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Por que a demarcação de terras é vital para indígenas

Prevista na Constituição e paralisada sob Bolsonaro, demarcação de territórios indígenas deverá ser retomada no governo Lula. Segundo a Funai, mais de 200 terras ainda não foram reconhecidas.

Por: Nádia Pontes | Créditos da foto: Victor Moriyama/ISA. Yanomami tiveram sua terra, o maior território indígena brasileiro, demarcada em 1992

Primeira mulher indígena a ocupar o posto, Joenia Wapichana assume nesta sexta-feira (03/11) a presidência da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) com a missão de reativar o órgão.

Com experiência como advogada e deputada federal, ela trabalha num plano de ação para atuar após o desmonte da Funai e a paralisação das demarcações de terras indígenas durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro. Com pouco dinheiro em caixa, o desafio de destravar os processos será grande.

“A Funai está se reerguendo, reativando seu compromisso”, diz Joenia à DW. Com orçamento anual precário e servidores se sentindo desvalorizados, a busca por recursos adicionais será urgente, adiciona.

Dinamam Tuxá, advogado e coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) diz estar ciente do cenário. “Esperamos que o governo busque mecanismos para garantir apoio institucional à Funai, para que tenhamos garantia de demarcação, fiscalização e promoção dos direitos”, afirma.

Além da prioridade de seguir com a delimitação dos territórios, é preciso enfrentar a atual crise humanitária na Terra Indígena (TI) Yanomami. “É necessário uma atuação urgente”, destaca Joenia.

“Somos a terra”

Segundo relatório entregue pelo grupo que atuou na transição antes da posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, processos relativos a 13 novas TIs poderiam ser finalizados imediatamente com a homologação, que é o registrado fundiário da área como propriedade da União com usufruto exclusivo dos indígenas.

Dados da Funai apontam a existência de pelo menos 680 territórios indígenas no país. A maior parte delas, 443 áreas (65%), está regularizada, e as demais 237 ainda estão sob análise.

Dinamam Tuxá diz que não há separação entre indígena e a terra. “Índio é a própria terra. Para os povos indígenas, sem território demarcado, não há como haver a reprodução sociocultural, reprodução física. Quando brigamos, reivindicamos esse direito para garantia da nossa própria sobrevivência, da existência da diversidade de povos, de línguas, de crenças e tradições”, explica.

Para os yanomami, por exemplo, a terra é um ser que respira, que tem coração, algo que se confunde com o seu próprio ser. Essa cosmovisão está detalhada no livro A queda do céu, assinado pelo xamã Davi Kopenawa e o antropólogo francês Bruce Albert.

“É a terra que dá sustento ao modo de vida dos indígenas. Quando vivem segregados, continuam indígenas, mas vão perdendo seus atributos, aspectos culturais. A gente [não indígenas] tem uma relação de produção com a terra, eles têm uma relação de vida. Não é material, é espiritual”, comenta a antropóloga Maria Melo, com vasta experiência em processos de demarcação como servidora da Funai.

Estimada em 3 milhões de indivíduos quando os portugueses chegaram no Brasil, em 1500, a população indígena era, em 2010, data da última publicação do Censo pelo IBGE, de cerca de 818 mil pessoas, o que representava 0,4% da população total. À época também foram contabilizadas 305 diferentes etnias e 274 línguas indígenas.

Dentre as cinco regiões brasileiras, a Norte é a que abriga mais indígenas (306 mil), seguida por Nordeste (207 mil), Centro-Oeste (130 mil), Sudeste (98 mil) e Sul (75 mil).

O que diz a lei

Paralisado durante a administração Bolsonaro, que nomeou militares para tomarem conta da Funai, o reconhecimento e delimitação dos territórios habitados pelos indígenas é uma garantia prevista na Constituição Federal de 1988. O texto, promulgado depois de mais de duas décadas de ditadura militar, dedica um capítulo todo (VII) aos indígenas, vítimas de violência desde a colonização.

O artigo 231 reconhece a organização social, costumes, línguas, crenças e tradições desses povos e garante a eles o direito originário – ou seja, antes mesmo da criação do próprio Estado brasileiro – sobre as terras que ocupam tradicionalmente. A lei afirma ainda que é dever da União demarcar esses territórios, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

No campo legal, o passo a passo para identificação e demarcação física da terra, assim como o devido registro fundiário, é detalhado no Decreto no 1.775, de 1996. Todo o processo, composto por nove fases, depende da iniciativa da Funai.

