Valor de uso e valor de troca. Os papéis da moeda. As bases para a noção de mais-valia. Parte das ideias econômicas e filosóficas marxistas tem raiz no pensador grego. E ambos sabiam que não é possível quantificar certas qualidades…
Por: Marcos Barbosa de Oliveira
“O dinheiro é a medida de todas as coisas”.
Aristóteles
“Como valores de uso, as mercadorias são, antes de tudo, de diferente qualidade; como valores de troca, elas podem ser apenas de quantidade diferente, sem conter, portanto, átomo algum de valor de uso”.
Marx
Em Considerações sobre o marxismo ocidental, Perry Anderson ilumina um dos aspectos que os pensadores dessa vertente têm em comum, a saber, o recurso a “filosofias pré-marxistas para legitimar, explicar ou suplementar a filosofia do próprio Marx”. O primeiro empreendimento importante desse tipo foi o estudo de Hegel por Lukács em História e consciência de classe. Na mesma linha, grosso modo, Anderson menciona os seguintes pares autor/filósofo: Colletti/Kant, Althusser/Espinoza, Goldmann/Pascal, Lefebvre/Schelling, Marcuse/Schiller, Gramsci/Maquiavel (Anderson, 2004, p. 79 ss.).
Em nenhum dos pares o lugar do filósofo é ocupado por Aristóteles. A tese principal deste modesto ensaio é a de que, se o tema são os precursores filosóficos de Marx, o mais importante é, na verdade, o estagirita.
Uma contribuição secundária é a contida nas observações a respeito da polaridade quantitativo/qualitativo ‒ em geral, na Economia, e nesta particularmente em relação ao valor de uso. O polo quantitativo requer um esclarecimento sobre os sentidos com que serão usados os termos “quantificação”, “mensuração” (ou “medição”; trataremos os dois termos como sinônimos) e matematização.
Tomando a quantidade como um conceito primitivo, definimos a quantificação como o processo de desenvolvimento da visão da realidade em termos de quantidade. A quantificação é um processo cognitivo, situa-se na esfera das ideias, na mente dos seres humanos. A mensuração situa-se na esfera da prática, é uma forma de interação com a realidade que torna mais definidos, mais precisos, aspectos da visão quantitativa. A quantificação pode existir sem a mensuração. Um bom exemplo dessa possibilidade é a Geometria Euclidiana. O teorema de Pitágoras refere-se, evidentemente, a quantidades: os tamanhos dos lados de um triângulo retângulo. Nada há de absurdo em pensá-lo enquanto uma lei empírica, que pode ser testada pela medição dos lados de triângulos reais, isto é, entidades materiais próximas da ideia do triângulo retângulo. Porém tal operação é exterior ao universo conceitual da Geometria Euclidiana. A mensuração, por outro lado, pressupõe a quantificação: para que algo seja medido, precisa primeiro ser quantificado. O termo matematização, por fim, designa as duas operações em conjunto (matematização = quantificação + mensuração).1
Outra observação preliminar é a que diz respeito à importância de Aristóteles na história da Economia. Como diz Meikle (1995, p. 1):
A influência dos escritos econômicos de Aristóteles tem sido enorme, apesar de ocuparem menos de meia dúzia de páginas da Ética a Nicômaco e da Política, na edição de Bekker. Eles constituíram a espinha dorsal do pensamento medieval a respeito do comportamento comercial e de temas que chamaríamos de “econômicos”. […] São usualmente considerados a primeira contribuição analítica para a Economia, e as histórias do pensamento econômico os tomam como ponto de partida.2
Algumas ideias econômicas de Aristóteles continuam grosso modo válidas até hoje, como os conceitos de valor de uso e valor de troca, e sua concepção do dinheiro como tendo três funções: de meio de troca, medida do valor e reserva de valor. Com base numa interpretação livre, digo que para o entendimento destas e de suas outras ideias econômicas, é imprescindível levar em conta que elas surgem motivadas por questões éticas. O fato de as passagens “econômicas” figurarem na Ética a Nicômaco e na Política pesa naturalmente a favor dessa interpretação.
