Clipping

PIB, história de um índice-zumbi

Ele existe há poucas décadas. Suas falhas e imprecisões, amplamente conhecidas, induzem a um “crescimento” que devasta sociedade e natureza. As lógicas capitalistas impõem sua sobrevivência. Dois movimentos as questionam

Por: Marcos Barbosa de Oliveira | Imagem: James Ferguson

Este ensaio trata do PIB (Produto Interno Bruto), sua história (seção1) e seus defeitos enquanto indicador do bem estar das populações (seção2), com destaque para as externalidades ambientais negativas (seção 3). Tais defeitos substanciam um número enorme de críticas ao PIB, algumas bem radicais, que motivam a criação de indicadores alternativos (seção 4). Uma característica importante das críticas é a de que elas são reconhecidas pelo establishment; mais precisamente pelas instituições internacionais responsáveis pelo estabelecimento de normas e métodos para a medição do PIB (seção 5). Esses fatores dão origem a um paradoxo: apesar da unanimidade no reconhecimento das disfuncionalidades do PIB, ele continua firme em seus papéis de parâmetro para a condução de políticas econômicas, variável a ser maximizada, critério de avaliação do desempenho de governos, etc. A explicação para o paradoxo é exposta na seção 6, com base no conceito de força do capital. A seção 7 retoma os temas da seção 3, analisando a relação entre o crescimento do PIB e os problemas ambientais. A seção 8 trata dos dois principais movimentos de esquerda no enfrentamento da crise ambiental, o do decrescimento e o ecossocialismo. A tese defendida é a de que, embora compartilhem diversas propostas, há pelo menos três fatores que dificultam a associação dos dois movimentos, do ponto de vista do ecossocialismo.

1. O PIB e sua história

O PIB é o valor, expresso em unidades monetárias, dos bens produzidos num país (ou estado, região, município, etc.) no período de um ano (ou trimestre, mês, etc.). Em termos mais simples, é a medida do tamanho da economia. De um outro ponto de vista, o PIB é um componente do que veio a se denominar contas nacionais. Contas nacionais constituem a contabilidade de um país; são conjuntos de dados quantitativos referentes aos inumeráveis aspectos da vida econômica: além do PIB – de longe o mais importante – as contas registram os valores da produção por setor econômico, do capital detido pelas empresas, dos investimentos, da renda dos agentes econômicos, etc.

Nas histórias do desenvolvimento das contas nacionais, o título de pioneiro é atribuído ao médico, inventor, político, filósofo da natureza e economista inglês William Petty (1620-1687). O que lhe valeu esse título foram os levantamentos e estimativas das rendas, dispêndios, população, terras e outros bens, por ele realizados na Irlanda, na década de 1650, e a seguir na Inglaterra e País de Gales, na década seguinte.1

Depois de Petty, e até princípios do século XX, inúmeras estatísticas desse tipo foram computadas em diversos países (Kendrick, 1970). O precursor mais direto, mais concretamente ligado ao PIB, foi entretanto o levantamento da Renda Nacional (National Income) empreendido em princípios da década de 1930 por Simon Kuznets (1901-1985) – um economista norte-americano nascido na Belarus, agraciado com o prêmio “Nobel” de Economia em 1971. Naquela época, os Estados Unidos estavam sofrendo as desastrosas consequências da Grande Depressão iniciada com o colapso da bolsa em 1929. Enfrentando a crise, o governo procurava formular políticas econômicas que pudessem superar, ou pelo menos amenizar os aspectos mais calamitosos da situação, porém se ressentia da falta de dados quantitativos confiáveis a respeito da economia. Em janeiro de 1932, por iniciativa do senador Robert La Follette Jr., foi aprovada no Senado uma resolução solicitando ao Department of Commerce a elaboração de um relatório contendo

