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As contribuições (e equívocos) de David Graeber

Pensador britânico influenciou gerações. Borrou as fronteiras das Ciências Sociais e sugeriu saídas ao realismo capitalista. Porém, ao propor uma nova história econômica, ele resvalou em simplificações – um preço que pagou por sua iconoclastia

Por: Carlos Águedo Paiva | Imagem: Rex/Shutterstock

One of David’s books is titled Possibilities. It is an apt description of all his work. It is an even better title for his life. Offering unimagined possibilities of freedom was his gift to us.
Marshall SahlinsDavid Graeber 1961-2020, The New York Review

1) David Graeber: um herói do nosso tempo

Para a tristeza de todos, David Graeber faleceu há dois anos atrás com apenas 59 anos de idade, no auge de sua produtividade teórica. Enquanto influência e referência intelectual, contudo, ele está mais vivo do que nunca. Seus livros e ensaios estão sendo lidos, citados e comentados como nunca foram antes. Nos últimos anos, ele se consagrou como aquele autor que nenhum cientista social pode deixar de ler. O que não é gratuito. David Graeber não foi apenas um dos mais ricos, originais e produtivos intelectuais do final do século XX e das primeiras duas décadas do século XXI. Ele foi um autor que alcançou mobilizar sua inesgotável curiosidade e capacidade produtiva como uma arma política potente no desmascaramento do caráter ideológico do evolucionismo, do economicismo e do discurso neoliberal, que hegemonizou corações e mentes nas últimas décadas.

Seja com suas investigações sobre as distintas formas e instrumentos de intercâmbio ao longo da história (Dívida: os primeiros 5 mil anos), seja com suas pesquisas sobre a longa transição do paleolítico para o neolítico e sobre padrões democráticos e não especificamente estatais de gestão das cidades emergentes neste mesmo período (O despertar de tudo: uma nova história da humanidade; escrito em parceria com o arqueólogo David Wengrow), Graeber impôs um duro golpe em todos os modelos pretensamente consolidados de “ordenamento histórico”. Especialmente em seu trabalho com Wengrow, Graeber procura demonstrar, a partir do resgate e sistematização de um amplo conjunto de pesquisas antropológicas e arqueológicas recentes, que a história dos diversos grupamentos humanos após a última grande glaciação é irredutível ao padrão evolucionista: “de bandos para as tribos; das tribos para as chefaturas; das chefaturas para o Estado”. Ainda mais importante: a crítica de Graeber e Wengrow a este (pretenso) padrão de evolução está baseada na demonstração de que diversos grupos sociais que alcançaram se organizar de forma mais complexa – e, pretensamente, mais “evoluída” — realizaram inflexões de percurso, na medida em que foram sendo evidenciados os custos associados à emergência da estratificação social e da desigualdade de poder político e econômico entre os membros da comunidade. Neste processo, Graeber e Wengrow revalorizam a história oral e os mitos das civilizações ágrafas e impõem o questionamento da própria divisão tradicional entre História e Pré-História.

Mas, do nosso ponto de vista, o elemento efetivamente revolucionário dos trabalhos de Graeber encontra-se naquele aspecto apontado por Marshall Sahlins na epígrafe que abre este texto: a retomada das “possibilidades”. Graeber tem um espírito romântico e sua produção teórica carrega um sabor de século XIX, o século da esperança nas possibilidades de homens e mulheres construírem o seu futuro a partir de projetos e opções conscientes. Neste sentido, há algo de hegeliano e marxista em Graeber: ele resgata a tese destes autores de que há História em sentido rigoroso: no sentido de transformações sujeitas a decisões conscientes de coletivos humanos organizados. Após décadas de hegemonia dos teóricos do fim da história – sejam liberais e otimistas, como Fukuyama; sejam os algo niilistas pós-modernos com suas incontáveis críticas às metanarrativas e aos programas messiânicos de emancipação – os trabalhos e pesquisas de David Graeber representam um alento, um novo sopro de esperança. Num certo sentido, podemos dizer que Graeber foi o mais radical dos intelectuais contemporâneos, capaz de unir uma produção teórico-científica rigorosa e inovadora com uma militância política diuturna pela transformação social. Este, na verdade, é o ponto:Graeber resgatou os ventos da revolução, unindo subversão teórico-científica a distintos projetos de transformação social.

