicos, associada à melhoria do transporte coletivo. “O modelo de urbanização baseado na segregação é uma máquina de moer gente e precisa ser superado.”

O Sol Nascente hoje se divide em três trechos. O governo do Distrito Federal afirma que regularizou somente algumas quadras dos trechos 1 e 2. Ainda não há previsão para a legalização do resto. O governo também informa que concluiu o sistema de coleta das águas pluviais em parte dos trechos 1, 2 e 3. Agora está fazendo calçadas e pavimentando ruas no trecho 2. Em paralelo, constrói as chamadas lagoas de detenção, que irão receber a água captada pelos bueiros e livrá-la das impurezas antes de despejá-la nos córregos.

Quanto aos imóveis erguidos sobre as tubulações de esgoto, a Caesb diz que vem realizando adequações para garantir a segurança deles. A companhia estima que, entre os 32 mil domicílios da comunidade, cerca de 8 mil não recebe água encanada.

“Podem fazer ou prometer o que for, acho que nada vai mudar”, lamenta o porteiro e motorista de aplicativo Vicente Lago. Ele tem 33 anos e está no Sol Nascente há quase vinte. Mora de aluguel, com a mulher e a filha, numa via sem asfalto. “Evito ligar o aplicativo perto de casa porque o GPS não consegue localizar as ruas. É difícil circular ali. O motorista que não conhece a área acaba se perdendo, além de precisar desviar dos buracos e do lixo.”

Desde 2021, Lago planeja sair da comunidade. Deseja comprar um apartamento em Samambaia, outra região administrativa do DF. Sua filha de 6 anos já estuda numa escola particular fora do Sol Nascente. “Quero que a menina cresça num lugar melhor. Eu e minha mulher estamos nos desdobrando para juntar dinheiro. Ela vende roupas femininas numa lojinha própria. Se tudo der certo, a gente consegue mudar até dezembro.”

 

Veja em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/a-vida-na-maior-favela-do-pais/

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