… estimativas da renda nacional total dos Estados Unidos para 1929, 1930 e 1931, inclusive estimativas das porções da renda nacional originárias da agricultura, manufatura, mineração, transporte e outras indústrias e ocupações rentáveis, e estimativas da distribuição da renda nacional na forma de salários, rendas, royalties, dividendos, lucros e outros tipos de pagamento. (Carson, 1975, p. 156)

Para atender à solicitação, o Department of Commerce celebrou um convênio com o National Bureau of Economic Research (NBER), uma organização privada que tinha Kuznets em seu quadro de pesquisadores, ficando a seu cargo a realização do levantamento. Apesar de contar com uma equipe muito reduzida, e poucos recursos, Kuznets levou a cabo sua missão de forma muito competente, e rapidamente. Em janeiro de 1934 apresentou ao Senado o relatório National Income 1929-1932 (Kuznets, 1934). O relatório teve grande repercussão, representou um avanço significativo em tudo o que se fizera antes nesse campo, e estimulou a realização de novos levantamentos nos anos seguintes, usados como subsídios para a formulação das políticas do New Deal rooseveltiano.

No fim da década, com os prenúncios de guerra e depois durante a guerra, as contas nacionais, principalmente nos Estados Unidos e no Reino Unido, passaram a desempenhar um papel ainda mais importante, como subsídio para a reorientação da economia de modo a atender às necessidades bélicas.2 Finda a guerra, a mobilização em torno das contas nacionais continuou, agora com vistas à reconstrução econômica da Europa.

Em 1944, o acordo de Bretton Woods levou à criação do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional, e em 1945 fundou-se a ONU, tendo esses órgãos se ocupado, desde o início, e ativamente, da questão das contas nacionais. A necessidade de as contas de cada país serem computadas de acordo com os mesmos princípios e métodos, pelo menos grosso modo, para possibilitar comparações entre países, levou a ONU a publicar, em 1953, a primeira edição de um manual normativo, o System of National Accounts (SNA). Outras edições saíram em 1960, 1964, 1968, 1993 e 2008 (até a de 1968, em nome da ONU, as duas últimas em nome da ONU, OCDE, FMI, Banco Mundial e Comissão Europeia).

Na qualidade de precursor do PIB, a Renda Nacional vigorou no campo das contas nacionais até 1936, quando foi substituída pelo Produto Nacional Bruto (PNB), que por sua vez, em 1991, deu lugar ao PIB. A diferença entre os dois é a seguinte. O PNB de um país refere-se aos bens e serviços produzidos por seus residentes, e empresas nele sediadas, independentemente do lugar – no próprio ou em outros países – onde se dá a produção. O PIB é territorialmente definido, refere-se aos bens e serviços produzidos em cada país, não importando o lugar de residência ou sede do produtor. Assim, “uma companhia americana operando em Xangai entra na conta do PIB da China (e, inversamente, do PNB dos Estados Unidos), enquanto uma firma chinesa operando em Seattle contribui para o PIB dos Estados Unidos (e, inversamente, o PNB da China)” (Fioramonti, 2013, p. 9). Para nossos propósitos, a diferença é irrelevante, sendo assim desnecessário entrar em detalhes sobre seu significado, e as razões para a mudança.3 Pelo mesmo motivo, para simplificar as considerações a seguir, utilizaremos o designativo PIB mesmo em se tratando de períodos nos quais o que vigorava era a Renda Nacional ou o PNB.

As contas nacionais foram utilizadas com sucesso na formulação das políticas econômicas keynesianas do New Deal, na adaptação das economias dos Estados Unidos e Reino Unido ao esforço de guerra e, no pós-guerra, na reconstrução dos países mais afetados e na reestruturação da economia mundial. Há um outro aspecto do significado das contas nacionais, que não diz respeito ao conjunto de dados usados como subsídio para a elaboração de políticas econômicas, mas sim à sua variável central, o PIB. E, com relação ao PIB, o aspecto mais importante – e crucial para os propósitos deste ensaio – é a valorização de seu crescimento.

