Em Labirinto Reacionário, Valério Arcary analisa com agudeza crítica os embates estruturais da sociedade brasileira na última década. Disseca como a Faria Lima encurrala Lula – e aponta meios de reverter o ciclo vicioso do financismo
Por: Luiz Eduardo Soares
Labirinto reacionário: o perigo da derrota histórica1 é um livro importante, escrito por um dos principais estudiosos dos desafios políticos contemporâneos, Valério Arcary, cuja maturidade intelectual corresponde à experiência de 49 anos de militância nas lutas populares pelo socialismo. O peso da longa travessia, entretanto – e esse é um dos encantos da obra –, não anula a leveza de quem se recusa a renunciar à esperança. Os capítulos, escritos a um só tempo como intervenções políticas e exercícios reflexivos, mantêm o leitor (relevem o masculino) alerta, mobilizado, inquieto, não raro emocionado e sempre induzido a pensar e repensar com independência e espírito crítico, contemplando o retrato fugaz da conjuntura à luz da história e do horizonte transnacional. Densidade analítica, honestidade intelectual e engajamento coexistem, nos textos de Valério, sem concessões mútuas, o que soaria paradoxal apenas a quem supusesse que envolvimento político-partidário implicasse, necessariamente, negar os processos complexos, cambiantes e contraditórios da realidade social para validar concepções congeladas ou autoritariamente impostas.
O pensamento vivo do autor não sacrifica, em nome de compromissos de fé, a indispensável abertura àquilo que, nos fenômenos observados, sendo novo e surpreendente, exige criatividade e flexibilidade, nos planos do entendimento e da ação. De outro modo, não haveria o reconhecimento de erros, as correções de rota, a manifestação de dúvidas e a audácia de indagar, mesmo quando não há respostas. Onde não há dúvida nem admissão de incertezas, não há pensamento crítico. E onde falta reflexão crítica, não há prática política consequente. Portanto, aí está a ousadia maior de um pensador como Valério, cuja estatura como liderança política é inegável e que, ao contrário do que se deveria dizer de muitos postulantes a esse título, merece o adjetivo radical – qualidade que atesta profundidade e consistência, e nada tem a ver com sectarismo.
Radical é seu compromisso com a verdade, essa busca perene, indissociável da imersão na luta de classes sob inspiração do ideal socialista. É assim que, pessoalmente, vejo sua identificação com o marxismo, cujos conceitos e valores matriciais lhe oferecem referências, sem condená-lo a qualquer doutrinarismo. A fidelidade à teoria marxista, na medida em que é marcada pela heterodoxia transgressora associada à tradição trotskista, soa como o outro nome da liberdade, não seu contrário. Por isso, o autor, assim como busca nos clássicos pistas para compreender o presente, enfrenta-o com desenvoltura inovadora, sem pagar pedágio a leituras esquemáticas. O ambiente em que se movem os textos reunidos no livro passa ao largo do culto fetichista a heróis ou da devoção reificadora a crenças. O ar que se respira, de capítulo a capítulo, é o do corpo a corpo com a realidade dura do labirinto reacionário, preâmbulo do abismo fascista. Face à barbárie, olhada nos olhos com crueza, somos convocados a exorcizar ilusões e resistir. Nesse embate, os conceitos são meios e modos de pensar para agir, são recursos da prática, são eles mesmos prática política, segundo mediações singulares. Nada mais distante da monotonia placidamente onisciente das ortodoxias.
Eis-nos, então, virando as páginas do labirinto para penetrar em seus enigmas, cartografar suas dinâmicas visceralmente iníquas e descobrir, ou melhor, construir saídas. O livro nos leva das imensas transformações a que vêm sendo submetidas a sociedade brasileira e a realidade transnacional, desde a primeira década do século, a 2013, e daí à ascensão da direita, ao golpe contra Dilma, e, na sequência, ladeira abaixo, até as manipulações grotescas e midiáticas da Lava-Jato, a prisão de Lula – excluindo-o das eleições de 2018 –, a imposição da agenda neoliberal, devastando direitos dos trabalhadores, e a miséria regressiva e brutal do bolsonarismo. Termina com a vitória extraordinária de Lula, triunfo que não dissolveu o sabor amargo do veneno: a persistência e a força do fascismo.
