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“Ajuste”: Haddad conseguirá comer pelas beiradas?

Ministro insiste no “ajuste” que o mercado cobra, e pensa fazê-lo onerando os mais ricos. Mas rentistas pedem corte de serviços públicos e “reforma” administrativa neoliberal. É hora de outro jogo: investimento robusto para reconstruir o país

Por: João Policarpo R. Lima | Créditos da foto: Breno Esaki/Metrópoles

Tivemos nesse nosso país, como é sabido e vivido com horror, quatro anos de trevas, que foram antecedidos por outros dois de preparação e de criação das condições para a imersão nas trevas. Com muito custo e muita luta e, principalmente, com o protagonismo de Lula da Silva conseguimos pular a fogueira da continuidade por mais quatro anos da destruição generalizada. Aos poucos estamos nos recuperando e reconstruindo a terra arrasada. Durante os seis anos trevosos tivemos na política econômica a aprovação do famigerado teto de gastos, a mais completa tradução do fiscalismo caolho tupiniquim. Em nome do radicalismo fiscalista, uma espécie de “amigo público número 01”, para os seus defensores, fez-se uma política econômica restritiva ao extremo onde cortava-se gastos sem a menor sensibilidade social.

Só que no meio do caminho veio a pandemia. Com ela a necessidade de restringir o convívio social e o fechamento inevitável de inúmeras atividades, principalmente no chamado setor terciário. Para dar suporte aos milhares de atingidos, o Governo das Trevas teve, mesmo a contragosto do então condutor do ministério da Economia, que abrir as comportas e romper o teto de gastos. Para os fiscalistas era o dilúvio: uma pandemia de um lado e de outro os gastos nada previstos no orçamento amordaçado pelo teto de gastos. Só que, pasmem, não veio o dilúvio e sim a criação, um tanto atabalhoada, de condições de sobrevivência de empresas e de boa parte de seus empregados. Fiat lux! Gasto público além da receita não era, e não é, a catástrofe apregoada, mas poucos foram capazes de ser ouvidos ao dizer isso. Nem os que condenavam diuturnamente o desequilíbrio fiscal, o pai e a mãe de todos os males nos seus dizeres, levantaram as vozes para a crítica que antes era mantra (não gastarás, não gastarás….), talvez porque nos gastos extras as instituições financeiras tenham sido contempladas.

Na verdade, ao invés da catástrofe, o que se viu foi a colocação de títulos públicos no mercado para financiar os gastos extras e seguiu o passeio à direita. Cresceu a relação dívida/PIB, mas o mercado continuou aceitando financiar o déficit como acontecia há muito. Nesse interim, providenciou-se um arrocho salarial dos servidores públicos, que ficaram sem reajuste por quatro anos mesmo com uma inflação acumulada de cerca de 30%. Era a “cota de sacrifícios” do servidor por não ter perdas nominais de salário nem ser demitido, dizia-se. Com isso logrou-se um rebaixamento real da folha de salários do setor público que vai ser difícil recuperar. Mas não ficou nisso. Em 2022, diante da eleição e de pesquisas eleitorais que indicavam a vitória de Lula, fez-se outra profanação: uma “PEC da calamidade pública” que de novo arrombou o teto de gastos. Nem assim os fiscalistas soaram suas trombetas contra a “gastança”, ou se o fizeram ficaram intramuros. Ou seja, os limites de gastos não são tão estritos e a economia e a vida não acabam com gastos públicos acima da receita, desde que sob condições e sabendo onde gastar. Outra lição: quando o fura teto é um governo de direita, ou extrema direita, o “mercado” fecha os olhos.

Com a vitória, suada e redentora, de Lula, ainda na transição fez-se um acordo político no Congresso para outro furo no teto, diante da impossibilidade de conviver com o orçamento restrito que estava previsto para 2023. E mais, o novo governo ainda conseguiu desconstitucionalizar o teto de gastos, prometendo sua substituição por outro instrumento, o que depois passou a ser chamado de arcabouço fiscal. Levou algum tempo até ser aprovado no Congresso, mas passou, embora com algumas “baixas” o que foi proposto pelo ministro Fernando Haddad. Mesmo sob críticas dos mais heterodoxos, o arcabouço trazia uma promessa de “responsabilidade fiscal” diante do quadro ainda difícil de se obter o equilíbrio fiscal tão caro ao mercado e aos seus acólitos. Acima de tudo, traz uma outra lógica, ou seja, inverte os termos da equação, se é que se pode dizer assim. Ao invés de perseguir cega e infrutiferamente o equilíbrio fiscal pelo lado do gasto, contendo-os para o deleite dos mercadistas, a proposta embute a ideia de equilíbrio a ser obtido com o aumento das receitas fiscais, minorando os custos dos cortes a torto e a direito. Cabe ressaltar que se trata de uma proposta bastante razoável, nada mágica, mas que até então era “apagada” das opções de política econômica por implicar em mudanças na estrutura tributária, fazendo os mais ricos pagarem os impostos adicionais.