O PIB de um país é uma medida do tamanho de sua economia, e assim, de seu poderio econômico, em comparação com outros países. A lista do PIB por país costuma ser apresentada em forma de um ranking, e a valorização de seu crescimento se manifesta como a aspiração de ascender no ranking. Como diz Fioramonti,

Há décadas o mantra do PIB tem dominado o debate público e a mídia. Os países são classificados de acordo com o PIB, a definição global de ‘poder’ é baseada no PIB (p. ex., superpotências, potências emergentes, etc.), o acesso à governança global é também concedido conforme o desempenho do PIB (p. ex., os membros do G8 e G20 são selecionados de acordo com o PIB) e as políticas de desenvolvimento são direcionadas pela fórmula do PIB. (Fioramonti, 2013, p. 5)

O PIB é valorizado também por sua relação com o bem-estar, ou qualidade de vida da população. Deste ponto de vista, o relevante não é o PIB em si mesmo, mas o PIB per capita (daqui por diante, PIBpc). O pressuposto, naturalmente, é o de que o PIBpc é uma medida do bem-estar, ou seja, quanto maior o PIBpc, melhor a qualidade de vida da população. Esse pressuposto será discutido nas próximas seções, onde se procurará mostrar que, como dizem Costanza et al. (2014, p. 94), o “PIB não apenas falha em medir aspectos-chave da qualidade de vida; de muitas formas, ele estimula atividades que prejudicam o bem-estar da comunidade no longo prazo”.

Tanto a valorização do PIB quanto a do PIBpc implicam a valorização da taxa de crescimento do PIB (tcPIB). As três variáveis andam juntas, e sua valorização se concretiza no objetivo de maximizá-las. Apesar de sua sintonia, entretanto, por motivos que ficarão claros mais tarde, a variável que figura mais intensamente no debate público em todos os níveis, que frequenta mais assiduamente as manchetes da mídia, é a tcPIB.4

Numa visão estilizada, pode-se dizer então que nas últimas décadas, com intensidade crescente, a maximização da tcPIB tornou-se o objetivo primordial das políticas econômicas, sendo os governos avaliados conforme o sucesso ou fracasso em atingi-lo. Governo bom é governo que mantém alta a tcPIB. O fenômeno é bem conhecido, e para ficar com apenas uma ilustração, cabe mencionar o caso da China que, num período que nos últimos anos parece estar chegando ao fim, manteve altíssimas taxas de crescimento, chegando a quase 15% ao ano, sendo por isso admirada, invejada e – pelo estímulo ao crescimento de outros países – louvada.

2. Os defeitos do PIB como indicador de bem-estar5

Nas sociedades democráticas, o objeto das ações do Estado deve ser a maximização do bem-estar, ou qualidade de vida da população. O PIB seria um substituto adequado para o papel de variável a ser maximizada se fosse um bom indicador do bem-estar da população. Mas não é isso que acontece. Nos últimos tempos, têm se avolumado as críticas a essa interpretação do PIB. As principais referem-se à exclusão ou à inclusão indevidas, em seu cômputo, de uma série de fatores, como os relacionados a seguir.

Trabalho doméstico não remunerado

Uma das críticas mais frequentes ao PIB é a de que não se inclui em seu cômputo o trabalho doméstico não remunerado – tipicamente o trabalho das donas de casa. É uma crítica levantada com muita ênfase por feministas, como Waring (1989) e Warrior (2000), uma vez que tal trabalho é realizado predominantemente por mulheres. Elas alegam, corretamente, que a omissão representa uma desvalorização do trabalho feminino, mas, indo além, a atribuem ao caráter patriarcal, androcêntrico das sociedades. Há boas razões para se afirmar que não é essa a causa (ou a causa principal) da omissão, mas sim às dificuldades de mensuração, decorrentes da quantidade de decisões mais, ou menos, arbitrárias que precisariam ser tomadas para viabilizá-la: decisões a respeito 1) de quais, entre as atividades caseiras, devem contar como trabalho (brincar com os filhos ou filhas é trabalho ou lazer?), 2) da medição do tempo dedicado às atividades de trabalho e, 3) de como precificar o tempo gasto com cada uma (Stone, 1992, p. 122; Lequiller & Blades, 2014, p. 121-2).