Não obstante, ousamos pretender que, se a praxis teórico-política de Graeber comporta algo de “marxismo” (no sentido mais amplo e não rigoroso do termo), sua compreensão da obra do grande pensador alemão deixa bastante a desejar. Na verdade, não só a compreensão de Marx, mas de diversos outros autores com os quais Graeber busca dialogar. E isto não é gratuito. Desde logo, o caráter extraordinariamente ambicioso do seu projeto de pesquisa – a produção de uma nova História da Humanidade – o obriga a borrar as fronteiras (essencialmente artificiais, diga-se de passagem) entre as diversas Ciências Sociais e lidar com um conjunto tão amplo e diversificado de autores e temas que seria humanamente impossível conquistar um domínio profundo dos mesmos. Além disso, a despeito de sua contribuição para o resgate da utopia e do projeto histórico – e, por extensão, para a crítica do niilismo pós-moderno -, Graeber não deixa de ser filho do desconstrutivismo que emerge na esteira do pós-68. Parte da iconoclastia de Graeber se alimenta da crítica feroz (e algo desrespeitosa) do pós-modernismo a todos os “sistemas, metanarrativas e projetos utópico-ideológicos milenaristas”. Em suma: há que entender e ter tolerância com passagens e afirmações de Graeber em que a pretensão de estar fazendo terra arrasada de construções teóricas consolidadas se baseiam, de fato, numa compreensão parcial e limitada destas construções. Mas tolerar não implica deixar de perceber e criticar este problema. Observemo-lo mais de perto.

2) Graeber e “A Nova História Econômica”

O seu trabalho sobre a Dívida é monumental, e é difícil apontar um único foco ou contribuição central. Mas se nos víssemos obrigados a fazê-lo, diríamos que este foco se encontra na crítica do “mito do escambo” e na demonstração de que os processos de intercâmbio prévios à emergência da moeda cunhada (ou em períodos em que esta última perde expressão e circulação, como na Idade Média) estavam baseados em relações de crédito e débito e, por extensão, em relações que, de alguma forma, envolviam fidúcia, confiança e solidariedade. Perfeito. Ao trazer este ponto à luz com toda a clareza, Graeber dá, sem dúvida, uma contribuição importante à historiografia econômica.

O grande problema é que, ao invés de extrair desta contribuição a derivação necessária – vale dizer, de que as sociedades pré-capitalistas onde prevalecia o (que Graeber chama de) “dinheiro de crédito” não são sociedades especificamente mercantis, Graeber vai na direção diametralmente oposta. E conclui que, por oposição ao capital, mercado, mercadoria e dinheiro são categoria presentes há milênios nas mais diversas formações históricas. Donde se conclui que, se pode haver dinheiro sem capital, este último não é um desenvolvimento necessário do primeiro. Na verdade, em Graeber não há qualquer relação direta entre “mercado & dinheiro” e “capital & capitalismo”.

Esta tese encontra-se em praticamente todo o seu livro sobre a dívida, mas emerge de forma particularmente clara no décimo capítulo – A Idade Média (600 DC – 1450 DC). Para que possamos entender seus argumentos é preciso definir a “Idade Média” de Graeber. Este é um período universal, comum a todas as sociedades eurasianas, cuja identidade e peculiaridade se encontra na oposição com a “Idade Axial”, que a precede. Esta última é a “idade da revelação” filosófico-religiosa na Eurásia. Ela é aberta por Zoroastro e encerrada por Maomé, e permeada por Buda, Mahavira, Confúcio, Sócrates, Platão, Aristóteles, Mêncio, Jesus Cristo, São Paulo, Ário e Santo Agostinho (dentre outros). Segundo Graeber, esta verdadeira explosão intelectual da Idade Axial estaria baseada na aceleração, aprofundamento e ampliação do escopo geográfico das trocas culturais e econômicas no período. As quais, por sua vez, seriam indissociáveis de um estado de beligerância virtualmente permanente levado à frente por um novo tipo de exército “composto, tanto na China, na Índia e no Egeu, não de aristocratas e seus serviçais, mas de profissionais treinados para o combate” (Graeber, 2016, p. 289)1. A sustentação destes exércitos profissionais em campanhas militares arriscadas e distantes de seus territórios de origem leva, por sua vez, ao desenvolvimento do dinheiro metálico e à cunhagem. Que – num movimento de retroalimentação – leva à expansão das trocas econômicas e à mercantilização crescente da produção.

