Clipping

O que bloqueia a mudança do modelo agrícola

Iniciativas pontuais e repeteco de programas passados não mudarão o campo. Ministério do Desenvolvimento Agrário precisa ser reformulado. assim como as políticas de crédito e assistência técnica. Sem isso, agronegócio sempre prevalecerá

Por: Jean Marc von der Weid | Créditos da foto: publicada no site do Insper

Introdução: Nos artigos anteriores segui um método de análise iniciando com um diagnóstico da Agricultura Familiar (AF), uma análise da situação presente, uma avaliação das políticas aplicadas e uma definição dos objetivos a longo prazo que devem nortear a formulação de um programa para os próximos 4 anos, objeto desta parte 5 da série.

Condicionantes econômicos, políticos, administrativos, sociais e legais de um programa de desenvolvimento da agricultura familiar neste governo

O quadro em que o MDA atuará não é nada fácil. Para poder decidir as prioridades de políticas e programas vai ser preciso mapear os entraves estruturais e conjunturais que vão condicioná-los. Sem isso, qualquer programa será apenas uma coleção de desejos a serem frustrados.

Comecemos pelo orçamento. De modo geral, o governo tem um problema orçamentário maior: o recém-votado “arcabouço” fiscal. Concordo com quem critica o novo ordenamento fiscal como um prolongamento levemente aliviado do teto de gastos. A expectativa de que a Reforma Tributária resolva pelo lado da tributação a disponibilidade de recursos me parece ilusória. O que foi votado é apenas (embora não seja pouco) a racionalização dos impostos, proposta apoiada pelo “andar de cima” da nossa sociedade. Mesmo esta medida foi meio sabotada pelas várias exceções concedidas a setores como o agronegócio, a Zona Franca de Manaus e igrejas, entre outras. As exceções levam à definição de um IVA mais alto para os não beneficiados. E, é claro, quem paga mais impostos na indústria e nos serviços vai repassá-los e o custo vai parar no bolso do consumidor. O mais grave, porém, é a forte probabilidade de não ser votado o resto da Reforma, que deveria buscar recursos onde eles existem em maior volume sem serem taxados: nas fortunas dos milionários e bilionários, nas suas heranças e nas suas rendas.

Com pouco dinheiro no cofre, o governo tem que definir suas prioridades e a proposta orçamentária apresentada parcialmente no PAC, indica que haverá pouco recurso para o MDA. Gastos com as FFAA serão maiores para “neutralizar” as ameaças golpistas da oficialidade. Gastos maiores até do que os previstos para a saúde e a educação.

No que tange o MDA, a liberação de recursos para o Plano de Safra deu a impressão de que haveria uma prioridade para a agricultura familiar, já que o volume foi mais de duas vezes maior do que no Plano anterior, chegando a 70 bilhões em créditos e subsídios (9 bilhões só para a equalização dos juros do crédito Pronaf). Mas, como já tratei em outros artigos, a orientação deste crédito não é mais do que a repetição da política instituída desde o governo FHC e reforçada por Lula, Dilma, Temer e Bolsonaro. Esta política deveria ter sido avaliada pelo governo, para evitar os impactos negativos verificados no passado, mas isto não foi feito e temos mais do mesmo. O principal investimento do governo para a AF, este ano, já está perdido e resta repensar o que fazer nos próximos 3 anos. E é bom lembrar que  o governo segue privilegiando o agronegócio, com créditos facilitados e subsídios de todo tipo. Para concluir, não se pode esperar que o governo libere os investimentos que seriam necessários para fazer grande mudanças nas políticas de Reforma Agrária e promoção do desenvolvimento sustentável.

O governo tem outro problema considerável pelo fato de que parcelas cada dia maiores do orçamento estão sendo apropriadas pelos parlamentares em vários tipos de emendas que distribuem recursos que escapam às prioridades do governo para beneficiar, se é que a palavra é esta, redutos eleitorais de senadores e deputados. Esta aberração vai ser difícil de ser revertida, dada a dependência do governo frente à maioria fisiológica e direitista do parlamento.

