Na década de 1970, uma tendência reformista nos partidos comunistas da Europa prometia um socialismo radicalmente democrático. O “eurocomunismo” buscou uma alternativa ao exausto modelo soviético — mas foi incapaz de responder às profundas convulsões sociais que ocorriam no Ocidente.
Por: Marzia Maccaferri | Tradução: Sofia Schurig | Créditos da foto: Jacques Haillot / Sygma via Getty Images. O líder comunista francês Georges Marchais e o líder comunista italiano Enrico Berlinguer durante um comício político em 3 de junho de 1976.
Em abril de 1980, o sociólogo e teórico político Göran Therborn declarou na revista britânica Marxism Today que o eurocomunismo era o herdeiro legítimo da rebelião social dos anos 1960 e a resposta genuína à crise do capitalismo avançado ocidental. No entanto, hoje, o eurocomunismo desapareceu completamente do vocabulário da esquerda. Remete-se, como outras expressões antiquadas como “entrismo” ou “programa máximo”, ao arcabouço ideológico do século XX, cujo legado – se é que existe – parece impossível de determinar. Nem mesmo a nostalgia comunista, que tomou tanto lugar nas livrarias recentemente, recuperou o léxico ou as ideias desse experimento teórico e político.
No entanto, em um curto período nos anos 1970 e início dos anos 1980, o eurocomunismo teve influência real no imaginário da esquerda. Proporcionou um momento significativo para vislumbrar uma relação diferente com o Estado e uma oposição democrático-radical ao capitalismo “desumano e explorador”.
Embora impreciso, e para a maioria de seus críticos ingênuos, o termo “eurocomunismo” incorporava, no entanto, a aspiração por uma versão adaptável do socialismo, na qual a liberdade de expressão e o pluralismo complementassem o potencial “humanista” da solidariedade de classe. Recuperou um marxismo “aberto” e “ocidental” em que o(s) caminho(s) para o socialismo não poderia ser separado das lutas históricas para ampliar a democracia parlamentar europeia tradicional (leia-se: liberal) e – nas palavras do líder do Partido Comunista Italiano (PCI), Enrico Berlinguer – construir uma “democracia progressista e substancial”.
Nomes importantes como Antonio Gramsci e Nicos Poulantzas foram associados a ela, enquanto a grande tradição do antifascismo representada pelos partidos comunistas francês e italiano foi fortalecida pelo envolvimento do Partido Comunista Espanhol (PCE) e seu carismático líder Santiago Carrillo, que durante a transição para a democracia após a morte de Francisco Franco abraçou entusiasticamente a noção de um comunismo “flexível”.
Talvez ele até tenha abraçado essa causa com muito entusiasmo, dada a reação abrasiva do Kremlin à condenação de Carrillo da degeneração burocrática do sistema de partido único soviético em sua obra Eurocomunismo y Estado, de 1977. De acordo com o historiador Christopher Andrew, que trabalhou com o arquivista da KGB Vasili Mitrokhin, a agência de inteligência soviética tentou repetidamente desacreditar Berlinguer e o PCI, que deram mais peso às ambições eurocomunistas.
A novidade do eurocomunismo – embora gaguejado e incompleto – foi a visão de forjar o socialismo através da democracia, integrando as lutas e injustiças ocorridas fora da esfera das relações estritamente econômicas e propondo uma concepção do socialismo principalmente como fonte de emancipação moral e libertação cultural, não apenas progresso material.
Por que então o eurocomunismo foi “cancelado” do imaginário da esquerda ocidental? E, mais criticamente, devemos deixar isso para os livros de história – ou esses debates e análises ainda ressoam com nossos tempos?
