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No campo brasileiro, a agricultura da morte

A maior concentração de terras do planeta. Três Franças esterilizadas na especulação fundiária. Devastação do trabalho e do ambiente. Venenos na mesa da população. Uma análise de nosso modelo agrícola – e caminhos para superá-lo

Por: Marie Madeleine Hutyra de Paula Lima | Créditos da foto: REUTERS/Bruno Kelly

Existem atividades e elementos econômicos e políticos intensamente imbricados que afetam a vida da população de países, em especial os subdesenvolvidos como o Brasil. Entre estes, a relação entre fome, tipo de agricultura predominante, sistema de distribuição alimentar, acesso à terra e proteção à biodiversidade, que são objeto de muitos estudos.

As crises global e nacional da fome devem ser enfrentadas sob uma perspectiva geopolítica reconhecendo as causas nas deficiências do próprio sistema alimentar globalizado. Este sistema integra uma cadeia mercantil muito complexa, sem transparência, interligada e verticalizada pelo controle corporativo desde o plantio até a comercialização. Ele não busca produzir alimentos, nem os concebe como um direito humano elementar, nem visa segurança, qualidade e diversidade nutricional em seus produtos.

O véu da hipocrisia já foi desvendado. Em nível mundial, existem resistências de segmentos sociais, povos indígenas e organizações da sociedade civil que lutam para mudar os sistemas alimentares e fortalecer o caráter democrático e multilateral da Organização das Nações Unidas – ONU. Esta também está sendo assediada pelo poder corporativo para manter os sistemas alimentares industriais (ou sistema ambiental globalizado) e impedir as mudanças produzidas pela luta pela agroecologia, defesa da biodiversidade e outras campanhas na direção da soberania alimentar.

Com o título “Para resolver a crise global da fome, é essencial transformar fundamentalmente nossos sistemas alimentares no interesse das pessoas e do planeta”, foi editada a “Declaração da Resposta Autônoma dos Povos à Cúpula da ONU sobre Sistemas Alimentares+2”, de 20 de julho de 2023. Foi motivada pelo fato de a Cúpula das Nações Unidas sobre Sistemas Alimentares (UNFSS) não conseguir fazer cumprir os direitos humanos e ter minado conquistas de uma governança alimentar global mais democrática, como o Comitê de Segurança Alimentar Mundial (CFS) da ONU e sua face política – o Painel de Especialistas de Alto Nível (HLPE). Consta, ao final da declaração, que: “nesses tempos de crises múltiplas e interligadas, é mais urgente do que nunca que os governos e as Nações Unidas ouçam as vozes dos grupos mais afetados e apoiem suas demandas e esforços para uma transformação genuína dos sistemas alimentares em favor das pessoas e do planeta, com base no respeito a todos os direitos humanos e no avanço da agroecologia, da soberania alimentar, da biodiversidade, da justiça e diversidade de gênero, da ação dos jovens, da justiça climática, da justiça econômica e social, em todas as dimensões dos sistemas alimentares”.

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A partir de 1986, o Banco Mundial rompeu com o conceito do direito à alimentação da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Nos artigos 3º e 25º, esta afirma: “Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família, saúde e bem-estar, e, especialmente, a alimentação”. Esta mudança foi feita quando o banco redefiniu o conceito de segurança alimentar para “capacidade de adquirir alimentos” (“the ability to purchase food”). Os EUA, por seu departamento de agricultura, mercantilizou o conceito de segurança alimentar mudando para commodity e declarou que o fornecimento do alimento funciona melhor quando regulado pelo mercado mundial. A mudança foi institucionalizada na metade dos anos 1990, quando 123 países firmaram o “Agreement on Agriculture”um protocolo da Organização Mundial do Comércio – OMC que consagrava o “livre comércio” como imprescindível à obtenção de segurança alimentar.