Apesar da importância histórica das ideias econômicas de Aristóteles, na opinião de vários comentadores, as passagens em pauta não primam pela clareza. “Uma das poucas proposições aceitáveis para todos os comentadores modernos do livro V da Ética é a de que embora os insights que ele contém sejam notáveis, o texto em si é desorganizado e frequentemente obscuro” (Kaye, 2004, p. 53), dando ensejo a diferentes interpretações. Schumpeter, p. ex., rejeita a interpretação aqui adotada, sustentando que a motivação ética vem em segundo lugar, precedida pela motivação analítica (Schumpeter, 1994, p. 54).
O sistema econômico da Grécia antiga não era evidentemente o capitalismo, mas existiam mercadorias, mercadores e mercados, artesãos que vendiam suas produções e prestadores de serviços pagos (p. ex., consultas médicas, aulas ministradas pelos sofistas). Desse contexto emerge a concepção do preço justo, que não perdeu a atualidade. Embora o termo não seja usado com frequência, o conceito está pressuposto no senso comum quando se comenta que um supermercado é careiro, ou quando se reclama das editoras que cobram preços exorbitantes pelo acesso a artigos científicos. As ideias de Aristóteles sobre o tema figuram na seção da Ética que versa sobre a justiça (EN, 1129a-1138b).
O caráter ético da abordagem de Aristóteles no tratamento das questões econômicas se manifesta na condenação de determinadas práticas, várias delas podendo ser interpretadas como desvios da norma do preço justo. Um exemplo é o que diz respeito à possibilidade de um vendedor cobrar preços acima do justo graças ao monopólio ‒ já naquela época! Numa passagem bem conhecida, a respeito de Tales de Mileto, diz ele:
Por causa de sua pobreza, imputada à inutilidade da filosofia, Tales era alvo de escárnio; graças porém a seus conhecimentos de astronomia, ele previu, ainda em pleno inverno, que haveria uma abundante colheita de azeitonas; ele obteve, então, algum dinheiro e adquiriu o direito de uso de todos os lagares em Mileto e Quios, pagando pouco porque ninguém competia com ele; quando chegou a época da extração do azeite, houve uma súbita procura de numerosos lagares ao mesmo tempo, e sublocando-os nas condições que quis ele ganhou muito dinheiro, provando que para o filósofo é fácil obter lucro quando ele quer, mas não é disso que ele cuida. (Pol, 1259a9)
Outra manifestação da postura ética é a condenação da usura.
A usura é detestada com muita razão, pois seu ganho vem do próprio dinheiro, e não daquilo que levou à sua invenção. Efetivamente, o objetivo original do dinheiro foi facilitar a permuta, mas os juros aumentam a quantidade do próprio dinheiro, […] logo, esta forma de ganhar dinheiro é de todas a mais contrária à natureza. (Pol., 1258a)
Passando agora às concepções de Marx, como se sabe, ele tinha Aristóteles em alta conta, e não deixa de expressar sua admiração, qualificando-o como “o grande estudioso que pela primeira vez analisou a forma de valor, assim como tantas outras formas de pensamento, de sociedade e da natureza” (O Capital, vol. I, p.135).
O primeiro aspecto das concepções aristotélicas incorporado por Marx, na interpretação que propomos, é a abordagem ética, da qual emerge a norma do preço justo. O Capital é uma crítica da Economia Política, mas também, é claro, do próprio capitalismo. A alegação crítica mais central levantada por Marx contra o sistema capitalista é sem dúvida a que diz respeito à mais-valia, cuja apropriação pelo capitalista ele condena como um roubo (O Capital, vol. I, p. 308 e 498). É fácil perceber que tal condenação nada mais é senão a aplicação da norma do preço justo ao caso particular do preço da força de trabalho.3 Para os neoliberais, o preço justo é o preço de mercado.
Como saber qual é o preço justo de um bem? Num primeiro momento, Aristóteles considera não operações de compra e venda, mas a troca simples, ou escambo, em que nenhum dos bens trocados é o dinheiro. Como um exemplo, ele discute por quantos pares de sapato deve ser trocada uma casa.4 Trata-se, pode-se dizer, de uma teoria do escambo justo, segundo a qual, para que uma troca seja justa, os dois bens trocados devem ter algo em comum, algo que seja o mesmo em ambos – e esse algo é o valor. Num escambo justo, os bens permutados devem ter o mesmo valor.
