Vanuatu, país-arquipélago acossado pela elevação do nível do mar, cansou de esperar que os países poderosos façam algo contra a mudança climática. Poderão as redes de ativistas e o Tribunal Internacional de Justiça correr em seu socorro?
Por: Vinicius Gomes. Guerreiro climático de Vanuatu / Nickyatu Kautonga
“Nós não estamos afogando. Nós estamos lutando”.
Mais do que um slogan de campanha ou uma frase chamativa para o ativismo, tais palavras são quase um mantra que evoca o espírito de resiliência dos povos do Pacífico, cujos países estão entre os mais vulneráveis diante da contínua e avançada elevação do nível do mar, resultado direto do aquecimento global – para o qual esses próprios países em quase nada contribuíram.
Isso porque em grande parte de seus territórios estão poucos metros acima do nível do mar. Logo, qualquer aumento das águas pode ser a diferença de um país continuar sendo habitável ou não.
Entre a ameaça existencial de um oceano indiferente às suas vítimas, e um mundo ignorante sobre suas adversidades, eles vão à luta. Um das grandes demonstrações dessa essência guerreira se deu poucos meses atrás, em março, quando Vanuatu, país-arquipélago da região da Melanésia com pouco mais de 320 mil habitantes, convenceu a Assembleia Geral da ONU a solicitar um parecer do Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), sediado em Haia, na Holanda, definindo se os países têm obrigações legais em lidar com a crise climática global e, talvez ainda mais importante, quais sanções sob as leis internacionais vigentes eles estariam sujeitos caso prevaricassem.
Em geral, o TIJ julga disputas entre países, mas ele também pode ser acionado para emitir opiniões de interpretação em acordos e tratados internacionais já vigentes. Apesar de não serem juridicamente vinculantes, eles podem fornecer caminhos para futuras litigações em cortes nacionais.
A significância dessa conquista não pode ser menosprezada. Não só pelo fato de que esse é o primeiro passo para se criar um arcabouço legal de responsabilização pela inação frente as mudanças climáticas, mas também porque a iniciativa partiu de um país pequeno em território, mas gigante em autoridade moral para tratar sobre o tema. Poucas semanas antes de submeter seu pedido, o país foi atingido por dois ciclones de categoria 4.
Por si só, essa já é uma clássica história Davi contra Golias – ainda que a corte não tenha emitido seu parecer até o momento e, mesmo que seja positivo, seu texto não será vinculante. Mas a história de como Vanuatu teve seu dia de glória, em nome de seus países vizinhos e de todos em busca de justiça climática, é também fascinante.
Tudo começou em 2019, no campus Elasmus de Direito, da Universidade do Pacífico Sul, em Vanuatu, quando 27 estudantes receberam a tarefa de pensarem em soluções inovadoras para lidarem com a crise climática. Juntos, esses vinte e sete alunos traçaram um caminho bastante ambicioso para agir na arena multilateral das discussões ambientais, um espaço notório por seu lento progresso. A ideia era simples em sua teoria: e se nós perguntássemos à maior corte internacional de justiça, quais são os deveres dos países para endereçar os problemas climáticos e, caso falhassem, eles poderiam ser processados?
Parecia uma pergunta válida a ser feita. Assim, esses estudantes foram instigados por seus professores a realmente tirarem esse questionamento da sala de aula e ver o que eles conseguiriam fazer a respeito. Daí nasce o Programa para Mudança Climática dos Estudantes das Ilhas do Pacífico (PISFCC, sigla em inglês), uma organização fundada para colocar nas mãos dos juízes do TIJ essa mesma pergunta.
O próximo passo foi abordar o governo de Vanuatu, através do então ministro das Relações Exteriores, Ralph Regenvanu, que, curiosamente, hoje ocupa a pasta do Ministério para Mudanças Climáticas. Por sua vez, o governo de Vanuatu aceitou levar a ideia para a reunião do Fórum dos Líderes das Ilhas do Pacífico, a principal conferência entre os chefes de Estado da região, que aconteceria dentro de alguns meses, mas havia uma lição de casa a ser feita antes, seria preciso mobilizar outras organizações da sociedade civil ao redor de diversos países do Pacífico para dar envergadura ao plano, pois aquela era a primeira vez que tal ação fora proposta.