Por oposição ao período Axial, a Idade Média “Eurasiana” teria se caracterizado ou pela retração dos grandes impérios (como no caso do Império Romano do Ocidente) ou pela estabilização dos mesmos (como no caso das dinastias Tang e Song, na China). Em qualquer dos dois casos, na percepção de Graeber, o estado de beligerância anterior ou é posto sob controle (como na China), ou deixa de ser organizado a partir de grandes exércitos profissionais remunerados com dinheiro em espécie (como na Europa feudal). O desdobramento disto é a perda de expressão do dinheiro metálico e o retorno, ao primeiro plano, do dinheiro de crédito. Este processo é indissociável de uma relativa depressão das trocas econômicas e culturais de longa distância e ao aprofundamento das trocas econômicas e culturais intra-civilizacionais, representadas, de um lado, pela emergência de feiras e sistemas de crédito bancário que abarcam toda a Europa, todo o Islã e a maior parte da China e da Índia, mas que (malgrado exceções) são circunscritos a estes territórios e, de outro lado, pela emergência de instituições Universitárias voltadas ao resgate, estudo sistemático e interpretação dos clássicos. É esta caracterização da Idade Média por parte de Graeber que lhe permite afirmar que, ao contrário do que usualmente se pensa, a Europa não atinge a Idade Média precocemente, mas com “grande atraso”, por volta dos séculos XII e XIII (Graeber, 2016, p. 376).

Alguém poderia ver nesta proposta de cronologia de Graeber um viés economicista, em que os diversos períodos da humanidade são definidos primordialmente pela forma de dinheiro em circulação: a “Idade Axial” corresponderia à emergência e prevalência do dinheiro metálico, enquanto a “Idade Média” seria definida pela retomada do “dinheiro de crédito”. Mas esta crítica se assenta sobre um equívoco. O problema de Graeber é justamente o oposto: a desvalorização relativa dos elementos econômicos. Para ele, as diferenças entre as Idades Axial e Média não poderiam se encontrar na forma do dinheiro pois, seja como metal, seja como crédito, seu conteúdo é o mesmo: ser dinheiro2. Mercados e dinheiro existem sempre. Apenas com abrangências e formas distintas. É esta perspectiva que lhe permite afirmar, nas distintas seções do capítulo sobre a Idade Média, que

“… os confucionistas eram pró-mercado, mas anticapitalistas. Mais uma vez, isso parece estranho, pois estamos acostumados a assumir que o capitalismo e mercados são a mesma coisa, mas, como afirmou o historiador francês Fernand Braudel, em muitos aspectos eles podiam ser igualmente concebidos como opostos. Enquanto os mercados são formas de trocar produtos através do dinheiro…. (na abreviação econômica, M – D – M’, mercadoria – dinheiro – outra mercadoria), o capitalismo para Braudel é, antes de tudo, a arte de usar o dinheiro para obter mais dinheiro: D – M – D’.” (Graeber, 2016, p. 322; grifos meus)

E, logo adiante, na seção sobre o Oriente Médio, que

“as classes mercantis do Oriente Médio Medieval levaram a cabo um feito extraordinário. Ao abandonarem as práticas usurárias que as tornaram tão detestáveis aos olhos dos vizinhos durante incontáveis séculos, elas conseguiram se tornar – junto com os mestres religiosos – os líderes efetivos de suas comunidades… A propagação do Islã permitiu que o mercado se tornasse um fenômeno global, quase sempre independente dos governos, funcionando de acordo com suas leis internas. Mas o próprio fato de esse mercado (…) ser genuinamente livre, e não criado pelo governo e mantido por meio da força policial e de prisões – um mundo de acordos selados com apertos de mão e promessas assinadas em papel, mas garantidas somente pela integridade do signatário – fez com que ele nunca tenha sido de fato o mundo imaginado por aqueles que, posteriormente, adotaram muito das mesmas ideias e argumentos: um mundo de indivíduos puramente mercenários disputando vantagens materiais a qualquer custo”. (Graeber, 2016, p. 358; grifos meus)