No segundo momento, Aristóteles introduz o dinheiro enquanto um meio de troca, um dispositivo obviamente de grande utilidade como facilitador de transações em sociedades com algum grau de divisão do trabalho. E com o dinheiro vem o conceito do preço justo. Para que uma operação de compra e venda seja justa, o valor da mercadoria adquirida deve ser igual ao da quantidade de dinheiro paga. Isso implica que os valores das mercadorias devem ser comensuráveis (e antes disso, quantificáveis). Nas palavras de Aristóteles:
Deste modo, agindo o dinheiro como uma medida, torna ele os bens comensuráveis e os equipara entre si; pois nem haveria associação se não houvesse troca, nem troca se não houvesse igualdade, nem igualdade se não houvesse comensurabilidade. Deve haver, pois, uma unidade, e unidade estabelecida por comum acordo […], pois é ela que torna todas as coisas comensuráveis, já que todas são medidas pelo dinheiro (EN, 1133a)5
Esse princípio da igualdade, ou da equivalência, é incorporado por Marx enquanto um dos pilares de sua teoria do capitalismo. Como diz Harvey (2010, p. 36), “Esse atributo da igualdade no sistema do mercado é terrivelmente importante; Marx o concebe como fundamental para a maneira como o capitalismo funciona teoricamente.”6
Sendo o dinheiro uma entidade essencialmente quantitativa, e sendo o valor uma peça fundamental de uma teoria econômica, ele precisa ser quantificado. Até aí tudo bem. Mas como pode esse valor quantificado ser medido? De início duas alternativas se apresentam, as que o identificam ou com o valor de troca, ou com o valor de uso. A primeira é claramente inadequada, uma vez que o valor de troca se manifesta como preço, e o preço é o que, de um ponto de vista analítico, precisa ser explicado ‒ ou, de um ponto de vista ético, na forma de preço justo, é o que precisa ser justificado. A segunda alternativa, do valor identificado com o valor de uso, também não dá conta do recado, já que, para Aristóteles, os valores de uso são qualidades, e, de acordo com sua teoria das categorias (exposta no Organon) e qualidades não podem ser quantificadas ou medidas. Na falta de uma alternativa, Aristóteles falha em formular uma teoria do valor.
Além do princípio da equivalência, Marx vale-se também de várias outras ideias econômicas de Aristóteles, seguindo muito de perto os passos do mestre até a introdução da teoria do valor, nesse ponto indo além com sua Teoria do Valor-Trabalho. No espírito de uma abordagem externalista, ele explica, com base nas condições sociais da época, em particular a escravidão, a falha de Aristóteles em formular uma teoria do valor ancorada no trabalho.
O gênio de Aristóteles brilha precisamente em sua descoberta de uma relação de igualdade na expressão de valor das mercadorias. Foi apenas a limitação histórica da sociedade em que ele vivia que o impediu de descobrir em que “na verdade” consiste essa relação de igualdade. (O Capital, vol. I, p. 136).
O caráter ético da abordagem aristotélica também se manifesta numa outra faceta de suas ideias econômicas, a que diz respeito às várias formas de transação. Cada uma delas é voltada para um determinado fim, do qual depende sua aprovação ou condenação. Para analisá-las, Meikle adota a notação em que as letras M e D significam mercadoria e dinheiro.7 A primeira forma é o escambo (M-M’), a segunda, a compra (D-M) e venda (M-D), a terceira a crematística ou ‘arte de ganhar dinheiro’ (D-M/MD’) ou, abreviadamente, (D-M-D’), e a quarta a usura (D-D’) (Meikle, 1994, p. 27-8).