Assim, a produção de alimentos, também, no Brasil passou a ser regida pelas regras da importação/exportação de grãos ao sabor do comércio internacional de commodities. No contexto do capitalismo monopolista mundializado, segundo Ariovaldo Umbelino de Oliveira, a agricultura “está estruturada sobre três pilares: a produção de commodities, as bolsas de mercadorias e de futuros e os monopólios mundiais. Primeiro, visou transformar toda produção de agropecuária, silvicultura e extrativista, em produção de mercadorias para o mercado mundial. Portanto, a produção de alimentos deixou de ser questão estratégica nacional, e passou a ser mercadoria a ser adquirida no mercado mundial onde quer que ela seja produzida” (OLIVEIRA, 2012).Segundo a Comissão “The Lancet”, o sistema alimentar globalizado está adoecendo a humanidade com as variadas formas de má desnutrição, incluindo obesidade, subnutrição e outros riscos dietéticos”.1

Por sua vez, as commodities, segundo Luiz Marques: “são produto de monoculturas tóxicas cultivadas em grandes propriedades, voltadas para os mercados globais e controladas por uma complexa cadeia corporativo-financeira extremamente concentrada”. Esta rede abrange todo o complexo de atividade econômica, da agroquímica e da bioengenharia (sementes, agrotóxicos, fertilizantes industriais) ao maquinário, à comercialização, ao transporte, ao (ultra)processamento industrial e, por fim, ao estabelecimento do sistema de preços, onde a especulação financeira na “Chicago Mercantile Exchange” tem um papel crescente (MARQUES, 2023).

As corporações que dominam a agricultura subordinada ao sistema alimentar globalizado visam cada vez mais lucro e não priorizam as diretrizes internas de duas decisões brasileiras: a Política Nacional de Mudança do Clima e a Política Nacional do Meio Ambiente, que o Brasil deveria fazer cumprir, por conta de seus biomas protegidos e a biodiversidade mais rica do planeta. Os princípios elencados na Lei 12.187/2009, da precaução, da prevenção, da participação cidadã, do desenvolvimento sustentável e o princípio das responsabilidades comuns, porém diferenciadas, não têm real significado para muitos representantes do modelo agroindustrial. Na execução, as ações e as medidas adotadas deveriam levar em conta o cumprimento de objetivos, onde o desenvolvimento sustentável é condição essencial para o enfrentamento das alterações climáticas e deve conciliar o atendimento às necessidades das populações e comunidades (individuais e comuns) no território nacional. Em acréscimo, as ações de âmbito nacional deveriam estar integradas com as ações no âmbito estadual e municipal por entidades públicas e privadas.

O enfrentamento da fome no Brasil está distante desses objetivos e fica difícil justificar política e moralmente a fome em parcela significativa da população no país que exporta quantidade enorme de grãos e cujo lucro beneficia poucos grupos.

Responsável pela criação da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura – FAO em 1945, Josué de Castro empenhou-se em analisar o fenômeno da fome numa perspectiva ecológica – biológica, social, cultural e política – e também como um problema nacional e mundial. Estamos nas mesmas condições que Castro denunciava: a questão geopolítica contribuindo para a fome e a degradação do meio ambiente. (PORTO-GONÇALVES, 2004).

A tendência do fenômeno da fome é apresentada por Luiz Marques com base no Mapa da Fome no Brasil. Entre 2001 e 2014, existiam políticas públicas que reduziram sua incidência com a diminuição da pobreza em 75%, como o Programa da Bolsa Família, crescimento real do salário mínimo (71,5%) e a merenda escolar para 43 milhões de crianças e adolescentes. A crise econômica de 2014 e a mudança nas políticas públicas no governo Bolsonaro alteraram a tendência e a fome foi se espalhando pelo país, em parte agravada pela pandemia e pelo aumento de produção de milho e de soja para exportação e para ração animal (representando 80% de todos os grãos produzidos no país), segundo Paulo Petersen, da Articulação Nacional de Agroecologia e da AP-TA. Conforme a Rede Penssam, em dezembro de 2020, 116,8 milhões de pessoas sofriam algum grau de insegurança alimentar (leve, moderada ou grave); em 2021: 125,2 milhões de residentes em domicílios com “insegurança alimentar” e 33 milhões de pessoas em situação de fome (insegurança alimentar grave). Houve maior desigualdade de acesso aos alimentos nos domicílios rurais, 18,6% dos quais enfrentam fome diária (MARQUES, 2023, p. 146). É válido criar uma articulação nacional com o plano mundial, mas o problema da fome e dos alimentos terá efetiva solução no plano nacional (PORTO GONÇALVES, 2004).