Outra evidência contrária à interpretação feminista é o fato de que o trabalho doméstico remunerado, também executado predominantemente por mulheres, é incluído no cômputo do PIB. Refletindo essa diferença, um lugar comum na literatura sobre o PIB é a observação (atribuída ora a um, ora a outro economista) a respeito de um patrão que se casa com a empregada doméstica. A empregada torna-se dona de casa; continua a fazer o mesmo trabalho, porém sem ser paga por isso. O casamento, em consequência, e paradoxalmente, causa uma redução no PIB.

Qualidade dos bens produzidos

No cômputo do PIB, os bens produzidos são contabilizados com base em seus preços de mercado – que nem sempre condizem com a qualidade. Um dos fatores responsáveis pela discrepância são os avanços tecnológicos, que incidem tanto nos produtos colocados à venda quanto nos métodos de produção. Considere-se, por exemplo, dois computadores de mesma categoria fabricados num intervalo de alguns anos. O modelo mais recente pode ter melhor qualidade (mais funcionalidades, maior eficiência, durabilidade, etc.) e no entanto custar o mesmo preço que o modelo anterior, graças a aperfeiçoamentos nos designs e nos métodos de produção. Tendo o mesmo preço, os computadores contribuem igualmente para o PIB. É razoável admitir, por outro lado, que o mais recente, de melhor qualidade, contribui mais para o bem-estar (Stiglitz et al., 2010, p. 24 e 31; Coyle, 2014, p. 87-8 e 120).

Não se deve ignorar, por outro lado, a estratégia da obsolescência programada, em que avanços tecnológicos são criados e deliberadamente implementados com o objetivo de diminuir a durabilidade dos produtos. Se levados em conta de alguma forma, eles ocasionariam uma diminuição do PIB, em vez de acréscimo, como no caso anterior, do aumento da qualidade (Slade, 2007).

Desigualdade na distribuição de renda

O PIB não leva em conta a distribuição de renda. De um ponto de vista ético, não há dúvida de que a justiça social é incompatível com distribuições de renda muito desiguais (sem que isso implique um igualitarismo radical). No que se refere diretamente ao bem-estar, é evidente, p. ex., que R$ 10.000 a mais de renda mensal faz muito pouca diferença para um bilionário, uma diferença enorme para quem vive de salário mínimo, ou está desempregado. Pelo menos dentro de certos limites, melhor distribuição de renda significa maior nível de bem-estar médio da população. O tema ganhou muita importância nos últimos tempos devido à piora na distribuição de renda ocorrida em inúmeros países do mundo todo (Stiglitz et al., 2010, p. 44). Um episódio marcante nesse processo foi a publicação do livro de Thomas Piketty (2014), O capital no século XXI que, como se sabe, teve enorme repercussão. Voltaremos a esse tema na seção 4.

Atividades ilegais

Diferente das anteriores, esta deficiência do PIB enquanto indicador de bem-estar diz respeito não a um fator que deveria ser incluído, mas a um fator indevidamente incluído.

System of National Accounts (SNA), como vimos na seção anterior, é o manual publicado pelos órgãos internacionais que tratam do levantamento de estatísticas com o objetivo de uniformizar os princípios e métodos usados no cômputo do PIB, de modo a possibilitar a comparação entre países. A edição de 1993 introduziu uma norma que prescreve a inclusão, no cômputo do PIB, dos produtos de atividades ilegais, como a prostituição (nos países em que é ilegal), o tráfico de drogas, as mercadorias falsificadas, a pirataria de bens intelectuais, o contrabando, a receptação, o suborno, a lavagem de dinheiro, etc. (ONU et al., 1993, p. 91; OCDE, 2002, p. 152).6

Atividades ilegais são proibidas por serem consideradas deletérias para a sociedade ou, em outras palavras, por contribuírem negativamente para o bem-estar da população. Sendo o PIB entendido como indicador de bem-estar, o valor do produto das atividades ilegais deveria ser subtraído, não adicionado ao PIB.

