Surge no horizonte um novo pesadelo: secas simultâneas e crise alimentar global, devido a mudança nos ventos de altitude. Mas a inação persistirá – enquanto não tirarmos dos super ricos as alavancas que permitem manter tudo como está
Por: George Monbiot, em seu blog | Tradução: Antonio Martins
De acordo com a pesquisa de notícias do Google, a mídia brasileira publicou mais de 32 mil matérias sobre o atropelamento do ator Kayky Brito, ao atravessar, aparentemente transtornado, uma avenida na Barra da Tijuca, Rio1. O Google também regista um total global de cinco notícias sobre um artigo científico publicado há alguns meses, que mostra que as probabilidades de perdas simultâneas de colheitas nas principais regiões produtoras do mundo, causadas pelo colapso climático, parecem ter sido perigosamente subestimadas. No mundo da mídia, um lugar que nunca deve ser confundido com o mundo real, as fofocas sobre celebridades são milhares de vezes mais importantes que o risco à existência da vida humana.
O novo artigo explora os impactos na produção agrícola quando os meandros da Corrente de Jato (ou ondas de Rossby) ficam bloqueados. Este bloqeuio causa condições climáticas extremas. Em resumo, se você mora no hemisfério norte e um meandro na Corrente de Jato (a faixa de ventos fortes alguns quilômetros acima da superfície da Terra, em latitudes médias) fo bloqueado a sul de onde está, o clima do lugar vai se tornar frio e úmido. Se estiver bloqueado a norte de você, é provável surjam ondas de calor e secas crescentes.
Em ambos os casos, o clima bloqueado, agravado pelo aquecimento global, afeta as colheitas. Sob determinados padrões de meandros, várias das principais regiões de cultivo do hemisfério norte – como o oeste da América do Norte, a Europa, a Índia e o leste da Ásia – podem ficar expostas a condições meteorológicas extremas ao mesmo tempo , prejudicando as suas colheitas. Para a nossa subsistência, dependemos de compensaçẽos globais: se houver uma má colheita numa região, é provável que seja contrabalançada por boas colheitas noutros locais. Mas mesmo pequenas perdas de colheitas, quando ocorrem simultaneamente, apresentam o que o documento chama de “risco sistêmico”.
Os choques climáticos regionais já ajudaram a causar uma inversão desastrosa na tendência da fome crônica global. Durante muitos anos, o número de pessoas famintas caiu. Mas em 2015 a tendência inverteu-se e a curva tornou-se ascendente desde então. Não é por falta de comida. A explicação mais provável é: o sistema alimentar global perdeu a sua resiliência . Quando sistemas complexos perdem resiliência, os choques que os atingem deixam de ser amortecidos e tendem, ao contrário, a se ampliar. Até agora, os choques amplificados em todo o sistema atingiram mais fortemente as nações pobres que dependem de importar alimentos, que viveram picos de preços locais mesmo quando os preços globais estavam baixos.
Se isto acontecer quando as colheitas forem afectadas apenas num país ou numa região, só podemos imaginar os resultados se condições meteorológicas extremas atingirem simultaneamente várias grandes regiões de cultivo.
Foram publicados outros artigos com temas semelhantes, mostrando, por exemplo, os impactos da frequência crescente de “secas repentinas ” e ondas de calor simultâneas em regiões produtoras de cereais, e como o aquecimento global afeta a segurança alimentar. Todos foram larga ou totalmente ignorados pela mídia.
Enfrentamos uma perspectiva histórica e impensável: talvez as duas maiores ameaças existenciais – colapso ambiental e disfunção do sistema alimentar – converjam, à medida que uma desencadeia a outra.
Há muitos sinais, alguns dos quais tentei explicar no Guardian e, com um sentido de crescente urgência, numa apresentação ao parlamento do Reino Unido. Sugeri que o sistema alimentar global pode não estar longe do seu ponto de inflexão, devido a problemas estruturais. por razões semelhantes às que afundaram o setor financeiro em 2008. À medida que um sistema se aproxima de um limiar crítico, é impossível dizer qual o choque externo poderá fazê-lo ultrapassar. Quando um sistema se torna frágil e a sua resiliência não é restaurada, não é uma questão de se e como, mas de quando.