Do ponto de vista axiológico, é fundamental a distinção aristotélica entre dois tipos de crematística: a natural, aceitável do ponto de vista ético, cujo fim, por definição, é o de satisfazer as necessidades materiais da vida humana, e a desnatural, eticamente condenável, em que o fim é o incremento do dinheiro possuído, um fim em si mesmo, sem limites.8 A noção de limite (peras) desempenha um papel essencial no pensamento de Aristóteles, não só na Economia, mas também na Metafísica (Meikle, 2000, p. 257). Discordando de Solon, quando este afirma “Não foi fixado para o homem um limite de riquezas”, diz o filósofo,
As coisas passíveis de acumulação necessárias e úteis à comunidade composta pela família ou pela cidade […] parecem constituir a verdadeira riqueza, pois a necessidade desses bens necessários por si mesmos a uma vida agradável não é infinita. (Pol. 1256a14)
Um aspecto em que adeptos e críticos concordam, é o de que o capitalismo valoriza essencialmente o crescimento ilimitado dos lucros, da eficiência, da acumulação do capital, etc.9 Como diz Weber, “ganhar dinheiro e sempre mais dinheiro” é o summum bonum da ética própria do espírito do capitalismo, a qual corresponde, claramente, à crematística desnatural.10
Em outro escrito, tratando de Marx, diz Meikle:
A notação que usa M e D para denotar os circuitos das mercadorias e dinheiro deve-se a Marx. Ver O Capital, vol I, caps. 3 e 4, e a anterior Contribuição à crítica da Economia Política. A análise marxiana desses circuitos segue de perto a de Aristóteles. Há muitas indicações, especialmente na Contribuição, precursora d’O Capital, mas também no próprio, de que Marx derivou os elementos mais básicos de sua análise de Aristóteles, e assim, não é de surpreender que a notação seja tão bem adequada às concepções de Aristóteles. […] Toda a crítica marxiana da Economia Política […] baseia-se na estrita observância da distinção categorial entre valor de uso e valor de troca, enquanto qualidade e quantidade, respectivamente. Na visão de Marx, as empresas capitalistas, e a economia capitalista como um todo, são essencialmente empreendimentos voltados para D-M-D’, e não M-D-M’. Keynes era da mesma opinião, diferentemente de muitos economistas. (Meikle, 1995, p. 52)
No raciocínio que conduz à Teoria do Valor-Trabalho, Marx acompanha Aristóteles, ao afirmar que o motivo pelo qual é inviável tomar o valor de uso como substrato do valor reside no fato de que, por um lado, o valor deve ser quantitativo, por outro, os valores de uso são qualidades, e como tais, não podem ser quantificados nem medidos. Para aprofundar a análise dessa tese, convém voltar à história, agora não mais à Antiguidade, mas sim à Baixa Idade Média, período em que floresceu a Escolástica. Outra justificativa para este passo é o fato de que a influência de Aristóteles sobre Marx deu-se não apenas diretamente, mas também por meio das contribuições da Escolástica.11
O interesse dos escolásticos pela vida econômica, particularmente o dinheiro, é atestado pelos escritos que deixaram sobre o tema. Como se dedicavam também à Filosofia da Natureza, isso permitia que houvesse influências mútuas entre os dois domínios do conhecimento. Tais escritos consistiam em comentários sobre as ideias econômicas de Aristóteles que, por um lado as incorporavam, por outro desviavam-se delas, abrindo o caminho para a visão de mundo própria da modernidade. Entre os comentários mais destacados, encontram-se os de Alberto Magno (1193-1280), Tomás de Aquino (1225-1274) e Nicole Oresme (1323-1382).12
O aspecto mais notável que compartilhavam com Aristóteles era a abordagem ética, que dava origem a juízos morais sobre vários tipos de transações, tendo uma boa parte delas como fundamento a norma do preço justo, por sua vez assentada no princípio da equivalência.
Outra ideia de Aristóteles, também muito importante, que foi não somente adotada, mas desenvolvida pelos escolásticos é a da segunda função do dinheiro, a do dinheiro como medida do valor, e em particular, a proposição de que o dinheiro é a medida de todas as coisas (ou, mais precisamente, de tudo o que pode ser objeto de troca).