A norma da edição de 1993 do SNA foi repetida na última, de 2008, mas só começou a ser a ser implementada pouco antes de 2014, em alguns países antes que em outros. A mudança teve um impacto forte o suficiente para provocar alterações no ranking dos países segundo o PIB, e isso contribuiu para que fosse amplamente divulgada e discutida na mídia, em matérias com títulos como: “Itália salva da recessão pela prostituição e as drogas” (Smith, 2014); “Pagando por maus hábitos: serviços sexuais e drogas elevam a contribuição do Reino Unido para a União Europeia” (Inman, 2014); “Quem diz que o crime não compensa? Contar a prostituição e as drogas no PIB fez a economia do Reino Unido superar a da França como a quinta do mundo” (Linning, 2014).

Outras atividades prejudiciais

Um dos críticos mais ferrenhos do PIB enquanto indicador de bem-estar foi o próprio Kuznets, que tão destacado papel teve no desenvolvimento das contas nacionais, havendo autores que o consideram “o pai do PIB” (Philipsen, 2015, p. 15). Num texto de 1937, ele relaciona atividades econômicas que deveriam ser excluídas do conjunto levado em conta no cômputo do PIB, por contribuírem negativamente para o bem estar.

Seria muito valioso haver estimativas da renda nacional que removessem do total os elementos que, do ponto de vista de uma filosofia social mais esclarecida que a de uma sociedade aquisitiva, representam um desserviço em vez de um serviço. Tais estimativas subtrairiam dos presentes totais da renda nacional todas as despesas com armamentos, a maioria dos dispêndios em publicidade, uma boa parte das despesas envolvidas em atividades financeiras e especulativas e, o que é mais importante, os gastos que se tornaram necessários para superar as dificuldades que são, propriamente falando, custos implícitos em nossa civilização econômica. (Copeland, 1937, p. 37)

3. Externalidades negativas

Este último item da lista é o mais importante para as considerações das seções seguintes, por constituir a conexão (o “gancho”, como se costuma dizer) do tema do PIB com o dos problemas ambientais. Por esse motivo, merece uma seção dedicada somente a seu estudo.

Externalidades são as consequências de uma atividade econômica que afetam outras pessoas que não os produtores, independentemente da vontade delas. As externalidades podem ser positivas, quando contribuem para o bem-estar das pessoas afetadas, ou negativas, quando o prejudicam. Nem as pessoas beneficiadas pagam pelos benefícios, nem as prejudicadas recebem compensação dos produtores. O processo é assim externo à economia de mercado. No mundo contemporâneo, uma das categorias mais importantes é a das externalidades negativas que afetam o meio ambiente, causando os problemas das mudanças climáticas, da poluição da atmosfera, das terras, rios, lagos e oceanos, da redução da biodiversidade, exploração dos recursos naturais não renováveis – e muitos outros bem conhecidos, não havendo necessidade de prolongar essa lista.7

O SNA exclui explicitamente as externalidades ambientais do cômputo do PIB, com base na alegação de que

… haveria dificuldades técnicas consideráveis envolvidas na tentativa de associar valores economicamente significativos a externalidades, sendo essas fenômenos intrinsecamente não mercantis. Como externalidades não são transações mercantis de que as unidades institucionais participam voluntariamente, não há mecanismo que assegure a consistência mútua entre os valores positivos ou negativos atribuídos às externalidades pelas várias partes envolvidas. (ONU et al., 2009, p. 47)

Concluindo esse levantamento dos defeitos do PIB, para deixar clara sua importância, cabe mencionar as palavras de Stiglitz:

Numa sociedade cada vez mais orientada pelo desempenho, as métricas importam. O que medimos afeta o que fazemos. Se adotamos métricas erradas, buscaremos coisas erradas. No esforço para aumentar o PIB, podemos ficar com uma sociedade em que os cidadãos vivem pior. (Stiglitz et al., 2010, p. xvii)

Na medida em que têm impacto negativo sobre a vida social, os defeitos do PIB constituem falhas do mercado ‒ cuja existência até os mais ferrenhos neoliberais reconhecem. E, com relação às externalidades ambientais, diz o economista inglês Nicholas Stern, no importante relatório que leva seu nome (Stern review on the economics of climate change), “A mudança climática é a maior falha do mercado que o mundo já presenciou, e interage com outras imperfeições do mercado” (Stern et al., 2006, p. viii).

4. Indicadores alternativos

As consequências nefastas da precariedade do PIB enquanto indicador de bem-estar vêm motivando inúmeras intervenções críticas, acompanhadas de propostas de indicadores alternativos. Um dos primeiros novos indicadores propostos, e o que teve até agora a maior repercussão, é o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), desenvolvido pelo economista paquistanês Mahbub ul Haq, com a colaboração de vários outros especialistas, particularmente Amartya Sen, e lançado no primeiro Relatório de Desenvolvimento Humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, em 1990. O IDH leva em conta a expectativa de vida ao nascer, o nível educacional e o PIB per capita. Em 2010 foi criado o IDHAD (Índice de Desenvolvimento Humano Ajustado à Desigualdade). A segunda iniciativa mais marcante nesse campo foi a instituição, pelo presidente Sarkozy, em princípios de 2008, da Comissão para a Medida do Desempenho Econômico e do Progresso Social, sob a presidência de Joseph Stiglitz. Em seu relatório, dado a público em setembro de 2009, a comissão propõe, em vez de um indicador único, um “painel de instrumentos” (dashboard), que contempla 8 dimensões do bem-estar (Stiglitz, Sen & Fitoussi, 2010). Entre os indicadores alternativos anteriores ao IDH encontram-se o MEW (Measure of Economic Welfare) e o ISEW (Index of Sustainable Economic Welfare), criados respectivamente por William Nordhaus e James Tobin em 1972, e por Herman Daly e John Cobb em 1989 (Daly & Cobb, 1994). Entre os posteriores, o GPI (Genuine Progress Indicator) em 1995, e o Better Life Index, da OCDE, em 2011. Nos últimos tempos, ganharam espaço indicadores centrados na mensuração da felicidade, como o HPI (Happy Planet Index) e o GNH (Gross National Happiness; em português FIB (Felicidade Interna Bruta), lançados respectivamente em 2006 e 2011.8

5. As disfuncionalidades do PIB e o establishment: o paradoxo

Um aspecto muito importante da crítica ao PIB baseada em seus defeitos enquanto indicador de bem-estar é o de que eles são reconhecidos por seus defensores (p. ex., Coyle, 2014) e, mais significativamente, pelas instituições internacionais responsáveis pelo estabelecimento de normas e métodos para seu cômputo. No SNA de 2008, p.ex., lê-se: “O PIB é frequentemente considerado uma medida de bem-estar, mas o SNA não subscreve tal interpretação e, na verdade, inclui várias convenções que a contrariam.” Na sequência, o documento relaciona várias deficiências do PIB enquanto indicador de bem-estar (ONU et al. 2009, p. 12).

Uma evidência ainda mais forte do reconhecimento dos defeitos é a existência das Contas Satélite (Satellite Accounts), que consistem em estimativas dos aspectos relevantes para o bem-estar deixados de fora no cômputo do PIB, como o trabalho doméstico não remunerado, a desigualdade de renda e os impactos ambientais. As Contas Satélite começaram a ser computadas na França, na década de 1960. Os SNA’s de 1993 e 2008 fazem inúmeras referências a elas ao longo do documento, e recomendam a todos os países que empreendam seu cômputo (Philipsen, 2015, p. 227; ONU et al., 2009, cap. 29). Outra iniciativa de mesmo tipo começou em 2007 com uma conferência promovida pela Comissão Europeia e o Parlamento Europeu, juntamente com o Clube de Roma, a OCDE e o WWF (World Wildlife Fund), intitulada Beyond GDP, da qual resultou, em 2009, o documento Beyond GDP: measuring progress in a changing world (Comisssão Europeia, 2009).