Esta mesma maioria, onde se destacam os defensores dos interesses do agronegócio, em número desproporcional em relação ao número de votos que esta bancada recebeu, vai brecar qualquer tentativa de se agilizar recursos e condições legais para dar a necessária musculatura à Reforma Agrária, a não ser que aconteça uma muito forte pressão da sociedade.

O governo tem nas mãos alguns instrumentos para melhorar a arrecadação de terras. Ele pode fazer o que está previsto em lei, atualizando os indicadores que definem o uso social da terra, totalmente superados na sua congelada definição desde os tempos da Constituinte. Ainda usando as leis vigentes o governo pode desapropriar as terras das fazendas onde foi constatado o uso de trabalho escravo, cobrar as dívidas do agronegócio ou desapropriar terras griladas ou desmatadas ilegalmente. Mas estas medidas encontrariam a bancada ruralista em pé de guerra e disposta a paralisar o governo ou mesmo votar mudanças nas leis vigentes (já existem projetos nesta direção na Câmara) ou votar anistias para o agronegócio. Não estou vendo o governo enfrentar esta máquina. Ao contrário, como na relação com as FFAA, o governo procura neutralizar o agronegócio com concessões, sem se dar conta de que, por mais que entregue benesses, este setor estará sempre procurando maneiras de destruir o governo. As concessões, inclusive o Código Florestal e a entrega do MAPA para a CNA, não dissuadiram a bancada ruralista de votar em peso pelo impeachment de Dilma.

A legislação que afeta a atuação do MDA; a lei de ATER, a da ANATER, a das ONGs, a dos convênios (8666) e a dos contratos, precisam ser modificadas ou vão travar os financiamentos governamentais para projetos de desenvolvimento da sociedade civil, como já aconteceu no passado. E não vai ser fácil vencer os lobbies ruralista e da ASBRAER no Congresso. Vamos ter que procurar fórmulas para mitigar os problemas através de dispositivos infralegais, embora as reações políticas possam ser fatais na relação do governo com o Congresso.

Há um outro condicionante importante, de ordem social. Os movimentos do campo saíram deste último período fragilizados e seguem na defensiva, como mostra a iníqua CPI do MST, com a busca frenética da criminalização deste e de outros movimentos. A impressionante Marcha das Margaridas, reunindo pelo menos 100 mil mulheres em Brasília dias atrás, não esconde o fato de que a capacidade de pressão da AF e dos sem-terra vai ter que crescer muito para bloquear politicamente a maioria direitista no Congresso. Por outro lado, a grande mídia está, decididamente, do lado do agronegócio em quase todas as suas reivindicações, salvo no caso do desmatamento e queimadas na Amazônia. O forte investimento em propaganda iniciado por Kátia Abreu quando estava à frente da CNA, irrigou os canais de TV, rádio e os grandes jornais com sua mensagem do “agro é pop, agro é tec, agro é tudo”. A opinião pública está entorpecida por esta propaganda e não vai ser convencida facilmente das suas mentiras.

Finalmente, temos um problema político, administrativo e conceitual no próprio MDA. Apesar do grande avanço em relação aos governos populares anteriores, quando o grupo que elaborou o plano de transição para o MDA definiu a agroecologia como base conceitual da ação do governo, este Ministério vive uma grande indefinição sobre o como levar à prática este conceito.

Para começar, a escolha do ministro, político progressista, mas totalmente alheio à problemática rural e mais ainda à da AF, gera dificuldades pelo desconhecimento dos elementos centrais da agenda. Nas posições chave no inistério temos vários técnicos de grande capacidade, mas até agora não houve um exercício de planejamento coletivo que fizesse o que eu tentei nestes artigos: diagnosticar a realidade da AF, pensar em objetivos estratégicos, revisar as políticas aplicadas, medir as forças existentes e definir o que vai ser possível fazer com os recursos disponíveis. Até agora o MDA deu seguimento ao que vinha sendo feito, com os mesmos problemas do passado, tanto no crédito como nas chamadas para projetos de ATER.

