Imposto sobre Bens e Serviços, nos moldes do IVA europeu, pode alavancar economia e elevar renda. Já isentar IR de quem ganha até R$ 5 mil, promessa de Lula, precisa de contrapartida para compensar perda de arrecadação.
Por: Fábio Corrêa. | Créditos da foto: MIGUEL SCHINCARIOL/AFP/Getty Images. No Brasil, tributação sobre o consumo tem cinco impostos
A reforma tributária tem sido colocada como uma das prioridades do novo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e também do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Atualmente, há dois projetos sobre o tema no Congresso: as Propostas de Emenda à Constituição (PEC) 45 e 110, ambas de 2019.
Basicamente, as duas propõem a criação de um imposto único sobre bens e serviços, o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), nos moldes do Imposto sobre Valor Agregado (IVA), presente em cerca de 170 países, inclusive na União Europeia (UE).
As duas propostas preveem simplificar o emaranhado tributário brasileiro, que é composto por tributos como ICMS, IPI, ISS, PIS/Cofins, divididos entre União, estados e municípios. A diferença entre elas é, basicamente, a seguinte: enquanto a PEC 45 prevê que estados e municípios fixem uma alíquota única para o IBS, que seria somada a uma alíquota-base da União, a PEC 110 determina uma alíquota única de competência estadual.
Além dessas mudanças, uma promessa de Lula durante a campanha pode entrar na reforma: elevar o limite para isenção do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) dos atuais R$ 1.903, em vigor desde 2015, para R$ 5.000. Essa proposta, no entanto, precisa de contrapartidas para que não haja redução de arrecadação do governo, já que, para 2023, o déficit previsto no orçamento federal é de R$ 231,5 bilhões.
Melhora para todo mundo
Além do emaranhado tributário, a reforma também viria como uma forma de reduzir as desigualdades no país, onde o sistema leva os mais pobres a, proporcionalmente, pagarem mais impostos embutidos no consumo do que os mais ricos.
Segundo um estudo do Centro de Liderança Pública (CLP) sobre a reforma, atualmente, os 2% mais pobres pagam, no Brasil, 35% em carga tributária no consumo – que cairia para 31,5% com a unificação dos tributos. Já entre os 2% mais ricos, esse percentual é de 31,6%, e subiria para 32,2%.
O chefe de inteligência técnica do CLP e pesquisador do FGV/Ibre, Daniel Duque, explica que hoje a indústria, inclusive o setor de energia, têm carga tributária muito mais elevada que outros setores, especialmente os serviços. “A reforma tributária mudaria esse perfil de alíquota de modo a homogeneizar o quanto cada setor paga”, afirma o economista.
“Em todo mundo, as famílias mais ricas consomem mais serviços. Com a mudança, a maioria da população acabaria pagando menos tributos porque consome mais bens industriais e primários, como alimentos. As famílias mais ricas pagariam um pouco mais porque os serviços, que concentram o consumo dessas famílias, teriam um aumento”, complementa Duque. Segundo ele, a alíquota média para a indústria é de cerca de 44%, enquanto a dos serviços, de 22%.
Ainda de acordo com o estudo do CLP, a reforma levaria a uma queda do país no índice Gini, que mede a desigualdade, de 0,553 para 0,548. A pobreza extrema, por sua vez, cairia de 5% para 4%, e a pobreza não extrema, de 18% para 15%.
A renda média da população brasileira também teria um aumento, por causa de uma maior produtividade e um maior crescimento econômico causados pelas mudanças nos impostos. Outro estudo, do Centro de Cidadania Fiscal, indica que a PEC 45 pode elevar o PIB brasileiro em 20,2% nos próximos 15 anos.
“A reforma aumenta a produtividade, reduzindo distorções setoriais. Hoje são diversos impostos que se acumulam em cascata. Setores que são muito intensivos em cadeia alongada pagam tributos sobre tributo. O IVA resolve isso, porque ninguém vai pagar nada que já tenha sido pago antes”, complementa Duque.
A pesquisa do CLP ainda indica um aumento na renda dos brasileiros. Uma reforma integral, de acordo com o levantamento, implicaria uma alta na renda de 14% para os mais pobres; os mais ricos, por sua vez, ganhariam 9,4% a mais.
Momento político favorável
A reforma tributária foi proposta durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, mas não avançou. Mesmo antes da posse do novo governo, o gabinete de transição de Lula sinalizou o tema como prioridade ao indicar o economista Bernard Appy, um dos idealizadores da PEC 45, como secretário do Ministério da Fazenda.
Para a jurista portuguesa Rita de La Feria, professora da Universidade de Leeds, o governo Bolsonaro “tentou, mas não tentou muito”. “Houve m momento político [para a reforma], entre 2019 e 2020, mas não era a prioridade daquele governo. Com a pandemia parou totalmente, e o momento político que existia desapareceu”, afirma La Feria.