O mais interessante é que Graeber maneja com desenvoltura um volume extraordinário de dados e pesquisas históricas e conta entre suas referências teóricas com autores que – como Karl Polanyi e, até certo ponto, o próprio Marx – poderiam ter sido mobilizados para a compreensão de que há uma diferença abissal entre os “mercados” (e as formas de dinheiro) antigos e o sistema de mercado (e a forma de dinheiro que lhe é consistente) que emerge na Europa na transição do feudalismo para o capitalismo.

Tomemos como ponto de partida a relação devidamente apontada por Graeber entre dinheiro metálico, transações econômicas com estrangeiros e guerra de conquista. Para Graeber (e para Marx, que é citado pelo primeiro), o dinheiro metálico é a única forma de transação possível entre agentes reciprocamente estranhos e carentes de qualquer laço de fidúcia, solidariedade e/ou hierarquia. Por oposição, o dinheiro de crédito pré-capitalista é aquele que está baseado, ou em relações de fidúcia e solidariedade (como nos contratos entre mercadores muçulmanos, “garantidas somente pela integridade do signatário”) ou por relações de hierarquia e controle (como os contratos firmados entre proprietários e trabalhadores e/ou por organizações religiosas e camponeses nas cidades antigas do Oriente Médio).

Ora, estas relações de fidúcia e/ou hierarquia não são relações especificamente mercantis. Graeber diz a mesma coisa (ainda que em outros termos) sempre que afirma (corretamente) que a “economia”, seja enquanto espaço de sociabilidade específico e diferenciado, seja enquanto objeto de investigação científica, é uma construção da modernidade. Sem dúvida! Apenas acrescentamos nós: não é uma construção da mente. É uma construção do peculiar mercado moderno. Quando Marx fala de mercado, mercadoria e dinheiro ele se refere exclusivamente à sua forma moderna. É possível empregar estes mesmos termos em sentido distinto? Evidentemente, sim. Mas se queremos estabelecer uma relação dialógica construtiva, então é preciso partir do reconhecimento das diferenças. Algo que Graeber não faz. Aparentemente, por não se dar conta das mesmas.

Do meu ponto de vista, o que falta a Graeber (para além do pleno domínio das categorias básicas da crítica marxiana da Economia Política3) é um elo histórico fundamental que está na base da leitura de Marx sobre a emergência das relações especificamente mercantis no interior da sociedade europeia na crise do feudalismo. A questão de Marx é: como foi possível que um padrão de intercâmbio que só se manifestava esporadicamente nas fronteiras da sociedade, nas relações entre “estranhos” sempre no limite da beligerância, tenha se tornado o padrão recorrente e normal de intercâmbio interno, realizado entre “iguais”. A resposta a esta questão encontra-se dispersa nos mais diversos trabalhos de Marx, mas há uma passagem nas Formen que é particularmente esclarecedora.

“A história antiga clássica é a história das cidades, porém de cidades baseadas na propriedade da terra e na agricultura; a história asiática é uma espécie de unidade indiferenciada de cidade e campo (a grande cidade, propriamente dita, deve ser considerada como um acampamento dos príncipes, superposto à verdadeira estrutura econômica); a Idade Média (período germânico) começa com o campo como cenário da história, cujo ulterior desenvolvimento ocorre, então, através da oposição entre cidade e campo; a (história) moderna consiste na urbanização do campo e não, como entre os antigos, na ruralização da cidade. (Marx, 1981, p. 74)”