O agronegócio é fortemente subsidiado pelo governo, tem incentivos nas linhas de crédito, nas pesquisas, sendo que os agrotóxicos, que são a base do agronegócio, têm desoneração em tributos, impactando os cofres públicos. Algumas das externalidades negativas do modelo do agronegócio integrado ao sistema alimentar globalizado são: a) círculo viciosos entre o impacto nas mudanças climáticas e do efeito das mudanças climáticas sobre a agricultura; b) responsável pelo aumento da emissão de gases de efeito estufa; c) privatização de extensas áreas do território nacional por grupos e corporações, nacionais ou internacionais; d) perda da biodiversidade com a monocultura, o uso intensivo de agrotóxicos e avanço da fronteira agrícola; e) contaminação, pelos agrotóxicos, de pessoas em graus diversos, dos recursos hídricos superficiais e subterrâneos e do solo, impactos maiores pela deriva com a pulverização aérea, por avião ou por drone; f) desmatamentos e avanço sobre terras de povos originários e sobre terras devolutas, cuja destinação seria a reforma agrária; g) exclusão da terra dos trabalhadores do campo; h) redução da variedade de produtos produzidos para alimentos, eliminando culturas anteriores; i) desterritorialização dos produtos, distanciando as necessidades da população onde são produzidos dos interesses dos intermediários e investidores nas bolsas de valores; j) insegurança alimentar, por não suprir a fome.

No aspecto ambiental, há registros de que o processo moderno de colonização agrário/agrícola rompe o equilíbrio hídrico, em especial nos biomas do Cerrado e da Amazônia, que são vizinhas e ecologicamente complementares (PORTO-GONÇALVES, 2004).2 Quanto ao estoque de recursos hídricos e a contribuição da água para as atividades econômicas e as famílias, em 2020, para cada R$ 1,00 gerado pela economia foram consumidos 6,2 litros de água, sendo que a agricultura representa mais da metade das retiradas de água para uso consuntivo, segundo dados em “Contas econômicas ambientais da água: Brasil: 2018-2020” (IBGE, Coordenação de Contas Nacionais).

Por outro lado, o uso intensivo de agrotóxicos representa uma espécie de “infraestrutura” do agronegócio, por sua dependência estrutural e econômica. Larissa Lies Bombardi fez um extenso levantamento de dados sobre o uso dos agrotóxicos no Brasil e elaborou seu registro em mapas3Eles destacam as substâncias químicas autorizadas para uso no Brasil, enquanto sua aplicação é proibida na União Europeia por seu risco para a saúde – o que não impede as exportações para o Sul Global… Também indicam a extensão dos monocultivos ocupando áreas por determinada espécie no Brasil em comparação com a área de vários países pequenos da União Europeia. Os dados apresentados revelam a falta de proteção à saúde no Brasil diante das exigências reduzidas para autorizações de uso de agrotóxicos no país com diferenças percentuais excessivas no limite máximo de resíduo permitido no país para determinada substância em comparação com as exigências locais pela legislação da União Europeia (BOMBARDI, 2019).4

Um estudo revela: a) para cada US$ 1,00 gasto com a compra de agrotóxicos no Paraná, estimam-se gastos de U$$ 1,28 no tratamento de intoxicações agudas, que ocorrem imediatamente após a aplicação da substância; b) aqui não se incluem os gastos com saúde pública, decorrentes da exposição constante aos venenos agrícolas; com o tratamento do câncer, por exemplo, ou da poluição ambiental; com a seguridade social, em decorrência do afastamento por doenças e morte de trabalhadores e populações contaminadas (SOARES & PORTO).