O “cancelamento” do eurocomunismo
Claramente, 1989 e a tentativa frustrada de Mikhail Gorbachev de “reformar” o modelo soviético são culpados. O fracasso dos reformadores soviéticos deixou a impressão de que o comunismo nunca poderia ter sido corrigido. Mas não só isso. O eurocomunismo também foi obscurecido pela – ou foi incapaz de lidar – com a chegada clamorosa do neoliberalismo na década de 1980 e a reorganização das relações sociais em torno de uma concepção estéril do individualismo.
A superação da lógica maniqueísta da Guerra Fria em nível nacional e internacional foi primordial para o projeto eurocomunista.
As renovadas tensões entre os Estados Unidos e a URSS e o agravamento da Guerra Fria representaram definitivamente um grande desafio, eclipsando o otimismo embutido no eurocomunismo: superar a política de blocos e construir uma nova Europa (verdadeiramente socialista) sobre as conquistas do Estado de bem-estar social.
Através dessas lentes geopolíticas, o eurocomunismo foi assim amplamente projetado como uma resposta pouco sofisticada à Guerra Fria, nada mais do que uma versão anterior do fracasso de Gorbachev e uma tentativa igualmente abortada dos então grandes partidos comunistas da Europa Ocidental (tipicamente os italianos, frequentemente os espanhóis, menos frequentemente os franceses) de se promoverem como uma opção credível de governo.
O termo foi cunhado em 1975 por Frane Barbieri, um jornalista croata/iugoslavo anticomunista; ele provocou os comunistas italianos porque “aspiravam chegar ao poder”, o que ele rejeitou como o mesmo velho projeto para a “stalinização” da Europa. A superação da lógica maniqueísta da Guerra Fria em nível nacional e internacional foi, portanto, primordial para o projeto eurocomunista.
Mas um outro princípio ideológico não deve ser subestimado. O eurocomunismo surgiu pela primeira vez para defender o legado do reformador tchecoslovaco Alexander Dubček, cuja liberalização política socialista-humanista foi abraçada com entusiasmo em toda a Europa Ocidental, especialmente pelos partidos que haviam expressado desaprovação sobre a invasão soviética de Praga em 1968.
Também surgiu durante uma fase relaxada da Guerra Fria, marcada pela distensão e pela Ostpolitik, como era então conhecida a abertura das relações da Alemanha Ocidental com o Oriente. O eurocomunismo focou nos direitos humanos e na liberdade política como elementos dos ideais socialistas, aspirando a propor o “socialismo com rosto humano” para a Europa pós-fordista (ocidental e oriental).
O eurocomunismo surgiu pela primeira vez para defender o legado do reformador checoslovaco Alexander Dubček, cuja liberalização política socialista-humanista foi abraçada com entusiasmo em toda a Europa Ocidental.
A conexão com as ideias de Gramsci sobre a complexidade da revolução socialista no Ocidente e as práticas bem-sucedidas de hegemonia alcançadas pelos comunistas italianos nas chamadas “cidades vermelhas”, como Bolonha ou Módena, deram ao eurocomunismo uma sólida legitimidade histórica e intelectual.
Alimentado na longa tradição do marxismo italiano não convencional, as premissas do eurocomunismo também se encontram na política das “frentes populares” e na ideia de “policentrismo” e autonomia do partido no pós-Segunda Guerra Mundial, do líder do PCI, Palmiro Togliatti, na busca de um socialismo adequado às realidades “nacionais”. Um legado que o seu homólogo espanhol Carrillo tinha deixado “já na década de 1950 [quando] os comunistas britânicos estabeleceram um programa em que se previa que a transição para o socialismo se daria em condições de democracia”.
Em certa medida, foi o passo final de uma jornada lenta, na verdade muito lenta, que os partidos comunistas europeus não puderam fazer em 1956, após o esmagamento soviético da Revolução Húngara, que eles amplamente defenderam. Não é por acaso que um dos mais fervorosos defensores do eurocomunismo foi o historiador Eric Hobsbawm: ele permaneceu no Partido Comunista da Grã-Bretanha (PCGB) assistindo a maioria de seus colegas partirem para dar à luz a Nova Esquerda por motivos muito semelhantes ao que o historiador espanhol Fernando Claudín escrevia em 1977.