Importante registrar que, ao contrário da visão unilateral e simplificadora, bastante difundida, inclusive no campo das esquerdas, a interpretação de Valério sobre as Jornadas de Junho nos oferece um quadro muito mais complexo, multifacetado e dinâmico, refratário ao reducionismo. Os milhões nas ruas brasileiras não foram invenção da direita, manipulada pela CIA, berço do bolsonarismo que chegaria mais tarde ao poder. Longe disso, embora a direita e a extrema-direita tenham estado lá, tanto quanto a CIA e seus acólitos, como seria de se esperar. Estava em cena a disputa, estava nas ruas a luta de classes, por mediações bastante específicas. O futuro não estava lá, pronto, acabado e resolvido. O futuro foi produzido por apropriações do que Junho pôs em circulação e pela canalização das energias precipitadas na movimentação das massas. Equívocos no entendimento do que estava em jogo pavimentaram o caminho e deram tração aos empreendimentos reacionários e fascistas subsequentes.
Haveria muito a dizer sobre a leitura fina e sensível que Valério propõe a respeito de cada etapa desse processo, dialogando sempre com os imperativos da ação política. Contudo, nada substituiria o próprio livro. Por isso, prefiro me deter na apresentação sumária de alguns pontos que me parecem decisivos e mais urgentes, na medida em que tematizam os desafios ainda em curso:
- O maior erro das esquerdas foi a subestimação da extrema-direita. Portanto, se há sempre o risco de cometer erros, que sejam erros novos. Jamais voltemos a subestimar Bolsonaro e a penetração capilar do bolsonarismo na sociedade brasileira, inclusive nas classes trabalhadoras.
- Além disso, não devemos hesitar em sua qualificação, até porque a questão transcende a esfera teórica e invade a seara política: o bolsonarismo existe como programa político e é neofascista. Não economizemos palavras – aqui vale a redundância em benefício da clareza, por suas implicações políticas: Bolsonaro lidera um movimento político de extrema-direita neofascista.
- A classe média abraçou em imensa maioria um programa. Na página 335, lemos o seguinte: “O bolsonarismo conquistou capilaridade social e nacional”. E ainda: “…há uma consolidação de apoio programático reacionário à extrema-direita. Não estamos mais em 2018. Dezenas de milhões pensam com a cabeça envenenada pelos fascistas. Infelizmente, o país está fraturado, social e regionalmente. Não se trata de um fenômeno brasileiro.”
- Lembremo-nos de uma observação relativa ao período pré-eleitoral, mas que permanece válida, como demonstraram as performances patéticas e assustadoras de 8 de janeiro: “Bolsonaro aceitou o terreno da disputa eleitoral [taticamente], mas não renunciou às chantagens golpistas.” (p. 327)
- Uma tese é central e traz consigo uma constelação de desdobramentos reflexivos e políticos: O projeto neoliberal é inviável “sem atacar as liberdades democráticas”. Diz-nos Valério Arcary sobre o projeto de Bolsonaro: “Busca implantar um regime autoritário bonapartista” (p. 328).
- “Derrotas históricas podem vir em função de quarteladas, por métodos contrarrevolucionários de ‘guerra civil’ com tanques nas ruas. Mas podem vir, também, pela degradação lenta e gradual do regime democrático-liberal. Foi assim no Peru com Fujimori, nos anos noventa.” (p. 328)
- “… ainda estamos aprendendo como se faz a luta contra a extrema-direita.” (p. 330). Na página 334, o autor afirma: “É preciso aprender com os erros.” Em outra passagem defende propostas que possam inspirar esperança política, como isenção de imposto de renda para assalariados que ganham até cinco mil reais. (p. 331) A referência é significativa, porque expressa a conexão do autor com a realidade pulsante da vida popular. A luta política, mesmo a mais ambiciosa, se liga ao cotidiano, não necessariamente com palavras de ordem distantes e abstratas, que tantas vezes dividem as forças progressistas em torno de querelas doutrinárias.