Em 2011, as Ilhas Marshall e Palau, países da região da Micronésia, no Oceano Pacífico, fizeram uma abordagem similar, mas que logo foi dinamitada pelas potências nada interessadas em colocar os conceitos de “justiça” e “mudança climática” numa mesma frase. Tal fracasso foi creditado especialmente na falta de coordenação. Assim, se Vanuatu, com o auxílio de outros países da região, fosse encampar mais uma tentativa de chegar ao TIJ, era melhor que eles não errassem, pois talvez jamais tivessem uma terceira oportunidade.
Formou-se então uma aliança de diversas organizações não só do Pacífico, mas também de outras regiões também se encontravam em situação de vulnerabilidade climática, especialmente no Caribe. Assim como a busca por suporte de ativistas ambientais e especialistas legais ao redor do mundo – e estes, logo foi compreendido, seriam fundamentais. Pois se o plano todo era que a principal corte do planeta avaliasse a requisição de Vanuatu – e antes disso, à Assembleia Geral da ONU – era bom que elas garantissem que ela estivesse bem formulada.
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À época da tarefa proposta no campus Elasmus, a advogada holandesa Margaretha Wewerinke-Singh estava presente, como professora de Direito Ambiental em Vanuatu. Concluindo-se que eles precisariam de um escritório de advocacia para criar uma estratégia legal para enquadrar a questão que seria apresentada na ONU e, depois ao TIJ. O escolhido foi a Blue Ocean Law Firm, com sede na ilha de Guam – uma ilha que serve como colônia dos EUA para seus interesses militares no Pacífico – que possuía um bom histórico em casos de justiça climática e direitos humanos. Margaretha voltaria para a Holanda e seria a ponta de lança da iniciativa junto ao TIJ. Mas como ela mesmo assumiu, no fim, tudo acabaria se resumindo em números – ou melhor, votos.
Entre todas as críticas que as Nações Unidas pelo desequilíbrio que forças que existe em seu Conselho de Segurança, ao menos, na Assembleia Geral, cada país é um voto. Assim, a estratégia adotada pelo governo de Vanuatu, foi uma espécie de “comer pelas beiradas”. Para além dos países do Pacífico, eles foram apresentando seu projeto para os caribenhos, africanos, asiáticos, latino-americanos, para só então nos “grandões” do Ocidente com uma lista enorme de apoio que, caso eles se contrapusessem, ficaria mal na foto.
Outra estratégia adotada pelos juristas da Blue Ocean e os representantes de Vanuatu é que eles não deveriam ser belicosos, ao menos não naquele momento, pois o importante era garantir os votos na Assembleia Geral. Em suas argumentações em busca de apoio, eles diziam que não estavam querendo processar ninguém, nem criar obrigações internacionais, mas sim, buscar um entendimento melhor sobre como acordos internacionais já existentes poderiam ser aplicados para endereçar questões das mudanças climáticas.
Esses movimentos foram tão bem-sucedidos que nem mesmo os EUA e a China, apesar não endossarem, se colocaram contra a apresentação e concordância com a resolução que enfim levaria aquela questão levantada numa faculdade de direito ao Tribunal Internacional de Justiça.
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Os principais fatores que resultam na elevação do nível do mar, todos eles relacionados ao aquecimento global: expansão termal, quando a água se aquece, ela se expande; e o derretimento das calotas polares, que despejam mais água nos oceanos – e não, um aumento na temperatura global não faria com que a água do mar evaporasse o suficiente para equilibrar as contas. De fato, um mar mais quente e com as águas doces dos polos alterando os caminhos das correntes marítimas, o efeito é chuvas ainda mais violentas, como se tem visto ao longo de todo 2023.
Muitos já até afirmam que a elevação dos mares já é irreversível, mas para os povos do Pacífico, o futuro ainda não foi escrito, e ainda que estejam longe dos centros de poder e locais de tomada de decisão que os afetarão diretamente, se depender deles, seus gritos por justiça climática serão ouvidos, mesmo que no meio do Pacífico, de onde eles seguem lutando.
Veja em: https://outraspalavras.net/terraeantropoceno/os-guerreiros-do-clima-contra-o-poder-dos-indiferentes/
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