O repertório anticomunista insistia que as propostas eurocomunistas eram apenas um exercício cosmético. Os comunistas tradicionalistas, especialmente na Grã-Bretanha, denunciaram-nas como mais uma traição, buscando finalmente “social-democratizar” o movimento operário e sucumbir ao capitalismo. Mas, em ambos os casos, a palavra “fracasso” ainda conota eurocomunismo.
Os limites do eurocomunismo
Oeurocomunismo tinha um apelo estratégico e ideológico inquestionável. Colocou a democracia e o pluralismo no centro de uma política reformada, capaz de alavancar essas ideias como meio de transição e como forma política de uma nova realidade: “A democracia é hoje”, afirmou Berlinguer em 1977, “não apenas o terreno sobre o qual o inimigo de classe é forçado a recuar, mas também o valor historicamente universal sobre o qual uma nova sociedade socialista deve ser fundada”.
Mas, ao mesmo tempo, o eurocomunismo mantinha limitações políticas e teóricas não resolvidas, especialmente sobre a tensão irredutível entre o Estado e a sociedade, bem como uma linguagem permeada de referências anacrônicas, que se chocava com a agressiva guinada neoliberal que as democracias ocidentais estavam vivendo.
Ao vislumbrar uma “terceira via” entre a social-democracia tradicional e o modelo soviético, o eurocomunismo procurou superar tanto a marginalidade quanto a insignificância política nacional e, igualmente, o risco de normalização, pois insistia em manter as aspirações “revolucionárias” de uma política transformadora significativa. A busca de uma maneira diferente de alcançar um “socialismo democrático” não pretendia abraçar e dissolver-se na social-democracia, mas, segundo Berlinguer e Carrillo, preservar e modernizar a “tradição intelectual revolucionária” herdada da história do comunismo europeu.
No contexto da crise pós-fordista do partido de massas e da política de classe, os limites políticos e estratégicos do eurocomunismo foram mais penetrantes do que as forças intelectuais e teóricas.
Ainda assim, no contexto da crise pós-fordista do partido de massas e da política de classe, os limites políticos e estratégicos foram mais penetrantes do que as forças intelectuais e teóricas. O eurocomunismo não reconhecia que o Estado iria “ocupar o espaço da individualidade”, cujas instituições democráticas, na brilhante análise de Poulantzas, se caracterizariam pelo atrito entre a redução do pluralismo internamente e a dispersão da autoridade política externamente.
Nesse contexto, o poder permaneceria administrado, mas não mais monopolizado por uma nova forma de “estatismo autocrático”, com a forma, mas não a substância, da democracia representativa. A profunda desconfiança na iniciativa de massas e a emergência de uma nova cultura tecnocrática, como na França do presidente socialista François Mitterand, ou a tomada da máquina estatal por partidos que buscavam distribuir favores a suas próprias bases, como na Itália dos anos 1980, eclipsaram completamente a tentativa eurocomunista de combinar a expansão da democracia representativa com a demanda por justiça social e de classe.
Os fracasos do eurocomunismo
Em primeiro lugar, o eurocomunismo não foi um projeto transnacional coerente em suas abordagens e organização: todos os seus documentos e pronunciamentos foram resultado de compromissos difíceis em termos de análise e teoria, espelhando mais questões domésticas do que ambições de um futuro compartilhado.
Os líderes do PCI, do Partido Comunista Francês (PCF) e do PCE se reuniram regularmente na década de 1970, mas isso não produziu nenhuma síntese real, exceto declarações simbólicas de boas intenções. O principal teste foi a conferência europeia dos partidos comunistas em Berlim, em 1976. Após mais de um ano de discussão, não houve acordo sobre um documento comum, e quando Berlinguer introduziu o termo eurocomunismo, Georges Marchais e o PCF recusaram-se a segui-lo, optando pela abordagem mais tradicional da autonomia dos partidos nacionais individuais.
