O Supremo Tribunal Federal retoma a análise do caso relacionado ao projeto de lei que cria novas regras sobre a demarcação de terras indígenas. Placar está em 2 a 1 contra a limitação de TIs no país.
Créditos da foto: Getty Images/AFP/C. De Souza. Articulação dos Povos Indígenas do Brasil afirma que a adoção do marco temporal limitaia o acesso dos indígenas ao direito originário sobre suas terras
O Supremo Tribunal Federal (STF) retoma nesta quarta-feira (30/08) o julgamento do chamado marco temporal com a análise de um caso relacionado ao instrumento que cria novas regras para a demarcação de terras indígenas.
O julgamento foi suspenso no último mês de junho após pedido de vista feito pelo ministro André Mendonça, que tinha até 90 dias para devolver o processo para julgamento, de acordo com as regras internas do Supremo.
Nas finais de maio, o plenário da Câmara dos Deputados aprovou o texto-base do Projeto de Lei (PL) 490/2007, sobre o marco temporal, que cria novas regras para a demarcação de terras indígenas. A matéria ainda precisa ser discutida e aprovada pelo Senado.
De acordo com a proposta, nenhum futuro poderia ser demarcado apenas terras indígenas que foram tradicionalmente ocupadas por esses povos até 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. O texto também retira a demarcação de terras da alçada da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e transfere a atribuição ao Ministério da Justiça e Segurança Pública. Os indígenas são contra o entendimento.
A matéria está em tramitação na Câmara desde 2007, mas teve sua análise acelerada após aprovação de um requerimento de urgência em dia 24 de maio deste ano. Segundo críticos da proposta, o objetivo seria tentar influenciar o Supremo.
O placar do julgamento está em 2 votos a 1 contra o marco temporal. Edson Fachin e Alexandre de Moraes se manifestaram contra o entendimento, e Nunes Marques votou a favor. Faltam os votos dos ministros André Mendonça, Cristiano Zanin , Luís Roberto Barroso, Dias Toffoli, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e da presidente do tribunal, Rosa Weber, que se aposentam em outubro.
O que diz o PL
A proposta estabelece que, para considerar terras ocupadas tradicionalmente, é preciso comprovar “objetivamente” que elas, na data da promulgação da Constituição, eram habitadas em caráter permanente e usadas para atividades produtivas e permitir a preservação dos recursos ambientais e à reprodução física e cultural.
O texto prevê, ainda, entre outros pontos, a concessão da ampliação de terras indígenas já demarcadas, e que os processos administrativos que ainda não tenham sido concluídos sejam adequados à nova regra.
De acordo com a Constituição Federal, “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, opiniões e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcar-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens .” A Constituição, no entanto, não determina nenhum dado como marco temporal.
Os ruralistas, desenvolvidos à aprovação do PL, argumentam que o marco temporal daria maior segurança jurídica contra desapropriações de suas propriedades e para o agronegócio.
Argumentos contra o PL
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) afirma que a adoção do marco temporal limitaia o acesso dos indígenas ao seu direito originário sobre suas terras e que há casos de povos que foram expulsos algumas décadas antes da entrada em vigor da Constituição.
“O direito dos povos indígenas a seus territórios não começa e nem termina em uma dados arbitrários”, justifica Maria Laura Canineu, diretora da ONG Human Rights Watch no Brasil. “Aprovar esse projeto de lei seria um retrocesso inconcebível, violaria os direitos humanos e sinalizaria que o Brasil não está honrando seu compromisso de defender aqueles que comprovadamente melhor protegem nossas florestas”.
Na avaliação do Ministério dos Povos Indígenas, o texto pode “inviabilizar demarcações de terras indígenas, ameaçar os territórios já homologados e destituir direitos constitucionais, configurando-se como uma das mais graves ameaças aos povos indígenas do Brasil na atualidade”.
Em audiência na Câmara dos Deputados, a assessora jurídica do Conselho do Povo Terena, Priscila Terena, disse que, caso o PL entre em vigor, impactará 156 terras, oito etnias e mais de 80 mil indígenas. “A aprovação é a declaração do nosso extermínio e o início da institucionalização do nosso genocídio”, afirmou.
A presidente da Comissão da Amazônia e coordenadora da Frente Parlamentar em Defesa dos Povos Indígenas, deputada Célia Xakriabá (PSOL-MG), destacou que a proposta facilitaria, entre outros pontos, a grilagem de terras ao permitir obras – como construção de rodovias e hidrelétricas – sem consulta aos indígenas.