Vale dizer: para Marx, a peculiar emergência de relações especificamente mercantis “internas” é indissociável da “oposição” entre cidade e campo, na transição do feudalismo europeu para o capitalismo. Neste período, não há, nem solidariedade e confiança, nem subordinação e autoridade, entre cidade e campo. Tal como Marx explica ao longo das Formen, pela primeira vez na história da humanidade a divisão do trabalho impõe a emergência de relações de intercâmbio especificamente mercantis (ou, se se quiser, nos termos de Graeber, “puramente econômicas”) entre produtores urbanos e rurais. A troca é impositiva para os agentes urbanos, pois não há como produzir na cidade os alimentos e as matérias-primas nos volumes necessários à reprodução material das mesmas. Mas a troca não é impositiva para os produtores rurais independentes (vale dizer, para os camponeses livres após o fim da servidão). Pelo contrário: em territórios setentrionais, com invernos longos e rigorosos, a sazonalidade da produção rural estimula a emergência de sistemas de produção autárquicos, voltados à produção para o autoconsumo. Inclusive de bens tipicamente “urbanos”, como vestuário, calçados, móveis, etc. E não existe qualquer relação de autoridade entre artesãos e camponeses. Nem qualquer agente público ou sistema de organização social capaz de articular (e impor) o processo de intercâmbio entre (o novo) campo e (a nova) cidade. Para ir no ponto: os artesãos urbanos só alcançarão enfrentar as tendências autarquizantes da nova economia camponesa através: 1) da contínua melhoria da qualidade de seus produtos; 2) da sistemática depressão de seus preços; e – last but not least – 3) pela aquisição dos bens agrícolas com pagamento a vista em dinheiro sonante.

Tal como nas relações de troca entre “estrangeiros” no mundo antigo, as relações de troca entre produtores independentes urbanos e rurais na crise da ordem feudal não estavam baseadas em relações de confiança ou autoridade e não tinham como pressuposto qualquer continuidade. Cada intercâmbio é uma “conquista”; tão mais fácil de ser obtida quanto menos arriscada e mais atraente a transação for para o vendedor. E nada deprime tanto os riscos e atrai tanto o potencial vendedor do que o encerramento imediato de cada transação pelo pagamento em espécie, em dinheiro-mercadoria.

É por perceber a particularidade histórica do padrão de intercâmbio local que emerge na Europa por volta dos séculos XIII e XIV (justo o momento em que Graeber vê o continente ingressando tardiamente na Idade Média) que Marx escreve nos Grundrisse: “é tão piedoso quanto tolo desejar que o valor de troca não se desenvolva em capital, ou que o trabalho produtor de valor de troca não se desenvolva em trabalho assalariado” (Marx, 2011, p. 191). Esta passagem se encontra numa seção dedicada à crítica de Proudhon. Mas, como veremos, cabe perfeitamente bem como crítica a Graeber.

3) Mercado, capitalismo e o desenvolvimento contraditório da igualdade

O primeiro capítulo de O Despertar de Tudo tem como subtítulo “porque este não é um livro sobre as origens da desigualdade”. A resposta a esta pergunta só vai ser dada ao longo de todo o livro. Creio, porém, que cabe um spoiler: Graeber e Wengrow vão tentar demonstrar que não existe um único padrão de desigualdade e, muito menos, uma única origem da(s) mesma(s). As sociedades não só se organizam sobre distintos padrões de estratificação e reconhecimento de diferenças como, de forma geral, tentam impor freios ao desenvolvimento de padrões de desigualdade capazes de minar a identidade e a cola social. Na verdade, dois pontos cruciais levantados por Graeber e Wengrow são:

  1. o que é, afinal, uma sociedade igualitária? Qual o critério pelo qual deve ser avaliada e “medida” a desigualdade? Qual o peso que cabe aos diferenciais de renda e patrimônio? Qual o papel que cabe à capacidade de participação política e na tomada de decisões? E no acesso ao conhecimento? E nas relações entre homens e mulheres? E nas relações entre jovens, adultos e anciãos? E entre guerreiros e produtores? E no acesso efetivo à liberdade e à autonomia (de ir e vir, discordar, desobedecer, etc.)?
  2. Em que momento e de que forma cada sociedade se coloca a questão da “igualdade e da desigualdade”? Como uma sociedade estratificada toma consciência da estratificação como um “problema”, um “desvio de uma certa norma ideal”? E, em particular, como esta questão/problema emerge na sociedade estamental europeia dos séculos XVII e XVIII e se transforma no eixo articulador do debate iluminista a partir de Hobbes e Rousseau?