Considerando o volume e a validade das críticas baseadas nos defeitos do PIB, a abundância de índices alternativos, e a posição do establishment, seria de esperar que sua supremacia estivesse sendo ameaçada, que o PIB estivesse se enfraquecendo em seus papéis de parâmetro para a condução de políticas econômicas, de variável a ser maximizada, de critério de avaliação do desempenho de governos, etc.

Só que não: o PIB continua firme nesses papéis, continua no foco dos debates econômicos e políticos, continua a frequentar com máximo destaque as manchetes dos noticiários. Os números dos indicadores alternativos, e os respectivos rankings de países, recebem certa atenção da mídia, quando são periodicamente divulgados, mas são vistos, por assim dizer, como notas de rodapé das notícias sobre as taxas de crescimento do PIB.

Qual a explicação para tal paradoxo?

6. O crescimento do PIB e a força do capital

A resposta que proponho explica o paradoxo enquanto consequência de uma força social, que vou chamar de força do capital. Ela é formada por duas componentes, uma teórica e uma empírica. A teórica diz respeito a uma característica fundamental do capitalismo, reconhecida tanto por adeptos quanto por críticos, a de que o sistema só funciona bem quando a economia cresce, e funciona tanto melhor quanto maior for a taxa do crescimento do PIB. Segundo alguns economistas, a taxa mínima de crescimento para uma economia capitalista saudável é de 3% (Harvey, 2010, p. 27).

A componente teórica não é negligenciável, mas a empírica é muito mais potente. Corresponde ao fato de que entre o volume das atividades econômicas, medido pelo PIB, e pelo menos três outras variáveis econômicas, consideradas decididamente benéficas no contexto do capitalismo, vigora uma relação de proporcionalidade. As três variáveis são: o nível de emprego, a lucratividade das empresas e a arrecadação do Estado.

Como regra geral, com altas taxas de crescimento, ganham todos: ganham os trabalhadores, pela elevação dos níveis de emprego e do salário médio; ganham as empresas, pelo aumento da lucratividade, que viabiliza sua expansão; e ganha o governo, com o aumento da arrecadação de impostos, que permite entre outras coisas, os investimentos, e os gastos com assistência social. Períodos de taxa de crescimento baixa ou, pior ainda, negativa, correspondem a recessões (nos casos mais leves) e depressões (nos mais graves), em que o sentido das variações se inverte, e perdem todos: perdem os trabalhadores, com o aumento do desemprego, e a queda dos salários; perdem as empresas, com a diminuição dos lucros, e eventuais falências; e perde o governo, com a queda na arrecadação. Em última análise, a resiliência do PIB se explica pela força do capital, sustentada pela insaciedade do sistema capitalista, pelo princípio do quanto mais melhor.

Tenho a impressão de que na literatura crítica do PIB, essa faceta do capitalismo é raramente explicitada ‒ ainda que às vezes fique implícita. Se a impressão é verdadeira, constitui um indício de que a força do capital é subestimada. É sempre bom lembrar que conhecer a força do adversário é fundamental para derrotá-lo.