E por que isso não está nas primeiras páginas? Por que os governos não agem, sabendo que enfrentamos um risco existencial? Por Joe Biden está permitindo perfurações de petróleo e gás suficientes para estourar cinco vezes o orçamento de carbono dos EUA? Por que o governo do Reino Unido está abandonando o fundo climático internacional de 11,6 bilhões de libras que prometeu? Por que o Partido Trabalhista britânico adiou sua proposta de um fundo de prosperidade verde de 28 bilhões de libras, enquanto seu atual líder, Keir Starmer teria comentado na semana passada “Odeio os que abraçam árvores” (um termo pejorativo para os activistas ambientais)? Porque é que os tablodes ingleses – o Sun, o Mail, o Telegraph e o Express competem entre si para atacar todas as soluções capazes de ajudar a prevenir o caos climático? Por que todo as fofocas e todo o resto parece mais importante?
Não é difícil compreender o problema subjacente. Os governos não conseguiram romper aquilo que o economista Thomas Piketty chama de espiral patrimonial de acumulação de riqueza. Como resultado, os ricos tornaram-se cada vez mais ricos, um processo que parece se acelerar. Em 2021, por exemplo, os ultra-ricos capturaram quase dois terços de toda a nova riqueza do mundo . A fatia que eles abocanam do rendimento nacional, no Reino Unido, quase duplicou desde 1980. Nos EUA, já é mais elevada do que era… em 1820!
Quanto mais rica se torna uma fração da sociedade, maior é o seu poder político e mais extremas são as exigências que faz. O problema está resumido numa frase na carta de demissão do ministro do Ambiente do Reino Unido, Zac Goldsmith: em vez de participar numa cúpula ambiental crucial, o primeiro ministro Rishi Sunak foi à festa de verão de Rupert Murdoch. Não podemos trabalhar juntos para resolver os nossos problemas comuns quando um grande poder está nas mãos de tão poucos.
O que os ultra-ricos querem é sustentar e ampliar o sistema econômico que os colocou onde estão. Quanto mais têm a perder, mais “criativas” se tornam as suas estratégias. Para além da abordagem tradicional de comprar meios de comunicação social e de injetar dinheiro nos partidos políticos que os favorecem, eles concebem novas formas de proteger os seus interesses.
Corporações e oligarcas com enormes fortunas podem contratar tantos junktanks (os mal chamados thinktanks), redes de trolls, gurus de marketing, psicólogos e micro-alvos quantos forem necessários para elaborar justificativas e demonizar, desmoralizar, abusar e ameaçar as pessoas que tentam sustentar uma vida habitável no planeta. Os junktanks elaboram novas leis para reprimir os protestos, a ser implementadas por políticos financiados pela mesma classe plutocrática.
Dificilmente poderia ser mais complicado. O esforço para proteger os sistemas da Terra e os sistemas humanos que deles dependem é liderado por pessoas que trabalham nas margens, com recursos minúsculos, enquanto os mais ricos e poderosos utilizam todos os meios à sua disposição para sabotar esta luta. Você consegue se imaginar, em algumas décadas, tentando explicar isso ao seus filhos?
Olhando para trás, para as calamidades humanas anteriores, que serão todas apequenadas pela crise que se aproxima, você se pergunta, repetidamente: “por que eles não…?” A resposta é poder: o poder de alguns para contrariar os interesses da humanidade. A luta para evitar o fracasso sistêmico é a luta entre a democracia e a plutocracia . Sempre foi assim, mas os riscos são agora maiores do que nunca.
1Trecho adapatado por Outras Palavras, por razões óbvias. No original: “a mídia publicou mais de 10 mil histórias este ano sobre Phillip Schofield, o apresentador de televisão britânico que pediu demissão devido a um caso com um colega mais jovem.
Veja em: https://outraspalavras.net/terraeantropoceno/abismo-climatico-as-razoes-de-nossa-impotencia/
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