Mesmo os técnicos com experiência e conhecimento em agroecologia têm um problema considerável a resolver: não existem propostas consolidadas de políticas de crédito, de ATER e outras, voltadas para a agroecologia. Tudo está para ser construído e seria sábio mobilizar os atores, na academia, na sociedade civil e no próprio governo capazes de elaborar coletivamente propostas consequentes. Este processo deveria começar pela revisão das políticas aplicadas até hoje.

O problema fica ainda mais complexo quando se constata a inviabilidade de se dirigir todas as políticas apenas para a promoção da agroecologia. Vai ser preciso compor um mix de políticas, com variáveis graus de adesão à agroecologia, sem tentar impor soluções generalizadas com base nesta orientação.

O MDA parece estar vivendo do repeteco das políticas passadas e de iniciativas pontuais, que tem sentido simbólico, como o programa anunciado por Lula na Marcha das Margaridas, os quintais produtivos. Trata-se de uma proposta importante e estratégica (ver discussão mais adiante), mas não está clara a orientação nem os mecanismos de execução do programa e a sua dimensão é ridícula, frente ao tamanho do problema que ele procura enfrentar. Lula prometeu recursos para 90 mil quintais. Nos meus cálculos, o público-alvo deste programa chega a mais de 2 milhões de AF. Por outro lado, o objetivo do programa parece ser, pelo que escutei no MDA, a produção para mercados locais visando o aumento de renda. A meu ver o objetivo deveria ser garantir a segurança alimentar das famílias mais pobres, com eventuais vendas de excedentes para os mercados locais. A própria orientação técnica do programa não está dada e as necessidades em recursos não foram definidas com base nas condições materiais do público em questão. Pelo valor médio indicado no anúncio, teremos pouco mais de mil reais por quintal. Pela minha experiência, nos lugares de maiores dificuldades deste público, em particular no nordeste semiárido, este valor teria que ser multiplicado por 20 ou mais, para incluir as infraestruturas de captação e distribuição de recursos hídricos e outras mais, além dos custos da assistência técnica e de formação em nutrição e conservação de produtos alimentícios. Estou simplificando bastante as necessidades, apenas para mostrar que o projeto não foi feito com um planejamento adequado. Estas necessidades vão variar muito segundo a situação de pobreza e das condições produtivas e ambientais de cada local e o programa deveria levar esta variabilidade em conta.

Outro programa retomado nos moldes do passado, mas com maior aderência à realidade dos AF é o PAA. Entretanto, parece que neste caso também os problemas do passado se repetem. As críticas dos AF à burocracia das operações do PAA não foram avaliadas. Por outro lado, o tamanho do PAA está ainda menor do que nos piores momentos em safras passadas. O programa lançou uma chamada para projetos coletivos ou individuais e recebeu 3.700 projetos do primeiro tipo e 50 mil do segundo (em números arredondados), com um valor total de 1,2 bilhão, mas o governo disponibilizou um quarto deste valor, pouco mais de 250 milhões. Agora a CONAB/PAA vai ter que selecionar quais deles serão financiados. Mesmo se adotar o critério de apoiar os projetos com menores valores demandados por AF para estimar o número de beneficiários e favorecer os mais pobres o número total de beneficiários dificilmente será superior a 30 mil. Nas safras em que o PAA atuou com maior musculatura ele beneficiou perto de 250 mil agricultores. Vai ser preciso muito mais para ter significado na promoção do desenvolvimento da AF.

O ministro está se esforçando para identificar soluções para a AF, mas me ficou a impressão de que procura o que se chama de “bala de prata”, ou seja, uma técnica amplamente utilizável e que proporcione um arranco dos AF na direção de superar suas dificuldades. Várias das ideias em circulação são interessantes, mas não existe solução generalizável em agricultura e muito menos com a diversidade de situações encontradas entre os AF. A busca de soluções técnicas é algo que deve ser descentralizado a partir das condições concretas de cada segmento e até de cada AF. A demanda por técnicas deve ser definida a partir do diagnóstico de cada situação e não pela oferta de técnicas definidas em Brasília. O que o MDA deve definir são as grandes orientações quanto ao tipo de modelo agrícola a apoiar e os mecanismos de apoio a ser oferecido: crédito, fomento, assistência técnica, acesso a mercados, inclusive das compras governamentais. Existem umas poucas propostas técnicas válidas para todos ou quase todos, mas via de regra estas soluções se dirigem para infraestruturas e não para as práticas agrícolas. As infraestruturas são sempre importantes, mas sem um apoio para melhorar as práticas no sentido da sustentabilidade (com maior ou menor direcionamento para a agroecologia) o aproveitamento destas infras pode ser precário.