Da identificação do território, etapa inicial, até o registro das terras indígenas na Secretaria de Patrimônio da União, última fase, há um longo e complexo trabalho. As informações sistematizadas que justificam os limites da terra solicitada vêm de diversas áreas do conhecimento, como arqueologia, história, economia, agronomia, antropologia, cartografia e meio ambiente.

“Nossa missão é, junto à população indigena, perceber qual a necessidade da terra que eles precisam para manter a vida, quais são os pontos fundamentais para manter a cultura, os costumes. É como desvendar a máscara social de uma cultura completamente diferente, colocar isso em mapa, reunir todas as múltiplas visões que eles têm e passar tudo isso de forma cartesiana para que seja aceita por essa sociedade”, resume Maria Melo.

Obstáculos à demarcação

Os processos de demarcação, no entanto, costumam enfrentar muitos percalços. Alguns levam décadas para ser concluídos, como ocorreu com a TI Raposa Serra do Sol, em Roraima. Iniciada em 1977, a demarcação foi homologada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em seu primeiro mandato, em 2005. Arrozeiros, garimpeiros e outros grupos não indígenas resistiram à desintrusão, o indígena macuxi Aldo da Silva Mota foi assassinado, e houve uma série de atentados.

A história da TI Yanomami, no centro da atual crise humanitária, não foi muito diferente. Maior terra indígena do país, localizada na fronteira do Brasil com a Venezuela, enfrentou resistência de militares e parte da sociedade civil de Roraima, interessada em explorar ouro e cassiterita.

Em 1992, o então presidente Fernando Collor de Mello, assinou o decreto a favor dos indígenas e teve início a retirada dos garimpeiros. “Colocamos para fora de 40 mil a 42 mil invasores. Foi a Funai que pagou as horas de trabalho das aeronaves”, relembra Sydney Possuelo, que presidia a fundação à época, em entrevista à DW.

“Os dois pelotões do Exército que estão lá poderiam ter feito o mesmo agora. Mas nada fizeram, e o garimpo provoca essa crise que estamos vendo hoje”, critica.

“Sem demarcação, yanomami não estariam mais aqui”

O indigenista destaca o impacto da demarcação, em especial para os yanomami. “Acho que eles não estariam mais aqui hoje se a terra não tivesse sido demarcada. Eles não existiriam mais, com grande certeza – não como uma grande comunidade. Antes da demarcação, eram cerca de 10 mil a 12 mil. Hoje, são 30 mil”, pontua.

O número de mortes de crianças e idosos vítimas de desnutrição e doenças como malária nos últimos quatro anos não é uma coincidência, diz Possuelo. “O que vemos hoje é o resultado dos últimos quatro anos, quando começou a indiferença do governo e a retirada de pessoas que trabalhavam em prol dos indígenas. O desmonte teve essa consequência. É o resultado da política anti-indigena de Bolsonaro.”

Ao menos 570 crianças yanomami morreram de desnutrição nos últimos quatro anos, segundo a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, com base num levantamento do Ministério da Saúde.

Mais do que reparação histórica

Mesmo com a sinalização do governo Lula de priorizar a política indígena, Dinamam Tuxá diz esperar dias difíceis pela frente. “Bolsonaro saiu do poder, mas a ideologia bolsonarista se perpetua. Não só na força política, partidária, dentro do Congresso, mas dentro de muitas instituições. Há bancadas que vão contra a demarcação, como do agronegócio, mineração e extração de madeira. Grandes corporações financiam essas bancadas”, afirma.

É por isso, segundo ele, que invasões, grilagem e violência contra os povos indígenas devem continuar ocorrendo nos próximos anos. “O governo e as instituições precisam de um plano forte para combater esses crimes”, diz.

Demarcar os territórios, defende Dinamam, vai além de reparar um direito constitucional. “A ciência mostra que as terras mais bem preservadas são indígenas. Demarcar é mitigar efeitos das mudanças climáticas, é garantir a proteção da biodiversidade, é fazer um bem a toda a humanidade que vive neste planeta”, argumenta.

 

Veja em: https://www.dw.com/pt-br/por-que-a-demarca%C3%A7%C3%A3o-de-terras-%C3%A9-vital-para-ind%C3%ADgenas/a-64599741

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