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“Brasileiro ainda quer ser visto como herdeiro dos europeus”

Passados 20 anos desde que lei tornou obrigatório o ensino sobre história e cultura afro-brasileira, houve avanços, mas implementação ainda enfrenta entraves, avalia especialista em educação.

Por: Guilherme Henrique | Créditos da foto: Joacy Souza/PantherMedia/IMAGO. “As escolas e os professores precisam discutir um projeto de sociedade”, diz especialista

Sancionada há 20 anos, a lei 10.639 estabelece a obrigatoriedade do ensino sobre história e cultura afro-brasileira nas escolas do país. Celebrada como forma de apresentar aos estudantes novos aspectos do passado do Brasil, a legislação ainda enfrenta entraves quanto à sua aplicação.

A avaliação é da professora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pós-doutora em Ciências Humanas pela University Of South Africa (Unisa) e atualmente professora da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar).

Petronilha foi relatora da comissão que regulamentou a lei, estabelecendo as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. De acordo com a professora, 20 anos após a lei ser sancionada, ainda falta um acompanhamento mais estruturado sobre esse ensino nos níveis federal, estadual e municipal.

“Caberia ao Ministério da Educação, às secretárias de educação estadual e municipal estabelecer um programa sistemático de avaliação. Não há uma ação que cubra todo o país. [Falta dizer] ‘vamos agora avaliar o que está sendo feito no Brasil sobre a lei 10.639’, identificar o que as escolas têm feito na prática, os planos de ensino dos professores, o projeto político-pedagógico”, afirma.

Apesar dos avanços e da maior disseminação da cultura afro-brasileira nas escolas e na sociedade de maneira geral, Petronilha acredita que o sucesso da lei nos próximos anos depende de um projeto de país. “O brasileiro ainda tem o anseio de ser visto como se fosse herdeiro unicamente dos europeus. Nós avançamos, mas ainda há um longo caminho pela frente. E tudo vai depender do projeto de nação.”

DW Brasil: Passados 20 anos desde que a lei 10.639 foi sancionada, o Brasil conhece bem a cultura afro-brasileira?

Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva: Essa é uma avaliação particular a partir do que tenho visto nos projetos com que tive contato desde que a lei foi implementada. Essa avaliação recai sobre o poder que o texto legal tem para influir em um processo de educação e de sociedade. E o que nós temos visto é que há uma construção conjunta para o estudo da história dos povos africanos, afro-brasileiros e da própria cultura do país. No meio disso tudo, há uma disputa sobre distintos tipos de sociedade. Há uma construção conjunta, mas que nem sempre é colaborativa. E há um grupo que ainda se baseia no Brasil do século 16, onde uma parcela da população devia ser tratada de maneira distinta a partir da sua origem étnica-racial. O brasileiro ainda tem o anseio de ser visto como se fosse herdeiro unicamente dos europeus. Nós avançamos, mas ainda há um longo caminho pela frente. E tudo vai depender do projeto de nação.

A lei tem cumprido o papel de aplacar o racismo no Brasil?

Digo que sim e não. Muitas pessoas não negras passam a se dar conta do tipo de sociedade em que vivem e das relações que elas mantêm, por exemplo, no ambiente de trabalho, no transporte público, no supermercado, no bairro e nas igrejas. As pessoas passam a identificar o lugar do outro na construção da nação, nesse caso, das populações africanas e indígenas. A lei, portanto, visa também atuar nesse microcosmo das relações individuais sociais, na organização de uma sociedade ampla e na compreensão de que, assim como pertencemos a uma família, a um determinado grupo étnico-racial, nós também estamos em contato com outros núcleos com outros tipos de humanidade. É um salto difícil de dar, mas não é por isso que nós vamos desistir.

Há como medir se a aplicação da lei de fato tem acontecido nas escolas?

No geral, as experiências [bem-sucedidas] que nós conhecemos estão relacionadas a pessoas engajadas, com projetos de sociedade em que todos sejam respeitados, negros e não negros. Mas são ações quase sempre individuais. Caberia ao Ministério da Educação, às secretárias de educação estadual e municipal estabelecer um programa sistemático de avaliação. Não há uma ação que cubra todo o país. [Falta dizer] ‘vamos agora avaliar o que está sendo feito no Brasil sobre a lei 10.639’, identificar o que as escolas têm feito na prática, os planos de ensino dos professores, o projeto político-pedagógico. Não apenas dizer se a lei está sendo implementada. Mas como está sendo implementada, o que precisamos fazer agora e aonde queremos chegar. Talvez nos falte ainda uma linguagem comum, inclusive com o Ministério da Educação, para fazer uma grande avaliação com os estados para definir novos e diferentes rumos para a aplicação da lei. A política educacional não pode ser de um professor ou de uma instituição.

Diante dessas dificuldades, como avançar?

Penso que as escolas e os professores precisam discutir um projeto de sociedade. Qual projeto nós queremos para o Brasil. Essa é uma discussão que acontece de maneira reservada em alguns ambientes, em iniciativas específicas, mas que precisa alcançar um outro nível de amplitude. Profundidade e frequência. A convivência na escola, entre alunos, professores e servidores nos indica para qual caminho enquanto país? Se não dialogarmos em busca de um caminho comum, que abarque nossa sociedade de maneira mais igualitária, não vamos avançar. E é importante dizer que isso não deve ser restrito apenas aos profissionais negros. Professores não negros têm a responsabilidade de levar para a sala de aula a temática da lei.

 

Veja em: https://www.dw.com/pt-br/o-brasileiro-ainda-quer-ser-visto-como-herdeiro-apenas-dos-europeus/a-65233195

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