Definição dos objetivos do MDA para o presente mandato

Não sei o que o governo definiu como objetivos. Por intervenções aqui e ali do presidente aparece um objetivo genérico de aumentar a oferta de alimentos para consumo popular. Lula não restringiu este objetivo à produção da AF, embora ele ecoe o dado incorreto, hoje em dia, dos 70% da alimentação nacional sendo da responsabilidade desta categoria. O número correto é algo entre 20 e 25%. Como já expliquei em artigos anteriores, embora eu considere que, a médio e longo prazo, a AF terá que produzir a totalidade dos alimentos necessários para o país, a curto prazo isto será impossível. Podemos definir um objetivo de aumentar a oferta de alimentos produzidos pela AF, mas que volume extra e de que produtos pode-se almejar? Vamos discutir estas questões um pouco mais adiante.

Um segundo objetivo, visando a necessidade futura de uma numerosa categoria de AF, cinco vezes maior do que a atual, é deter a migração rural e, se possível, ampliar a base, pelo menos até 4 milhões de famílias, assentando 110 mil AF pela RA. Por outro lado, deve ser adotado o objetivo de consolidar os assentamentos já existentes para evitar a já mencionada evasão de beneficiários. Analisar as causas desta evasão vai ser o primeiro passo necessário na ação do governo.

terceiro objetivo, ainda mais importante e vinculado ao primeiro, é melhorar o padrão de vida e as condições de trabalho dos AF, sem o que a migração vai continuar. Para isso vai ser necessário uma política voltada para a promoção do desenvolvimento, diferenciada em função da situação de cada segmento do público.

O quarto objetivo é a diminuição da pegada ambiental da AF, que também vai ser diferenciada de acordo com cada situação. Políticas de reflorestamento, eliminação de queimadas, diminuição do uso de agrotóxicos e fertilizantes químicos com o uso de técnicas convencionais menos agressivas e da agroecologia deverão ser definidas.

Na perspectiva de longo prazo um objetivo importante, que não é diretamente responsabilidade do MDA, é a formação de técnicos e agrônomos versados nas técnicas e métodos da agroecologia. O MDA deveria discutir com o MEC a criação de cursos de ciências agrárias voltados para a agroecologia, ampliando e fortalecendo as escolas técnicas que já adotam esta orientação e iniciando cursos básicos de agroecologia nas universidades.

Definição dos diferentes públicos em que se estratifica a categoria dos AF e dos programas que devem atendê-los

Como as políticas e programas terão que ser diferenciados é preciso ter uma ideia de quem são e quantos são os AF nas suas diferentes tipologias. Recomendo a leitura dos artigos anteriores para maior precisão sobre o assunto. Aqui vai apenas um resumo.

Categoria das agricultoras de subsistência:

São aproximadamente 2,250 milhões de famílias, as mais pobres do campo, mais da metade localizada no nordeste semiárido. Este deve ser um programa voltado para a produção de autoconsumo, visando garantir uma alimentação correta em qualidade e quantidade para todos os seus membros. Vai ser preciso garantir infraestruturas hídricas e outras que deem segurança para a produção diversificada de alimentos, hortas, fruteiras, feijão, mandioca, pequenos animais em pequenos espaços nos quintais.

Este deve ser um programa voltado para as mulheres, que são quem se encarrega deste espaço produtivo em quase todas as situações. Para este objetivo não podemos usar instrumentos do tipo crédito, dada a pobreza extrema do público. Vai ser preciso financiar as infraestruturas a fundo perdido, embora possa ser utilizada a fórmula, já em uso em vários lugares, de Fundos Rotativos Solidários, ficando os recursos retidos nas comunidades para uso coletivo em função de suas opções.