7. O crescimento e a crise ambiental

O próximo passo em nosso raciocínio nos leva de volta às externalidades ambientais negativas do sistema capitalista, expostas na seção 3. O que se acrescenta agora é a ideia, bem razoável numa primeira aproximação, de que existe uma proporcionalidade entre a dimensão das atividades humanas e seu impacto no meio ambiente. Para efeito do raciocínio, entretanto, é suficiente uma tese mais fraca, a de que a relação entre as duas variáveis é monotônica, isto é, quanto maior a economia, maior o impacto negativo no meio ambiente ‒ ainda que a relação não seja linear. Dado o caráter finito de nosso planeta, enquanto fonte dos recursos necessários para as atividades econômicas, a implicação é a de que o crescimento permanente do PIB carece de sustentabilidade; se mantido, mais cedo ou mais tarde levará ao colapso da civilização. Com isso, vem à tona a contradição fundamental do capitalismo nos dias de hoje: a economia precisa crescer (para o sistema funcionar bem), mas não pode crescer (para não levar ao colapso).

(continua)

1. Uma excelente história do PIB e das contas nacionais encontra-se em Gross Domestic Problem: the politics behind the world’s most powerful number (Fioramonti, 2013). Sobre Petty, v. cap. 1, p. 17-20.

2. Segundo alguns autores, os levantamentos das contas nacionais nos Estados Unidos contribuíram significativamente para a vitória dos aliados. Um historiador que defende essa tese é Jim Lacey, em Keep from all thoughtful men: how US economists won World War II (Lacey, 2011). Cf. também Fioramonti (2013, cap. 1, p. 26-7).

3. Vale a pena entretanto explicar que a mudança teve a ver com a globalização. Como dizem Stiglitz et al. (2010, p. xxii), “A própria globalização implicou que a diferença entre o bem-estar dos cidadãos em um país pode diferir marcadamente da produção do país. Ironicamente, a medida focalizada no bem-estar, o PNB, saiu de moda, dando lugar ao PIB, que é focalizado na produção, precisamente quando a globalização estava tornando a diferença mais importante. Há consequências políticas óbvias nessa distinção.”

4. O maior destaque dado à tcPIB, em comparação com o PIB, causou no Brasil um curioso fenômeno de deslizamento semântico, em que ‘PIB’ passou a designar não o Produto Interno Bruto, mas a taxa de seu crescimento. Com grande frequência em manchetes de jornais, mas de maneira geral em toda a mídia, tornou-se comum o uso de expressões da forma “PIB de x %”, quando o correto seria, naturalmente, “taxa de crescimento do PIB de x %”. Foi tão marcante o deslizamento que deu origem aos horrendos neologismos “pibinho” e “pibão”, com o significado de pequena e grande tcPIB.

5. Acompanhando a literatura, e para simplificar a exposição, vamos nos referir ao indicador de bem-estar como PIB, no lugar do que seria mais correto, o PIBpc.

6. A justificativa para a inclusão dessas atividades é de natureza essencialmente técnica. Tem como fundamento a alegação de que sua omissão ocasiona discrepâncias entre as diferentes vias de cômputo do PIB (OECD, 2002, p. 151). De novo, tem-se aí mais um aspecto da dificuldade de mensuração.

7. Para um amplo e competente estudos dos danos ao meio ambiente causados pelas atividades econômicas, v. Luiz Marques (2023).

8. Em julho de 2011 a Assembleia Geral das Nações Unidas adotou por unanimidade a Resolução 65/309, intitulada “Felicidade: rumo a uma abordagem holística para o desenvolvimento”. Em resumo, diz a Resolução: “A Assembleia Geral […], ciente de que a busca da felicidade é uma aspiração humana fundamental [… e], reconhecendo que o PIB por sua natureza não foi projetado para, e não reflete adequadamente a felicidade e bem-estar da população de um país […], convida os estados membros a empreenderem a elaboração de mensurações que captem melhor a importância da felicidade e do bem-estar no desenvolvimento, com vistas a guiar suas políticas públicas [… e] dá as boas-vindas à oferta do Butão de convocar, durante a 66ª sessão da Assembleia Geral, um painel de discussão sobre o tema da felicidade e do bem-estar”. Em junho de 2012 foi adotada a Resolução 66/281, que proclama 20 de março o Dia Internacional da Felicidade.

 

Veja em: https://outraspalavras.net/pos-capitalismo/pib-historia-de-um-indice-zumbi/

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