As respostas de Graeber e Wengrow ao primeiro conjunto de questões são particularmente interessantes, mas não nos cabe resgatá-las aqui. Só podemos recomendar a leitura desta obra fundamental. Porém, as respostas dadas ao segundo grupo de questões acima e, em especial, a resposta dada à origem deste debate no interior do iluminismo, nos parecem profundamente equivocadas e, mais uma vez, se assentam diretamente na incompreensão das peculiaridades da ordem especificamente mercantil e, por extensão, na incompreensão da obra de Marx.

Segundo Graeber e Wengrow, a origem do tema das desigualdades sociais na filosofia iluminista deitaria suas raízes no contato dos europeus com sociedades igualitárias na América. Os autores procuram demonstrar esta tese a partir do resgate de alguns eventos conhecidos e comprovados (como a publicação e circulação na Europa de diversos relatos sobre a vida dos ameríndios) e sua articulação com um conjunto de hipóteses que não contam com apoio empírico rigoroso (viagem de embaixadores Iroqueses à corte de Luís XV; suposta presença de Kondiaronk, líder político da tribo Wendat, afamado por sua retórica, na tal embaixada; suposto contato de Montesquieu com estes embaixadores, etc.). E chegam à conclusão de que parcela não desprezível da teoria política iluminista – em especial em sua vertente utópico-igualitarista e democrática (por oposição ao eixo racionalista, materialista e hedonista) – deitaria raízes na descoberta do Novo Mundo e no intercâmbio cultural da França com os povos originários.

O problema maior desta construção não se encontra na subversão da crença de que os europeus pouco ou nada teriam a aprender com os “selvagens” americanos. Nem, tampouco, em seu caráter essencialmente especulativo, dada a fragilidade dos indícios empíricos. O problema substantivo encontra-se no fato de que a própria questão posta por Graeber e Wengrow é falsa. Se eles tivessem entendido o que há de radicalmente novo nas relações mercantis que emergem na Europa a partir do século XIV e que se disseminam ao longo da Idade Moderna, eles teriam respondido facilmente à (pseudo) charada que colocam e pretendem resolver. Tal como Marx esclarece nos Grundrisse

“… no próprio dinheiro como dinheiro circulante, dinheiro que ora aparece em uma mão, ora em outra, …. a igualdade se põe inclusive de maneira objetiva. Considerado o processo de troca, cada qual aparece ante o outro como mero possuidor de dinheiro; no limite, como dinheiro mesmo. Por isso, a indiferença e a equivalência estão explicitamente presentes na forma da coisa. A diversidade natural particular que existia na mercadoria está apagada e é constantemente apagada pela circulação. Um trabalhador que compra uma mercadoria por 3 shillings aparece ao vendedor na mesma função, na mesma igualdade – na forma de 3 shillings –, em que apareceria o rei que fizesse o mesmo. Toda diferença entre eles é apagada. O vendedor enquanto tal aparece apenas como possuidor de uma mercadoria com o preço de 3 shillings, de maneira que ambos são completamente idênticos; só que os 3 shillings existem uma vez em prata, outra em açúcar etc. Na terceira forma do dinheiro, poderia parecer que surge uma determinação diferente entre os sujeitos do processo. Mas como o dinheiro aparece aqui como material, como mercadoria universal dos contratos, toda diferença entre os contratantes é, ao contrário, apagada. (Marx, 2011, p. 189)

Vejam como a passagem acima comporta críticas que atingem, simultaneamente, o âmago dos dois trabalhos mais famosos de Graeber, o Dívida O Despertar de Tudo. Marx está dizendo que o dinheiro especificamente mercantil, em seu nascedouro, tem a forma necessária de dinheiro-mercadoria, do dinheiro metálico cunhado. E isto pelo mesmo motivo que este tipo de dinheiro emerge nos primeiros anos da Idade Axial: porque ele tem que ser mais do que um símbolo (de solidariedade); tem que comportar uma materialidade que evidencie o seu valor e o torne aceitável em transações entre agentes que, a princípio, não comungam de qualquer outra relação de sociabilidade.