Embora causando graves impactos à saúde das pessoas e ao meio ambiente, o mercado de agrotóxicos tem benefícios fiscais, como redução de 60% da base de cálculo do ICMS e isenção total do IPI para determinados tipos, com redução da arrecadação tributária, o que gera fortes críticas por setores da sociedade. O financiamento bancário incentiva o uso de agrotóxico ao integrar essas substâncias ao requisito do pacote tecnológico para a concessão de crédito rural (LORENZI)5. É o conceito errado de produtividade para crédito rural, o “valor básico do custeio” – VBC, critério bastante criticado por Ana Primavesi (PRIMAVESI, 1997).

Entre algumas características do agronegócio, agricultura científica globalizada6 ou agroindústria, merecem destaque: exacerbação da especialização das regiões na produção de commodities agrícolas; liberalização dos mercados e imperativo da exportação (superávits comerciais) e da circulação (mundialização do comércio); continuidade da expansão da fronteira agrícola moderna e da concentração fundiária; volatilidade dos preços das commodities decorrente das especulações financeiras (Herreros, 2010) e a função especializada das cidades locais e intermediárias para atender principalmente ao nexo produtivo do campo (Santos, 1994; Elias, 2007) (FREDERICO, 2013).

As regiões ocupadas pela agricultura de “modernização globalizadora” funcionam, segundo Milton Santos, sob um regime obedientea lógicas externas em relação à área de produção, criando lógicas internas aos setores e às empresas locais interligadas e “de um ponto de vista nacional, redefine-se uma diversidade regional que agora não é controlada nem controlável, seja pela sociedade local, seja pela sociedade nacional, subordinada ao impulso externo da competitividade globalizadora” (SANTOS, 2000, pp. 93-94).

O Atlas do Agronegócio (2018) apresenta a posição de 5º lugar do Brasil no ranking de países com desigualdade ao acesso à terra, com 45% de sua área produtiva concentrada em propriedades com área superior a mil hectares, num total de apenas 0.91% de imóveis rurais. Com base no Mapa do Atlas da Agropecuária Brasileira/ImaFlora/GeoLab, a maior concentração de grandes propriedades (mais de 15 módulos fiscais) no total de terras privadas de cada Estado são em ordem decrescente: Mato Grosso do Sul, Goiás, Espírito Santo, Bahia, Rio Grande do Sul e Minas Gerais (ATLAS do agronegócio, 2018).

Os 66 mil imóveis declarados como “grande propriedade improdutiva”, em 2010, totalizavam 175,9 milhões de hectares (= 1,75 milhões de km²), representando 1/5 do território do país (ATLAS DO AGRONEGÓCIO, 2018), dados esses parecidos ao cálculo feito com base no Censo Agropecuário 2017 sobre a existência aproximada de 160 milhões de hectares de solo agrícola subutilizado ou sem uso e a necessidade de definir melhor o critério de produtividade, diante do debate sobre o limite entre terra produtiva/improdutiva e a pressão pela reforma agrária (DOWBOR, 2022).

A questão da subutilização de terras ganha reforço com a notícia de 24 de agosto de 2023 sobre a captação de investimentos nos primeiros anos de possível parceria entre o Banco do Brasil e Banco Mundial para o maior programa de produção sustentável de alimentos do planeta, desenvolvido pelo Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA), prevendo intensificar a produção livre de desmatamento, podendo dobrar a sua área de produção pela conversão de até 40 milhões de hectares de pastagens de baixa produtividade e com aptidão para a agricultura, sem avançar no território preservado do país, com sequestro de carbono já nos primeiros anos. (https://revistarpanews.com.br/ministro-favaro-e-banco-do-brasil-alinham-estrategia-para-investimento-em-recursos-verdes).