A ATER vai ter muita importância e as técnicas  devem ser treinadas com base nas muitas experiências existentes e que precisam ser sistematizadas e difundidas. A assistência deve incluir formação das mulheres em nutrição e até em culinária, já que os hábitos alimentares desta categoria são bastante viciados pela pobreza e as mulheres no interior do nordeste e do norte desconhecem muitos legumes e hortaliças que poderão ser produzidos nestes quintais diversificados e importantes para a melhoria da dieta.

Tanto quanto possível estes programas deverão ter uma organicidade territorial, com a formação de coletivos de aprendizado em comum e/ou a incorporação das organizações preexistentes. Idealmente, se a totalidade deste público for atingido, perto de 10 milhões de pessoas poderão sair do mapa da fome e da desnutrição.

Como o número de potenciais beneficiárias é gigantesco e os recursos minguados, vai ser preciso priorizar os investimentos e acredito que a parte deste público localizada no Nordeste semiárido é a prioridade número um, sobretudo porque foi desta região e desta categoria que saíram os mais de 300 mil AF registrados pelo censo de 2017. Talvez seja o caso de se concentrar nos AF beneficiários do Bolsa Família.

Seja qual for a dimensão possível deste programa, a proposta lançado pelo presidente, os “quintais produtivos” terá que ser rediscutida nos seus valores por família e no número de famílias para sairmos de algo apenas simbólico para algo efetivamente impactante no universo desta categoria.

Categoria dos produtores para mercados locais e territoriais:

São, segundo os meus cálculos, cerca de 1,150 milhão de AF, com situações extremamente variadas, desde os pobres até os remediados, com maior ou menor integração com mercados e maior ou menor uso de técnicas ditas modernas (fertilizantes químicos, agrotóxicos, sementes de empresas), com maior ou menor acesso ao crédito.

Este setor tem o maior potencial para dar uma contribuição significativa para a produção de alimentos para os centros urbanos de médio porte. O crédito pode ser um instrumento importante para esta categoria, mas terá que ser estritamente vinculado à um programa de assistência técnica turbinado e bem adaptado às várias situações em diferentes pontos do território nacional.

Não acredito que tenhamos as condições para fazer uma assistência técnica totalmente voltada para a agroecologia, mas não é tão complicado incorporar algumas práticas poupadoras de insumos químicos e a introdução, quando necessário, de uma diversificação dos produtos. As compras governamentais, PAA, PNAE, formação de estoques públicos e outras (alimentação de presídios, das FFAA, outras) terão papel fundamental, assim como uma política de garantia de preços e de seguro agrícola. A política de crédito deve ser modificada para financiar o conjunto das atividades do produtor e não só um produto, como ocorre agora. Isto vai exigir uma relação intensa com os sistemas bancários de forma a colaborarem com esta orientação. A política de seguro deve ser totalmente reformulada para dar garantias ao conjunto da propriedade.

Os projetos de ATER/crédito/seguro deverão ser dirigidos para coletivos de produtores, organizados em cooperação com as entidades dos movimentos sociais rurais.

Categoria dos produtores capitalizados:

Este setor, também chamado (pejorativamente) de agronegocinho, é, como já mencionado em outro artigo, o mais importante da AF em termos de volume de produção. Estimo seu número em 350 mil famílias. Como também já visto estão fortemente concentrados na região sul. Adotam de forma mais integral o modelo de produção agroquímico, motomecanizado e geneticamente modificado. Tem acesso regular ao crédito bancário e se dedicam, na sua maioria, à produção de commodities, sobretudo a dupla soja/milho. Mas também há produtores de arroz, de trigo, de feijão e outros produtos da base alimentar brasileira.

Não tenho ideia sobre o grau de ocupação produtiva das terras nas propriedades desta categoria, mas não deve haver muita disponibilidade para uma expansão das áreas plantadas. Se o governo quiser promover um aumento da oferta de alimentos a partir desta categoria ele terá que facilitar a conversão dos produtores de commodities para assumirem a produção de alimentos e/ou incentivar o aumento de produtividade das culturas alimentares, para os AF que já as produzem.