Ao contrário do que parece pretender Graeber, para Marx o dinheiro não é qualquer instrumento viabilizador-facilitador de relações de intercâmbio. Há, sem dúvida, trocas – e instrumentos de troca – em qualquer formação econômico-social concreta. Mas os diversos e diversificados instrumentos de troca só podem ser identificados igualmente como “dinheiro” por uma (má) analogia, pela abstração das formas específicas de sociabilidade que subjazem aos distintos padrões de intercâmbios.

Marx tem plena consciência que o dinheiro em sentido rigoroso – aquele que emerge na sociedade propriamente mercantil como dinheiro-mercadoria – irá se desenvolver no capitalismo como dinheiro de crédito. Mas, para ele, o crédito moderno não pode ser confundido com o sistema creditício pré-capitalista. Desde logo, a emergência do moderno sistema de crédito está assentada: 1) na transformação do dinheiro em capital, mais especificamente, em capital a juros (D – D’); e 2) na construção e consolidação de uma superestrutura jurídica e policial capaz de garantir os direitos de propriedade do credor capitalista. Nas sociedades mercantis, o crédito já não está – e nem pode estar – baseado no conhecimento e na confiança recíproca entre credor e devedor. E, portanto, não há nada surpreendente no fato de não contarmos, hoje, com as anistias periódicas e globais de dívidas, tão comuns no mundo antigo. Tal fato apenas demonstra que estas sociedades não eram, nem especificamente mercantis, nem capitalistas. O capitalismo está organizado em torno de um único “valor”: o valor que se valoriza, o capital. Em última instância, a ausência de anistias globais é mais uma demonstração do abismo que separa os antigos sistemas crédito e aquele que emerge dentro do sistema capitalista.

Como se isso não bastasse, na breve citação do Grundrisse reproduzida acima, Marx também faz a crítica da segunda problemática organizadora de O Despertar de Tudo: a questão da emergência do tema “desigualdade” na consciência europeia do século XVIII.Para Marx, a ordem mercantil é aquela que põe, em sua máxima radicalidade, a igualdade formal entre os agentes. E isto porque na troca mercantil os agentes intercambiantes são apagados; eles só valem pelo que eles portam de valor. Nesta troca, o único valor que interessa é o valor (de troca) das coisas; sejam elas mercadoria, seja dinheiro. O que leva à secundarização e, no limite, ao apagamento de qualquer estratificação social não-quantitativa. Se o “cliente” tem dinheiro, o fato dele ser muçulmano, judeu ou cristão; branco, negro ou asiático; homem, mulher, homossexual ou transgênero; adulto, velho ou criança; nobre ou plebeu; analfabeto, doutor ou com curso técnico; é de somenos importância. A tolerância com a diversidade – da qual a sociedade ocidental contemporânea tanto se vangloria como uma conquista ética e moral ímpar – deita suas raízes na universalização da indiferença que caracteriza as frias relações de mercado.

Na verdade, o falso problema de Graeber e Wengrow parece estar fundado na dificuldade em entender a unidade contraditória entre igualdade formal e desigualdade real no capitalismo. A ordem mercantil desenvolvida exponencia ambas simultaneamente. Na medida em que o conjunto das relações sociais passam a ser mediadas pelo dinheiro, a igualdade formal abstrata ganha fóruns de senso comum. Ao mesmo tempo, a transformação do dinheiro em capital impõe a revolução permanente da base técnica, a instabilização das relações de trabalho (e a negação crescente do trabalho e do emprego) e a crescente centralização e concentração do patrimônio e do poder político. Estas contradições tendem a reatualizar conflitos sociais tipicamente pré-mercantis. Afinal, na medida em que o desenvolvimento capitalista circunscreve os espaços de inclusão produtiva dos despossuídos e aprofunda a insegurança acerca de sua reprodução material, emerge uma tensão social e um excedente de energia contestatória que tende a ser parcialmente canalizada para os conflitos “intramuros”, vale dizer, entre os próprios despossuídos. É neste contexto que reemerge o nacionalismo, a xenofobia, o racismo, o etnicismo, o machismo e a intolerância religiosa. Para a surpresa de toda a intelectualidade que bebe na fonte do iluminismo e toma a igualdade formal e o respeito às diferenças (ocultas pela ordem mercantil) como o ápice civilizacional da humanidade.