O processo da ocupação e do uso da terra no Brasil está mais acelerado e vem progressivamente se integrando às cadeias globais de valor, muitas vezes em associação ao capital transnacional, visto que oito grandes corporações exploram o mercado de terras para produção de commodities e para especulação financeira. O avanço na expansão da fronteira agrícola se dá especialmente com o plantio da monocultura da soja no Cerrado, o bioma com os maiores índices de desmatamento no Brasil com estimativa de que 52% do bioma tenha sido degradado ou sofrido perda irreversível, seguido pela Caatinga. A concentração de terras em grandes propriedades é característica da região Centro-Oeste (ATLAS do agronegócio, 2018).7

A grilagem de terras de elevada quantidade de propriedades rurais sobrepostas a numerosas terras indígenas homologadas ou em fase de homologação pela FUNAI (Relatório De Olho nos Ruralistas) indica haver conexões políticas e corporativas, que chegam a personalidades centrais do capitalismo brasileiro e global a demonstrar que a globalização econômica, ao concentrar terras e capital, exclui a população e lhe nega os direitos humanos (CASTILHO, 2023).

A agricultura, a produção de alimentos e a fome avocam, necessariamente, a questão fundiária, e que, segundo Josué de Castro, nenhum fator é mais negativo para a situação de abastecimento alimentar do país do que a sua estrutura agrária feudal,com um regime inadequado de propriedade, com relações de trabalho socialmente superadas e com a não utilização da riqueza potencial dos solos (ANDRADE, 2003).

“A reforma agrária sempre é uma proposta para uma questão agrária declarada”, segundo Guilherme Costa Delgado (DELGADO, 2023). Após a Constituição Federal, com a política enveredando pela vertente neoliberal, foi sendo enfraquecido o controle da “função social” da terra, entre os anos 1999 e 2010 sob a ostensiva grilagem de terras públicas (DELGADO, 2012). A pauta da reforma agrária, ultrapassando os interesses da agricultura, pode ser revigorada com a proposta de que a terra deve cumprir uma função socioambiental, diante dos custos sociais da degradação do trabalho e do meio ambiente, da expansão agrícola, em face das mudanças climáticas, do cumprimento dos compromissos em tratados e convenções internacionais e atender a regra antidesmatamento da União Europeia e pela situação do Brasil como 6º país emissor de CO2 (DELGADO, 2010) e de destruição dos ecossistemas e apropriação crescente dos recursos naturais promovidas por setores econômicos e políticos dominantes, sobrando aos sem-terra apenas terras marginais (LEROY, 2001) e, por fim, aplicando os princípios constitucionais da atividade econômica, da política agrícola e fundiária e da reforma agrária.

Fábio Konder Comparato afirma que o acesso à terra é a base para outros direitos (COMPARATO, 2001). Milton Santos também defendia a reforma agrária no regime capitalista para solução da questão fundiária (SANTOS, 2007, pp. 53-54). Miloon Kothari, relator especial da ONU para moradia adequada, relaciona as dificuldades para concretizar esse direito com o fato de se considerar a moradia, a terra e a propriedade como produtos de comércio, e não como direitos humanos. A falta desse reconhecimento legal do direito à terra contribui para a fome e a insegurança alimentar, ou a pobreza extrema, pois a terra constitui o principal ativo que possibilita aos pobres das zonas rurais assegurar a subsistência (KOTHARI, ONU, 2008).

No que se refere à agricultura familiar, ela passou a integrar a pauta governamental a partir da década de 1990, com a Lei nº 11.326, de 2006 com alterações em 2011 (Lei nº 12.512), estabelecendo as diretrizes básicas para a formulação da Política Nacional de Agricultura Familiar e Empreendimentos Rurais (ATLAS, 2020). Essa agricultura possui um papel importante para a segurança alimentar nacional, por produzir grande parte do alimento destinado ao consumo humano no Brasil e, segundo a FAO, colaborar no combate à insegurança alimentar. Dados dos Censos Agropecuários 2006 e 2017 indicam que esse tipo de agricultura reúne o maior número de unidades produtivas no País e contribui com parcela significativa de empregos associados às atividades agropecuárias, artesanais e agroindustriais a ele vinculadas, no campo ou na cidade (ATLAS, 2020).8