A introdução das ideias econômicas em outros domínios do pensamento pode ser interpretada como tendo sua origem na seguinte linha de raciocínio, cuja conclusão consiste num aspecto em que os escolásticos se desviaram dos ensinamentos de Aristóteles. Muito esquematicamente: 1) tudo o que é trocável é mensurável pelo dinheiro; 2) o conjunto de coisas trocáveis inclui uma variedade imensa de elementos, que se distinguem uns dos outros por suas qualidades; 3) sendo assim, o dinheiro mede qualidades – o que significa que são mensuráveis, contrariando a teoria aristotélica das categorias.13
A possibilidade de quantificar qualidades representou uma libertação da visão de mundo qualitativa do sistema aristotélico, e deu origem ao que chamaríamos hoje de um vasto programa de pesquisa tendo por objetivo a quantificação das qualidades. Kaye o caracteriza como uma “tentativa frenética” (frenzied) de estender a mensuração e a quantificação às mais variadas e subjetivas qualidades” (Kaye, 1988, p. 256). Os avanços no programa estimularam os escolásticos a introduzir a visão quantificadora até na própria Teologia:
Logo, não apenas entidades que nunca haviam sido medidas antes, mas também as que nunca foram medidas desde então, eram submetidas a algum tipo de análise quantitativa. Questões teológicas a respeito das qualidades mais subjetivas e aparentemente imensuráveis, como a força da caridade cristã, ou a comparação do amor humano com o amor de Cristo, ou os meios pelos quais a qualidade da graça aumenta na alma, eram rotineiramente tratadas como problemas de quantificação, e sujeitas à análise de acordo com os últimos desenvolvimentos na lógica e na matemática da mensuração. (Kaye, 2004, p. 3).
No plano mais concreto, Kaye menciona a precificação das indulgências.
No início do século XIV (1308), a monetização e a medida racionalizada do preço invadiram de tal modo o domínio da Teologia oficial que a proporção do pagamento em relação à retribuição na forma de indulgência podia ser oficialmente fixada pelo papa Clemente V no valor de um penny de Tours para cada ano de perdão concedido (Kaye, 2004, p. 168).
Por outro lado, um aspecto da maior importância na linhagem quantificadora dos escolásticos é a ausência de medições. Como diz Anneliese Maier,
Vezes sem conta os filósofos do século XIV contentavam-se com entender a maneira de conhecer sem buscar o próprio conhecimento.
Tal atitude produziu – ou talvez tenha derivado de – uma deficiência incomum na “nova física” do século XIV: ninguém media coisa alguma. Os filósofos não apenas se recusavam, mesmo nos casos mais simples, a procurar maneiras e meios de fazer medições indiretas, mas também ignoravam a oportunidade de fazer medições diretas, quando isso era claramente factível. (Maier, 1982, p. 168-9)
Tendo em mente a distinção entre a quantificação, a mensuração e a matematização esboçada acima, pode-se dizer que os escolásticos tudo quantificavam, mas nada mediam, e portanto, nada matematizavam. A matematização só veio ter início quase dois séculos depois, por obra dos pioneiros da Revolução Científica ‒ Galileu, Kepler, Descartes, et al. Essa demora explica-se em parte pelo fato de que a tarefa de executar mensurações nada tem de simples, ou óbvio. Pelo contrário, além de conhecimento teórico, a operação exige do investigador grande dose de engenhosidade, de capacidade de inventar expedientes para resolver problemas práticos ‒ atributos dos quais Galileu era notavelmente dotado (Mariconda & Vasconcelos, 2020).
Começando na Física, o programa matematizador da Revolução Científica vai conquistando sucessivamente a Química, a Biologia, a Geologia, etc., e depois ‒ no campo das ciências humanas, fortalecido pelo positivismo ‒ a Sociologia e a Psicologia. Não há dúvida, portanto, de que o programa foi extremamente bem-sucedido ‒ a ponto de permitir, em fins do século XIX, ao eminente Lord Kelvin, radicalizar, declarando:
Quando podemos medir aquilo de que falamos e expressá-lo em números, sabe-se algo a seu respeito; quando não podemos expressá-lo em números, nosso conhecimento é pobre e insatisfatório; pode ser o começo do conhecimento, mas em nosso pensamento, mal avançamos em direção ao estágio da ciência, seja qual for a questão. (Thomson (Lord Kelvin), 1891, p. 73)
O aspecto crucial do programa matematizador da ciência moderna, na linha de raciocínio ora em curso, é o de que seus avanços incluíram muitos casos em que a grandeza matematizada era considerada uma qualidade, como a cor, o som, o gosto, e outros. Com isso fica refutado o princípio aristotélico da incomensurabilidade das qualidades.