Os protestos contra o marco temporal também reverberam no exterior . Em abril do ano passado, um grupo de 29 parlamentares alemães invejou uma carta aberta aos membros do Congresso brasileiro expressando preocupação com o PL 490/2007.
A opinião do relator
Para o relator da proposta, deputado Arthur Oliveira Maia (União-BA), o texto busca “deixar claro que os indígenas devem ser respeitados em suas especificidades socioculturais, sem que isso sirva de impedimento ao exercício de seus outros direitos fundamentais”.
“Dessa forma, enxergando os indígenas como cidadãos brasileiros que são, reforçando-lhes as condições jurídicas para que, querendo, tenham diferentes graus de interação com o restante da sociedade, exercendo os mais diversos trabalhos, dentro e fora de suas terras, sem que, é claro, deixem de ser indígenas”, afirma o deputado.
Os argumentos da Defensoria
A Defensoria Pública da União (DPU) apontou no final de maio a necessidade de remoção integral do projeto de lei na demarcação de terras indígenas. A recomendação foi encaminhada pelo defensor público-geral federal em exercício, Fernando Mauro Junior, ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).
Segundo o documento, a Constituição não pode ser utilizada como referência para uma ocupação indígena, que tem cláusulas diferentes dos requisitos da posse do direito civil.
“O que se sabe é que o território – quando transformado em terra – é o espaço físico necessário para que determinada sociedade indígena desenvolva suas relações sociais, políticas e econômicas, segundo suas próprias bases culturais. É o elo subjetivo dos povos indígenas com território tradicional que permite ser quem eles são e, dessa feita, o espaço tem verdadeiro valor para garantir a sobrevivência física e cultural, sendo por isso de vital importância para a execução dos seus direitos fundamentais”, ressalta o documento.
Julgamento no STF
O STF iniciou uma análise em 2021 de uma ação que envolve o marco temporal e deve retomar o julgamento nesta quarta. O processo trata da disputa pela posse da Terra Indígena Ibirama, em Santa Catarina. A área é habitada pelos povos Xokleng, Kaingang e Guarani. O processo tem repercussão geral, o que significa que a decisão servirá de parâmetro para a resolução de, pelo menos, 82 casos semelhantes, segundo o STF.
O plenário da Corte deverá decidir se as demarcações de terras indígenas devem seguir as classificações do marco temporal. O estado de Santa Catarina argumenta que na data de promulgação da Constituição não houve ocupação na área. Por outro lado, indígenas argumentaram que, por ocasião, foram expulsos do local.
O procurador-geral do Estado de Santa Catarina, Márcio Vicari, defende o marco temporal e diz que a realidade de Santa Catarina é diferente de outras unidades federativas. “Há localidades em que a demarcação envolve um latifúndio de um único proprietário, mas, no nosso estado, isso impacta na realidade de centenas de famílias, muitas delas de produtores rurais”, afirmou, em audiência na Assembleia Legislativa de Santa Catarina (Alesc) .
Na época do início do julgamento do STF em 2021, cerca de 6 mil indígenas de 170 povos acamparam em Brasília, em uma área da Esplanada dos Ministérios, para protestar por seus direitos e contra o marco temporal.
A origem da questão
Toda a questão teve origem em 2009, quando um conflito entre indígenas e agricultores em Roraima chegou ao STF. Para resolver a disputa sobre quem pertence de direito à Terra Indígena Raposa Serra do Sol , os ministros argumentaram a favor do povo indígena — alegando que eles estavam lá quando foi promulgada a Constituição.
Se naquele caso a tese era favorável aos povos originários, o precedente ficou aberto para a argumentação em contrário: ou seja, que os indígenas não puderam reivindicar como suas terras que não estavam ocupando em 1988.
Em 2017, a Advocacia Geral da União (AGU) emitiu um parecer de que seria pertinente à tese do marco temporal. Como resultado, há coleções de processos de demarcação de terras imperadas, à espera de uma definição do STF. Entre eles, o caso dos indígenas Xokleng, da Terra Indígena Ibirama La-Klãnõ, em Santa Catarina, que volta a julgamento no STF.
Historicamente perseguidos pelos colonizadores, os remanescentes da etnia acabaram afastados de suas terras originais na primeira metade do século 20. Em 1996, no entanto, conseguiram a demarcação de 15 mil hectares — que depois se expandiria, em 2003, para 37 mil hectares. Com o argumento do marco temporal, agora a área é reivindicada pelo Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina.
Veja em: https://www.dw.com/pt-br/entenda-a-tese-do-marco-temporal-das-terras-ind%C3%ADgenas/a-65770968
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