Para surpresa de muitos, ou nem tanto, a proposta que fala em aumento de receitas e em gastos criteriosos, digamos, ganhou o apoio majoritário do Congresso e até mesmo do tal mercado. Houve, é verdade, a dúvida: de onde virão as novas receitas? Isso é viável? Aos poucos a equipe econômica foi anunciando novas fontes de arrecadação e, mesmo com resistência, vem aprovando no Congresso a nova estratégia. Ganhos com decisões no STF e com a mudança na regra do Carf, aperto na sonegação fiscal, discussão das isenções fiscais, pondo na mesa as suas discutíveis necessidades, tributação de aplicações financeiras sobre os fundos individuais e sobre aplicações no exterior e a tributação sobre as apostas online são as principais armas até aqui apontadas pelo Ministério da Fazenda para ampliar a receita.

Diante da nova estratégia e com dificuldades em ser explicitamente contra tais medidas, (como votar contra a tributação dos mais ricos? O que dirão os eleitores dos congressistas?) a turma da bufunfa, os realmente ricos, começa a entoar o discurso de que o mercado está descrente no ministro da Fazenda, que a possibilidade de equilíbrio fiscal em 2024 não será factível, pois funda-se em aumentos de arrecadação considerados inviáveis ou mesmo impossíveis.

Assim, diante dessa não demonstrada “impossibilidade”, recolocam o discurso da inevitabilidade dos cortes. Ou seja, repõem na mesa a miragem do equilíbrio fiscal pelo lado do gasto, como sempre defenderam. E já apontam para a reforma administrativa como o meio quase único de lograr o ansiado equilíbrio e posterior superavit fiscal. Nessa reforma aposta-se na redução da folha salarial e na perda da estabilidade do servidor público. Essa é parte mais explicita da narrativa, mas que não esquece dos seus coadjuvantes contumazes: privatizações, reforço na distribuição de dividendos pelas empresas estatais, o que de quebra favorece os acionistas privados, e por aí vai. É a volta ao aconchego dos cortes de gastos para a honra e glória dos muito endinheirados e realmente ricos deste país. E, diga-se, para o prejuízo e penúria dos demais. Assim, a ameaça de ter que pagar algum imposto, que incomoda tanto aos donos do dinheiro e do poder, é combatida com o discurso da inevitabilidade e prioridade dos cortes de gastos. Não batem de frente com as propostas de ampliar receitas, pois seria difícil justificar, mas procuram minar a estratégia do governo via aumento de receitas.

As cartas estão sendo postas na mesa. Até aqui o governo e Fernando Haddad continuam com algumas delas na manga, anunciando as opções de receitas extras a conta gotas, na tática de ir “comendo pelas beiradas”. Essa tática triunfará? É difícil antecipar, mas é possível que sim. As previsões sobre o desempenho da economia apontam para um crescimento acima de 3% em 2023, o que naturalmente eleva a arrecadação de tributos. Com mais crescimento, o governo se cacifa com apoio popular para ter mais poder de barganha diante do Congresso. Ademais, há alternativas aqui acolá indicadas pelos membros da equipe econômica, que podem inflar a arrecadação e assim atingir o objetivo sem ter que recorrer aos cortes drásticos, contingenciamentos, etc. O perigo é os donos do poder, como já fizeram no passado, tramarem golpes baixos para não terem que pagar, ou não deixarem de ganhar. Nesse jogo os perdedores de sempre, isto é, o povo pagador de tributos, precisa ganhar protagonismo e cobrar a sua parte, mesmo ínfima, desse grande latifúndio.

Além disso, para que os resultados desse embate sejam diferentes dos até aqui vistos é preciso que avance a arrecadação sobre itens inexplicavelmente “esquecidos” por incomodar os muito ricos, ou seja, a taxação das grandes fortunas, a redução ou eliminação de imunidades tributárias e de isenções fiscais que já cumpriram seu papel, a inclusão no orçamento de receitas fiscais de setores como o agronegócio e a indústria extrativa mineral, cuja carga tributária é proporcionalmente baixa. Para isso é preciso mais ousadia que a que está posta na mesa e mais enfrentamento aos muito ricos. Até para conseguir negociar e chegar a uma posição intermediária, mudando mais claramente o perfil dos pagadores de impostos. De uma coisa podemos ter certeza: se a meta é vir a ter superavit fiscal tem-se que ampliar a arrecadação, pois atuando só do lado dos gastos não será obtida, até porque os itens de gastos livres para eventuais cortes não seriam suficientes e a conta só fecha se a receita crescer. Utopia? Não necessariamente. Sem utopias e sem tentar mudar o jogo não sairemos nunca da desigualdade secular. Outra coisa também certa é que sem maiores gastos do Estado em infraestrutura econômica e social, bem como em gastos correntes, a economia vai continuar com voos de galinha que pouco resolvem. Para haver mais investimentos públicos há que se encontrar novas fontes de financiamento. Parece claro e simples. A ver como segue o jogo.

 

Veja em: https://outraspalavras.net/crise-brasileira/ajuste-hadadd-conseguira-comer-pelas-beiradas/

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