- “Mas nos últimos dez anos, o país mudou.” (p. 331) Pode soar trivial, a constatação, quase um truísmo, mas testemunha o esforço analítico para compreender a história a quente, abdicar de certezas pré-fixadas e esquemas rígidos. Se o país mudou, a ação política de persuasão socialista precisa mudar, até para que se fortaleça e possa ditar futuras mudanças, não apenas responder a elas.
- Muito relevante é a seguinte postulação, a qual, se adotada pelo conjunto dos chamados cientistas políticos e dos comentaristas midiáticos, provocaria uma transformação profunda, impactando inclusive as condições em que se exerce a hegemonia burguesa no país: “A extrema-direita fascista bolsonarista não é uma corrente política legítima…” (p. 338). Adiante, reitera: “O projeto do bolsonarismo é uma ameaça incompatível com as liberdades democráticas”. Ou seja, o bolsonarismo é inimigo de qualquer ator que se identifique com as liberdades democráticas e não pode ser aliado, em nenhuma circunstância, sob nenhuma justificativa. Essa tese aponta a pusilanimidade criminosa de todos os agentes públicos que participaram do governo Bolsonaro ou de sua coligação eleitoral.
- Finalmente, alcançamos a conclusão sintética: “A chave da evolução da situação política será uma disputa pela consolidação de uma nova maioria social” (p. 347). Na sequência: “O desafio da esquerda será a luta pela hegemonia entre os assalariados de renda média para construir a unidade da classe trabalhadora” (Idem). Adiante, lemos: “O desafio estratégico será a ruptura com o neoliberalismo e a busca de governabilidade na mobilização operária e popular” (idem). “Ninguém pode prever o que, realmente, será o governo Lula. O mais provável será a busca de uma concertação com as frações burguesas que chantageiam, ininterruptamente, aceitando uma ampliação dos programas de combate à pobreza extrema, mas exigindo responsabilidade fiscal. Ou seja, controle de gastos, aceitando uma nova âncora fiscal, mas com contenção da expansão da dívida pública” (p. 347).
A previsão de Valério está se confirmando. O governo Lula está sob cerco, chantageado pela Faria Lima, a grande mídia e a maioria reacionária no Congresso Nacional, sem mencionar os governos estaduais de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, e a inacreditável arrogância perversa do Banco Central. A vitória nas eleições foi politicamente gigantesca, mas apertadíssima no número de votos. A sociedade está dividida – fraturada, como diz o autor. A força do fascismo se mantém. Portanto, a hipótese da mobilização popular, embora indispensável, parece insuficiente e distante, sobretudo porque provavelmente dependeria de iniciativas do governo federal em princípio incompatíveis com a política econômica neo-fiscalista adotada. Quão mais o governo cede e recua, mais se afasta dos interesses populares, mais fraco e isolado se torna, menos capaz de mobilizar o apoio popular, mais vulnerável à avidez predatória dos abutres do capital. O círculo vicioso aperta o garrote vil e nenhuma dialética emancipadora parece acenar no horizonte histórico. Claro que uma resenha da obra que irradia esperança não poderia terminar nesse tom sombrio e crepuscular. Pois este adjetivo salva meu empenho em vencer a angústia e o ceticismo: não é a coruja, alçando voo no crepúsculo, que vislumbra o desfecho de um período histórico? A ação política coletiva, sintonizada com os processos em curso, não só no país, pode promover alterações hoje difíceis de prever, reconfigurando a correlação de forças e abrindo picadas inclusive para além dos ciclos eleitorais e das limitações governamentais. Crer nessa hipótese é parte da ação política.
Veja em: https://outraspalavras.net/crise-brasileira/o-brasil-na-teia-viscosa-da-chantagem-neoliberal/
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