A agricultura familiar representa uma importante estratégia para alcançar o desenvolvimento sustentável. A sustentabilidade e a segurança alimentar são conceitos multidimensionais, envolvendo dimensões socioeconômicas, culturais, políticas e ambientais levando ao desenvolvimento sustentável, que propõe o crescimento econômico e social baseado na utilização consciente dos recursos naturais, com preferência para o uso de recursos renováveis, e na valorização da cultura. Além do acesso ao alimento, a segurança alimentar abrange a sustentabilidade intersetorial (BENITES & TRENTINI, 2019).

A agricultura familiar é menos sensível às variações de preços do comércio internacional e permite a conservação dinâmica das sementes e matrizes rústicas (“crioulas”), que preserva o solo e os recursos hídricos, entre outros, possibilita garantir mais a segurança alimentar de todos e contribui para manter a riqueza do território (LEROY, 2001).

Para impulsionar a agricultura familiar na produção de alimentos, o Plano SAFRA 2023/2024 oferece aos produtores que investirem em alimentos básicos como arroz, feijão, mandioca, tomate, leite e ovos, entre outros, redução de 5% para 4% nas taxas de juros sobre os recursos que contratarem (AGÊNCIA BRASIL). Constitui investimento para a base da sociedade, que são os verdadeiros produtores, sendo a agricultura familiar um fator multiplicador (DOWBOR, vídeo Reels).9 Estes recursos para a agricultura familiar representam 21% dos recursos destinados para o agronegócio, um aumento significativo em comparação com os 9,7% de 2016. Existe necessidade, porém, de diminuir esta diferença no sentido de promover mais a agricultura familiar.

O agronegócio surgiu e seguiu em sentido contrário à política de desenvolvimento proposta pelo economista Celso Furtado nos anos 1960, cujas ideias continuam tendo seguidores. Entre estes, Rubens Sawaya entende que o país subdesenvolvido não tem o controle sobre os nódulos de bloqueio da cadeia de valor que permita a criação do fluxo dinâmico, como no caso da produção de soja, por estar subordinado aos nódulos tecnológicos sob domínio transnacional na produção de máquinas, equipamentos e insumos, e na comercialização dos produtos nos mercados mundiais (SAWAYA, 2020).

A análise de Furtado é atualmente defendida também em nível internacional por grupos, como nas propostas decoloniais10de Walden Bello, para serem adotadas ações na direção de uma desglobalização, não como retirada da comunidade internacional mas para “reorientar as economias da ênfase na produção para exportação para a produção para o mercado local”, por entender que “uma maior integração global por meio do comércio aumentou muito a desigualdade dentro dos países e, excluindo o caso excepcional da China, aumentou a desigualdade entre a população global de famílias e indivíduos”(BELLO, 2020).11

É essencial criar linhas de crédito, fortalecimento das pesquisas e políticas públicas para promover a agricultura familiar, a agricultura orgânica, a transição para a agroecologia, e outras formas de agricultura sustentável, buscando zerar a fome com uma política de abastecimento de alimentos oriundos de uma agricultura genuína, saudável e respeitosa da biosfera e integrada com a necessária logística de distribuição.

Valorizar uma produção agrícola direcionada para um sistema de alimentos que respeite a cultura local, livre da dependência dos agrotóxicos e dos interesses dos tradings do comércio internacional, tendo sua distribuição e seu consumo no espaço real e físico, dando relevância para as pessoas em seu contexto social.

Em linhas gerais, é necessário criar um novo paradigma para a agricultura priorizando a produção para o mercado local garantindo a soberania alimentar do país.

 

Veja em: https://outraspalavras.net/crise-brasileira/no-campo-brasileiro-a-agricultura-da-morte/

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