4) Concluindo

David Graeber é um iconoclasta que se tornou um ídolo. E isto não é gratuito. Ele é como o rio de Brecht, que tudo arrasta com a violência de suas águas na luta diuturna contra a violência das margens opressoras. Nas quatro décadas em que Graeber nos brindou com sua obra, a produção teórica em Ciências Sociais passou por um crescente estreitamento de suas margens. Foram banidas as grandes narrativas, as totalizações, as tentativas de transcender às áreas de especialização, os projetos de revolução teórica e epistêmica, e a produção politicamente comprometida. Toda a originalidade passou a ser percebida como carência de rigor científico e acadêmico. A produção teórica foi sendo encerrada dentro dos muros da academia e submetida a sistemas de controle de qualidade e produtividade voltados à punição da ousadia e à premiação da quantidade e da produção em série. Graeber foi a antítese de tudo isto; foi um radical nadando contra a corrente do conformismo e da mediocridade. Um genuíno anarquista abalando a ordem teórica e acadêmica estabelecida. Não há como deixar de saudá-lo.

Mas se o furor iconoclasta de Graeber pode e deve ser comemorado, também é preciso entender e reconhecer os elevados custos associados à sua ousadia. Ao romper resolutamente com as fronteiras das diversas Ciências Sociais, avançando criticamente sobre teses tradicionais da Economia, da Sociologia, da História e da Ciência Política, para propor novas e subversivas leituras do desenvolvimento humano, Graeber incorreu em leituras simplificadas e, muitas vezes, desrespeitosas de pensadores e intérpretes que lhe antecederam. Ele mesmo reconhece este fato no brilhante posfácio de seu Dívida, onde admite, por exemplo, que a interpretação de Smith (e de seu mito do escambo) apresentada no corpo do texto se baseava numa compreensão insuficiente deste autor. Sem dúvida. Mas ouso pretender que a autocrítica Graeber ainda foi insuficiente. A verdade é que ele nunca conseguiu entender que o mito do escambo era exatamente isto: um mito! Voltado tão somente a demonstrar que sociedades especificamente mercantis (onde as relações entre produtores são exclusivamente “econômicas”) não poderiam emergir sem o “dinheiro-coisa”. Nem Smith, nem Marx (que desdobra o dinheiro da mercadoria), tinham por objeto de pesquisa os instrumentos histórico-concretos de mediação das trocas não-especificamente-mercantis nas diversas civilizações, modos de produção ou formações sociais. A única função do mito do escambo é demonstrar que, em sociedades mercantis simples, a transformação de valores de uso em mercadorias não pode se consolidar sem a eleição de uma mercadoria particular como meio de troca: a emergência do dinheiro se impõe de forma virtualmente simultânea à emergência do mercado.

Por fim: a despeito de inúmeros equívocos presentes em seus trabalhos, as contribuições de Graeber são tantas e se espraiam por uma área tão vasta que, sem dúvida, sua obra é um must read. Mas, se nos permitem um alerta (e um conselho; que vos dou de graça), é preciso ler Graeber com cuidado, sem abusar da crítica (como ele mesmo, por vezes, abusou, em função de leituras apressadas dos clássicos), mas, também, sem condescendência. As Ciências Sociais (onde, por suposto, incluo a Economia) já têm uma longa tradição e acúmulo teórico conceitual. Ideias novas são sempre bem-vindas. Mais ainda quando – como em Graeber – elas estão embasadas em pesquisas sérias, contam com um arcabouço lógico-teórico rigoroso e tomam para si objetos tão ambiciosos que passam a desafiar consensos e paradigmas passados. Mas é sempre bom lembrar que – como nos ensina Hegel (autor, aliás, que é uma ausência marcante e significativa dentre as referências teóricas de Graeber) – o impulso inicial para o desenvolvimento é a negação. Mas só há, de fato, desenvolvimento, na síntese. Graeber é a negação. Uma relação efetivamente construtiva e respeitosa com sua obra seminal passa, necessariamente, por sua análise crítica e superação.

 

Veja em: https://outraspalavras.net/descolonizacoes/as-contribuicoes-e-equivocos-de-david-graeber/

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