Atrair os produtores de commodities não vai ser fácil. Um mix de políticas convencionais de crédito, seguro, preços mínimos e compras governamentais terá que ser elaborado com muito cuidado e submetido a consultas com as organizações da AF. Lembremos que o poder de atração das commodities é alto, sobretudo pelos preços e mercados garantidos pelas exportações. É fundamental discutir a fundo as propostas e consultar os eventuais interessados e isto tem que ser feito rapidamente para conseguir que a conversão, se acontecer, se inicie no ano que vem.

Para os que já produzem alimentos usando os modelos do agronegocinho, as alternativas têm que ser estudadas caso a caso. Há espaço para aumento de produtividade das culturas e para a diminuição e/ou substituição do uso de insumos químicos, o que baratearia a produção. O papel da ATER e o suporte das entidades de pesquisa agropecuária (Embrapa, entidades estaduais, universidades, experiencias de ONGs) vai ser fundamental. Não se trata apenas de formular chamadas de ATER genéricas ou facilitar créditos. Seria interessante criar forças-tarefa para cada um dos principais produtos da cesta coordenados pela unidade do MDA envolvida na inovação tecnológica. Projetos de desenvolvimento da produção de alimentos deveriam ser elaborados envolvendo crédito, ATER, preços garantidos, seguro e compras do governo. Eles deveriam trabalhar com bases coletivas de produtores em territórios bem definidos e os projetos negociados com as entidades dos movimentos sociais do campo.

Embora eu desconfie de soluções generalizáveis na agricultura, acredito que existe uma possibilidade de se testar um sistema (envolvendo várias técnicas) visando aumento da produtividade da produção do arroz, conhecido na sigla em inglês como SRI (System of Rice Intensification), sistema intensivo de produção de arroz. Ou introduzir técnicas de manejo integrado de pragas e doenças desenvolvido com muito sucesso pela FAO na Ásia e na África. Em ambos os sistemas citados a economia de insumos é a peça-chave para atrair os produtores, já que estes são o maior custo do produtor e não só na produção do arroz. O SRI, iniciado em Madagascar, obteve aumentos de produtividade do arroz da ordem de 200% em média, saltando de 3 mil kg/ha para 10 mil kg/ha, mas os casos mais avançados e bem-sucedidos registraram produtividades de 22 mil kg/ha, com mais de uma colheita por ano. Sem uso de sementes melhoradas, adubos químicos ou pesticidas.

Categoria dos produtores em transição para a agroecologia:

Calculo este grupo em mais ou menos 200 mil AF, sendo que uns 60 mil mais avançados e muitos deles adotando formas diferenciadas de certificação orgânica e fortemente integrados com o mercado deste tipo de produtos, que cresce exponencialmente nas grandes cidades de todo o país. No sul eles tendem a ser mais capitalizados e integrados ao mercado, enquanto em outras regiões há enorme variedade de situações, com predomínio da produção não certificada, mas vendida como agroecológica em mercados de vizinhança, municipais e territoriais. A relação com o crédito também passa por esta clivagem, do sul versus o resto do país. Mas, dada a baixa adaptação do sistema bancário para financiar este tipo de produção (orgânica ou agroecológica) há muito menos relação com o crédito, mesmo no sul, do que no caso dos produtores do agronegocinho.

Esta categoria de produtores vem sendo assessorada em seus projetos de desenvolvimento agroecológico sobretudo por ONGs, com ou sem vinculação direta com os movimentos sociais do campo. Os exemplos de sucesso são muitos, mas sabe-se menos das dificuldades encontradas por essas entidades, quer no financiamento quer na própria execução de seus projetos.

Tudo no movimento agroecológico é ainda muito novo e está em construção, através de experiências de campo (isto é, de forma empírica, por acertos e erros). Tanto os métodos mais adequados para este tipo de objetivo, como um acervo de tecnologias deveriam ser bem sistematizados e disponibilizados para consulta por todos os agentes envolvidos nestas operações de desenvolvimento da transição agroecológica. O MDA deveria financiar um processo de sistematização e de avaliação das experiencias em curso de forma a podermos ter mais clareza sobre o que funcionou melhor e em que condições. Metodologias capazes de minimizar a demanda de técnicos deveriam ser valorizadas, de modo a diminuir os custos da ATER e aumentar o seu impacto.