Aplicada ao valor de uso, tal mudança anula a incomensurabilidade enquanto razão para que ele não possa desempenhar o papel do valor, ou do substrato do valor, como nas concepções de Aristóteles, nisso acompanhado por Marx. Mas se a razão não é essa, qual seria? Poderia o valor de uso afinal ser mensurável? Descartando tal possibilidade, a resposta que propomos é simplesmente a de que, na Natureza e na vida social, por motivos que variam de caso a caso, há uma infinidade de entes incomensuráveis. Entre eles, há muitos que um autor ou programa de pesquisa gostaria de medir, dando assim origem a uma tensão. Como um exemplo, relevante no presente contexto, W. S Jevons, um dos pioneiros da vertente neoclássica da Economia, teria gostado muito de poder medir o valor de uso. Apesar de seus ingentes esforços, fracassou, uma vez que o conceito de utilidade, que propôs como substituto, carece dos atributos próprios do valor de uso, como tradicionalmente concebido. Segundo Meikle (2000, p. 250):
W. S. Jevons muda o foco decisivamente para longe da serventia (usefulness) no consumo, em direção à serventia na compra e venda, e em consequência perde-se completamente uma noção independente de valor de uso (value in use). Jevons estava convencido de que quase tudo do que havia de errado na Economia de seu tempo devia-se à presença de noções qualitativas, e seu objetivo era substituí-las por noções quantitativas, sempre que lhe parecia possível. A utilidade (utility), o que havia sido anteriormente chamado de “valor de uso”, ocupava o topo de sua lista. […] Sua noção de utilidade é a de uma serventia que não é discriminada em espécies, e que pode estar presente indiscriminadamente em qualquer tipo.
Os economistas que me corrijam, mas a meu ver a noção de valor de uso, no sentido em que figura em Aristóteles, nos escolásticos e na Economia Política clássica, fica de fora da vertente ortodoxa da Economia, a partir dos neoclássicos. O mesmo pode ser dito da Economia marxista, como transparece n’O Capital, quando Marx relega os valores de uso a uma “disciplina específica, a merceologia”.14
Um estudo das razões pelas quais alguns entes podem, e outros não podem ser mensurados exigiria uma análise rigorosa das ideias de Aristóteles a respeito das categorias, tarefa situada muito além dos limites deste ensaio. Nas considerações finais a seguir, levando em conta que a avaliação quantitativa nada mais é senão uma forma de mensuração, tratarei de um caso particular, a avaliação acadêmica enquanto medida da produtividade das atividades de pesquisa.
Em outros textos (Oliveira, 2015, 2019 e 2022), defendo a tese da existência de duas forças quantificadoras da vida social. Uma delas é a da ciência moderna, cuja força quantificadora fica tão mais intensa quanto mais a própria ciência se matematiza15. A outra força é a do capitalismo, tanto mais intensa quanto mais se radicalizam seus princípios, como acontece no neoliberalismo. As duas forças são mutuamente reforçadoras, sua ação conjunta sustenta o prestígio do princípio de Kelvin, que continua funcionando a pleno vapor.
Essa constatação factual abre o caminho de uma tese crítica, a saber, a de que as pressões quantificadoras em tempos de neoliberalismo levam a tentativas de mensurar o imensurável, as quais geram mensurações extremamente precárias, prenhes de efeitos deletérios sobre a vida social. É o que acontece, p. ex., com o PIB (per capita) como medida da qualidade de vida dos habitantes de um país. Outro exemplo, é o das avaliações quantitativas, que desempenham papel central na administração da Academia, enquanto medidas da produtividade dos pesquisadores e das pesquisas. Na verdade, praticamente todas as ideias expostas neste ensaio são resultados de uma reflexão, iniciada há muitos anos, sobre o par quantidade/qualidade na avaliação acadêmica.
Veja em: https://outraspalavras.net/alemdamercadoria/karl-marx-discipulo-de-aristoteles/
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