Após incentivo ao método fônico na gestão Bolsonaro, educadores defendem que melhor ensino é o que extrai as vantagens de várias técnicas – e leva em conta o processo individual de aprendizagem de cada aluno.
Por: Edison Veiga | Créditos da foto: NDR. “No início do século passado havia uma perspectiva tradicional de alfabetização. Hoje entendemos que a língua é viva”, diz pedagoga
Na página 115 de seu recém-lançado livro Qualquer maneira de alfabetizar vale a pena?, a pedagoga Eliana Borges Correia de Albuquerque, professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), defende “a não existência de apenas uma maneira de alfabetizar que valha a pena”. E essa parece ser uma opinião compartilhada por muitos especialistas da área no Brasil atual.
Ou seja: a visão contemporânea de estudiosos do tema contraria a crença disseminada durante a gestão de Jair Bolsonaro, cujo Ministério da Educação defendeu, de modo categórico, que o melhor método de alfabetização deveria ser aquele chamado de fônico – que parte do som das palavras para ensinar a ler e a escrever.
Especialistas concordam que mais importante que o método em si é a compreensão do processo de aprendizagem do aluno, que pode variar de acordo com as condições dele. E que o melhor ensino é aquele que consegue extrair as vantagens de vários métodos, em um processo que mescla com inteligência as abordagens ao longo do ensino.
“No passado, tudo se reduzia a uma discussão sobre métodos. Hoje isso não é o mais importante. A alfabetização não pode ser reduzida aos métodos”, argumenta a pedagoga Neide de Aquino Noffs, professora na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). “O método é uma das questões da aprendizagem. Queremos saber como se constrói a escrita e a leitura.”
A discussão sobre o método, se já parecia superada, foi reacendida com polêmicas recentes. “Acredito que o último governo [federal] tenha sido aquele que foi mais ostensivo e autoritário na imposição de uma visão única de alfabetização”, comenta a linguista Ludmila Thomé de Andrade, professora na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Segundo ela, a gestão anterior usou de diversos meios “para impor sua visão”. “De forma totalmente diversa, vínhamos trabalhando em políticas propostas […] que sempre buscaram abrir novos horizontes teóricos e epistemológicos, apostando em articulações com o que já se considerava historicamente.”
“Felizmente a PNA [Política Nacional de Alfabetização] foi revogada pelo atual governo [que assumiu neste ano], mas os livros didáticos aprovados nas duas últimas edições do PNLD [Programa Nacional do Livro Didático], e que permanecerão por quatro anos nas escolas públicas, precisaram se pautar nas prescrições da PNA”, ressalta Albuquerque.
Ex-diretora do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a pedagoga Francisca Izabel Pereira Maciel dá o contexto. Segundo ela, até os anos 1990 o embate era entre os defensores dos métodos analítico e sintético. Enquanto um partia do geral, ou seja, de pequenos textos para que, neles, fossem identificados sílabas e sons, o outro começava do tradicional beabá e ensinava à criança a maneira como a combinação de letras formava graficamente a representação de sons e, a partir da junção das sílabas, palavras podiam ser construídas – o método fônico incorpora essa ideia.
Maciel pontua que essa contenda foi resolvida com a mistura das abordagens. “Quando se pensa na criança e no professor desse nosso Brasil, não é possível pensar a defesa de um único método para alfabetizar”, diz. “Não dá para dizer ‘ou isto ou aquilo’. No processo são usados princípios analíticos, sintéticos e mistos. O importante é que a questão da alfabetização não se reduz à definição do método.”
Três métodos
Noff reconhece que a escolha da proposta de alfabetização hoje cabe à escola, mas ressalta que o método fônico, embora “ainda tenha grande influência”, é algo superado. Ela lembra como o construtivismo acabou se tornando forte no Brasil nas últimas décadas, com a ideia da “construção da escrita através do contato com a realidade de materiais escritos, da realidade e da tentativa de escrita pela criança”.
“O Brasil ficou muitos anos com as cartilhas, como a Caminho Suave. Davam certo, mas hoje temos a realidade de que o grande projeto de alfabetização é o contexto, a realidade, não a partir da cartilha, que tinha frases bobas. Hoje precisamos ter frases que façam sentido para a criança”, acrescenta.
Conforme explica Andrade, no Brasil contemporâneo são três os métodos que coexistem quando se pensa na alfabetização. O construtivismo é aquele que “estimula a exposição da criança com a escrita, com objetos escritos presentes na vida em sociedade, e provoca a interação do aprendente com situações em que é posto a escrever”.
O método fônico, “atestado pelo último governo, agora extinto, como única e obrigatória forma de se alfabetizar”, parte do exercício exaustivo dos fonemas, ou seja, dos sons das palavras. “É um retrocesso, uma volta direta ao século 19”, critica ela.
Por fim, há a perspectiva discursiva da alfabetização. “É afirmada. Textualmente como princípio norteador a ser perseguido na política atual do programa governamental Toda Criança Alfabetizada”, conta Andrade, explicando que o método “aposta na expressividade da criança desde os seus momentos iniciais de aquisição da escrita, e na duração desse aprendizado, bem como na diversidade de formas estéticas e multissemióticas de linguagem, das quais ela dispõe para acompanhar sua escrita”.
Realidade levada em conta
A pedagoga Maria Elisa Pereira Lopes, professora na Universidade Presbiteriana Mackenzie, lembra a importância de considerar sempre a realidade do aluno. “Se ele chega à sala de aula desconhecendo qualquer coisa da língua, é preciso trabalhar sob uma perspectiva. Mas se, como professora, eu entendo que eles carregam um conhecimento enorme já da língua falada, então partimos desse conhecimento prévio”, comenta.
“É muito diferente do que se fazia no início do século passado, em que havia uma perspectiva tradicional de alfabetização. Hoje entendemos que a língua é viva e as crianças precisam construir uma utilidade, e não um distanciamento, da língua portuguesa. E ela só vai construir isso quando a escola oferecer espaços para que ela se aproxime da língua portuguesa como sua, como futuro escritor e leitor da língua.”
“Do ponto de vista pedagógico, os métodos tradicionais, assim como os sistemas apostilados muito presentes hoje em diferentes secretarias de Educação do nosso país, propõem um ensino que desconsidera a heterogeneidade de conhecimentos dos alunos de uma turma”, critica Albuquerque. “A prática pedagógica é centrada no método, na sequência de atividades presentes em manuais didáticos que prescrevem o que o professor deve fazer diariamente com os alunos. Não se garante, dessa forma, que todas as crianças aprendam, uma vez que as atividades não são ajustadas a seus conhecimentos.”
Veja em: https://www.dw.com/pt-br/existe-um-m%C3%A9todo-mais-eficaz-de-alfabetiza%C3%A7%C3%A3o/a-67080061
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