Para dinamizar a transição agroecológica deste público pequeno, mas que será um farol para o futuro, é necessário criar mecanismos adequados e a simples aplicação das políticas hoje existentes, mesmo se adaptadas para uma orientação agroecológica, não vai funcionar, como já não funcionou nos governos populares anteriores. A minha proposta é a criação de um Fundo de Desenvolvimento Agroecológico, onde se concentrassem todos os recursos necessários para projetos integrados de promoção da transição: fomento, crédito, seguro, preços mínimos, compras governamentais, beneficiamento, pesquisa e comercialização. Seria um modelo expandido, no escopo e no tamanho, do programa sediado no BNDES/FBB, conhecido como Ecoforte. Os projetos teriam caráter territorial, apresentados por entidades dos AF, por entidades de ATER (Emater ou ONG), de pesquisa, de mercado, outras, sendo que as duas primeiras seriam obrigatórias.

O MDA deveria voltar a apoiar uma experiência de integração ensino/pesquisa/extensão sediado em universidades e voltado para o desenvolvimento de comunidades rurais envolvidas com a transição agroecológica, conhecida como NAEA. Com muito pouco recurso este projeto teve efeitos positivos em todas as direções, ensino, pesquisa e extensão. Pela sua importância estratégica este projeto devia ser turbinado ao máximo, nos limites de sua capacidade operacional.

Categoria dos produtores de assentamentos:

Este grupo-alvo está incluído nos  grupos já apresentados anteriormente, provavelmente com a mesma proporcionalidade indicada. Mas a importância da consolidação dos assentamentos indica que se deve dirigir uma atenção especial para projetos oriundos de grupos organizados de assentados. Estes projetos, sua formulação e execução deverão ficar sob responsabilidade do INCRA.

Categoria de Indígenas:

Pensar uma política de desenvolvimento dos territórios indígenas é algo muito delicado e complexo, e totalmente distinto do tipo de projetos de que estamos falando nas outras categorias apresentadas. É preciso mobilizar conhecimentos de estudiosos de outras áreas, como a antropologia e a sociologia, além de geógrafos e agrônomos. E, sobretudo, vai ser preciso trazer as lideranças das etnias para a elaboração de propostas e estudar com cuidado quem ficará a cargo de gerir os projetos. Aqui, talvez mais do que no tema da agroecologia, a inexistência de uma formação adequada para os técnicos de ATER vai ser um problema maior. Vai ser importante aproveitar as experiencias existentes, inclusive na formação de técnicos de ATER por entidades indígenas, caso do Acre (que eu não sei se ainda está existindo). E buscar experiencias internacionais como referência metodológica para definir uma abordagem correta.

Programa de hortas urbanas

Não se trata aqui de uma categoria de AF, mas de moradores de cidades e de suas periferias, provavelmente ex-AF migrantes. Em princípio este programa não deveria ser do escopo do MDA, mas sua importância estratégica é enorme. Multiplicar hortas em pequenos espaços urbanos e periurbanos representa ampliar em muito a oferta de hortaliças e legumes a distâncias curtas do público consumidor, diminuindo os custos de transporte que serão, como já foi visto anteriormente, um forte elemento nos preços dos alimentos. Por outro lado, aumentar a oferta destes produtos, hoje muito carentes na dieta dos brasileiros, vai ser uma necessidade fundamental. Este programa deveria estar combinado com uma intensiva campanha de educação alimentar, dirigida às escolas, aos programas de alimentação do trabalhador, aos restaurantes populares e todas as outras modalidades em que se oferecem refeições prontas sob responsabilidade das autoridades públicas.

O programa de hortas pode ser incorporado a outros como o PNAE, estimulando o cultivo de hortaliças e legumes nos terrenos das escolas, onde isto for possível. Não é necessário que toda esta produção seja de tipo agroecológico, mas existem inúmeras experiências no país em que é empregado o sistema de hortas orgânicas intensivas, apropriadas para espaços pequenos e muitas foram implantadas com o apoio de manuais e vídeos onde as práticas são detalhadamente informadas. O apoio de técnicos pode ser importante, mas não é imprescindível. Este programa deverá ser executado através de acordos entre o governo federal e os municípios e Estados.