As fragmentações nacionais logo se rematerializaram. Os comunistas franceses foram os primeiros a retornar às suas posições ortodoxas anteriores, seguidos pelos partidos grego e britânico. O caso emblemático da involução e do ressurgimento de compromissos rígidos anteriormente superados foi, sem dúvida, o destino dos comunistas britânicos.
Engolfado em uma série de divisões e conflitos cada vez mais intensos, que de fato paralisaram o partido até seu colapso final em 1991, o comunismo britânico perdeu o que provavelmente poderia ter sido sua última chance desde a década de 1930 de intervir no discurso público.
Ironicamente, quando, após um longo período de insignificância, a revista do partido Marxism Today ganhou maior influência graças à combinação da análise gramsciana e da abertura às experiências europeias, coincidiu com o período do declínio definitivo da tradição intelectual comunista britânica. Por mais reacionária e distante da realidade que essa fase tenha sido, é palpável ainda hoje o fato de que eurocomunismo e gramscianismo são usados como sinônimos em certos círculos de esquerda.
Em meados da década de 1980, o eurocomunismo deixou de ser aquela força política significativa que tentou abalar a esquerda ocidental.
Além disso, ao superestimar o potencial de reforma no mundo comunista e permanecer preso à projeção doméstica do sistema de dois blocos, o próprio eurocomunismo minou seu potencial de política transformadora, acabando por enfiar o projeto “no passado”. Foi um erro analítico e teórico, rapidamente captado por críticos como Ernest Mandel ou Perry Anderson, embora para este último de uma perspectiva muito ortodoxa.
Em meados da década de 1980, o eurocomunismo deixou de ser aquela força política significativa que tentou abalar a esquerda ocidental. Quando o líder do PCI, Berlinguer, morreu repentinamente, em 1984, o próprio termo havia caído totalmente no esquecimento. E, no final, o eurocomunismo foi apagado das contrarreações da esquerda dos anos 1990.
O mais relevante para compreender a trajetória eurocomunista, cujas consequências creio que ainda estão entre nós, foram as posições inconciliavelmente diferentes dos diferentes partidos em relação à integração europeia. Enquanto para os italianos e espanhóis as oportunidades oferecidas pela arquitetura da integração europeia poderiam desempenhar um papel no projeto eurocomunista, os britânicos sempre se opuseram à adesão à Comunidade Econômica Europeia (CEE), perpetuando uma interpretação prosaica das instituições europeias como o ápice do capitalismo.
O eurocomunismo como socialismo democrático “interrompido”?
Em 1979, em uma das últimas entrevistas antes de sua morte, Poulantzas discutiu a crise dos partidos operários que lidavam com o projeto eurocomunista. Sua luta para construir um diálogo com os novos sujeitos sociais, por um lado, e a “cartelização” do movimento operário dentro do aparelho de Estado, por outro, foram os dois desafios que o eurocomunismo não conseguiu compreender.
Trata-se de entender — concluiu Poulantzas — que nenhuma classe por si só, por sua própria natureza, está destinada a ser garantidora da liberdade. É preciso saber olhar para as estratificações, as divisões, as complexidades internas. Precisa da democracia e das instituições democráticas não só para se defender de seus inimigos, mas também para “se defender” no momento em que assume o poder político. Entender isso é importante para não subestimar o imenso trabalho de invenção necessário para a elaboração de uma teoria política democrática da transição para o socialismo.
Por mais parcial e contraditória que fosse, a fase eurocomunista buscara genuinamente um caminho alternativo capaz de superar as reviravoltas e fraturas históricas da esquerda. Algumas dessas indicações ainda podem ser um ponto de partida útil.
Veja em: https://jacobin.com.br/2023/11/por-que-os-eurocomunistas-perderam/
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