Ela diz que, em geral, reformas tributárias necessitam de muito capital político. “O governo Lula tem isso, há um grande movimento no Brasil por causa disso, até pela invasão que ocorreu no Congresso. Sinceramente, acho que há grandes chances de essa reforma passar agora”, acrescenta.
Um dos pontos que ela considera principais para a redução das desigualdades está previsto na PEC 45: a restituição do imposto pago pelos beneficiários do Bolsa Família.
“No momento, o sistema brasileiro é regressivo e vai ser muito mais progressivo quando houver a tributação do consumo dos mais ricos e o reembolso do que é pago pelos mais pobres. A aprovação nos moldes do Lula vai aumentar a progressividade”, pontua.
Ela também vê no emaranhado tributário brasileiro um entrave para o consumo.
“O Brasil é o único país que eu conheço que tem uma tributação com cinco impostos para o consumo (PIS, Cofins, ICMS, ISS e IPI). Muitos analistas dizem que é porque o sistema brasileiro é federativo. Isso é um mito, porque o Canadá, a Índia e a Alemanha têm sistemas federativos – e todos têm IVAs. A tributação pelo consumo brasileira cria distorções na cadeia produtiva e têm um efeito econômico negativo muito grande para o país”, acrescenta a professora de Leeds.
Isenção no IRPF
Paralelamente à unificação dos tributos e à criação do IVA, o governo estuda a melhor forma de colocar em prática a promessa de campanha de ampliar o limite de isenção do imposto de renda da pessoa física para R$ 5.000. De acordo com levantamento da Unafisco, essa mudança isentaria 28 milhões dos cerca de 39,7 milhões de declarantes. Com a isenção atual, para quem ganha até R$ 1.903,98, são cerca de 8,4 milhões de isentos.
A mudança corrigiria a tabela do IRPF, com a alíquota máxima de 27,5% sendo cobrada para quem ganha acima de R$ 11.573,10 mensais. Hoje, essa taxa recai sobre salários superiores a R$ 4.664,68.
O problema, no entanto, é que o governo precisa encontrar fontes de substituição de arrecadação para a perda que essa medida causaria nos cofres públicos. Outro estudo do CLP mostra que a isenção até R$ 5.000 tiraria cerca de R$ 80 bilhões do orçamento do governo federal, assumindo que a alíquota média para quem hoje ganha entre R$ 2.300 e R$ 5.000 seja de 10%.
Por causa disso, o governo Lula já estuda isentar os trabalhadores que ganham até dois salários mínimos (R$ 2.604).
Uma das propostas para resolver esse impasse é a tributação sobre dividendos. De acordo com a professora de direito tributário da FGV Direito Rio, Bianca Xavier, essa contrapartida chegou a ser aprovada pela Câmara dos Deputados, mas ficou parada no Senado.
Xavier diz que essa proposta pode recair sobre as empresas e aumentar ainda mais a carga tributária, dificultando o ambiente de negócios. “Se se somar a tributação de dividendos à atual carga das pessoas jurídicas, ninguém mais vai empreender. As pessoas vão preferir ir para o capital especulativo, e isso é muito ruim. A proposta atual continua sendo um desincentivo à atividade empresarial”, afirma ela.
Segundo Duque, do CLP, o problema é o imposto sobre lucro, que recai sobre as empresas, que basicamente as leva a recolher a tributação antes de distribuir os ganhos. “Isso é uma detributação. O que deveria acontecer não é só criar esse imposto de dividendo, mas aumentar o percentual que já existe sobre esses lucros. Não é uma mera questão de criar algo que não existe, mas de mudar algo que já existe e aumentar essa tributação. Isso é legítimo, mas tem consequência política”, acrescenta o economista.
Ele explica que o modelo atual é uma consequência histórica, já que o Brasil, além de sempre ter tido dificuldade de arrecadar sobre renda e patrimônio, também possui muita informalidade. “Após a criação do estado de bem-estar social, em 1988, foi preciso muito rapidamente expandir a arrecadação e não havia know-how para fazer de outra forma a não ser a partir desse mecanismo ineficiente que tínhamos sobre empresa e setor produtivo.”
La Feria, da Universidade de Leeds, lembra que, em países desenvolvidos, como Reino Unido e Alemanha, o imposto de renda arrecada muito mais. Mas que, em nações como o Brasil, é o consumo que gera a maior parte da arrecadação.
“O Brasil tem um problema crônico na arrecadação de receitas no IRPF que tem a ver com a estrutura econômica e social do país. Até conseguirmos resolver a questão social e econômica, sempre haverá uma subarrecadação no imposto de renda, porque não há pessoas suficientes que ganhem o suficiente”, conclui a jurista.
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