Para referência, não é difícil acessar experiencias em larga escala, uma delas coordenada pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e outra em aplicação há muitos anos na Argentina, que já chegou ao impressionante número de um milhão de hortas.

Questões organizativas e institucionais do MDA

Para terminar este conjunto de ideias ou propostas que submeto ao juízo do ministro Paulo Teixeira e aos técnicos do Ministério, gostaria de sinalizar um problema que já afetou administrações passadas.

A operação de apoio à AF montada pelo governo FHC e mantida pelos governos de Lula e de Dilma estava centrada em um Ministério que incluía a promoção do desenvolvimento e a reforma agrária. Na prática o Incra e o MDA nunca se integraram, operando em paralelo e até com estruturas similares (ATER no MDA e ATES no Incra, por exemplo). Ambos faziam a promoção do desenvolvimento, mas de públicos diferenciados (INCRA o dos assentados da RA e o MDA o da AF em geral). O que havia em comum era o mecanismo do crédito, mas mesmo esse, operado no MDA, tinha uma modalidade, o Pronaf A, voltado exclusivamente para os assentados e definido pelo Incra. Nunca houve uma integração de objetivos, metodologias e de modelos de desenvolvimento.

Por outro lado, o MDA operou uma estrutura que formulava políticas ditas universais tais como crédito e ATER, enquanto a política de compras governamentais ficava localizada na Conab/Mapa, situação superada no presente governo. A política de pesquisas para a agricultura familiar ficava (e continua) sob responsabilidade da Embrapa/Mapa e não havia um mecanismo onde o MDA pudesse colocar suas demandas formalmente e nem havia Embrapa um pressuposto orçamentário para este fim. A política de seguro para a AF foi definida no MDA, como parte da política de crédito, mas submetida a condicionantes definidos no MAPA. Já a execução da política de crédito ficava a cargo dos bancos públicos, BB, BNB e BASA, sem que houvesse uma interrelação institucional e um controle do MDA sobre como este crédito estava sendo distribuído no público-alvo. Isto fez com que fosse possível uma forte interferência dos gerentes dos bancos, privilegiando as modalidades mais convencionais (projetos de empréstimos para compra de insumos químicos e maquinário para a produção de commodities). Finalmente, as principais políticas, crédito e ATER, operaram em dissonância, muito embora, na ponta da execução, os técnicos das Emater que tinham que assinar os projetos de crédito dos agricultores o fizeram reforçando o caráter convencional do modelo agrícola que foi privilegiado, apesar das definições em favor da agroecologia que marcaram os princípios definidos no DATER.

As outras estruturas dentro do MDA se dirigiam a públicos específicos, como mulheres, povos e comunidades tradicionais, ou territoriais, todos com baixa integração com as políticas mais abrangentes como crédito e ATER.

Com o desmantelamento do MDA por Temer e a atribuição do crédito e da ATER para o Mapa, o precário conjunto das políticas para a AF foi desestruturado e agora tudo está sendo remontado. A estrutura atual do MDA não foi formulada a partir de um programa abrangente e mereceria uma rediscussão, incluindo mecanismos de integração entre as partes. Sem isso o MDA vai ficar tomando iniciativas descentralizadas e desarticuladas atirando em múltiplas direções e com baixa eficiência e eficácia. Sem uma revisão das políticas de crédito e de ATER, as orientações a favor de sistemas produtivos convencionais continuarão prevalecendo, como já está sendo o caso.

Espero que estas reflexões, vindas de alguém que participou de 12 anos de debates sobre a formulação e execução das políticas do MDA, através do Condraf, possam ter alguma utilidade neste momento de retomada deste ministério e volto a me colocar a disposição para participar das avaliações que me parecem essenciais para o nosso futuro próximo.

 

Veja em: https://outraspalavras.net/crise-brasileira/o-que-bloqueia-a-mudanca-do-modelo-agricola/

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