O Brasil se reencontrou consigo mesmo na posse do novo governo, mas agora é importante que tudo não se resuma a cenas simbólicas e bonitas, escreve Philipp Lichterbeck.
Créditos da foto: Ricardo Moraes/REUTERS
A posse de Luiz Inácio Lula da Silva na Presidência da República foi um recomeço. E como todo começo foi também despedida – de Jair Bolsonaro e de tudo o que ele representava: uma sociedade armada, militarizada e hierárquica, na qual homens brancos cristãos e heterossexuais estão no comando e todos os outros se submetem a eles. Na qual a natureza é destruída em favor da economia. Na qual interesses individuais contam mais do que o bem coletivo. Na qual cultura, ciência e educação são vistas como supérfluas.
Bolsonaro representava uma ordem social e econômica ultrapassada, e talvez o seu governo tenha sido uma espécie de revolta derradeira do ultraconservadorismo contra o progresso, que também ocorre no Brasil.
Quem planejou a posse de Lula estava ciente da dimensão histórica do momento e o encenou de forma marcante. A subida da rampa, com Lula ao lado de oito representantes da sociedade civil brasileira, foi de um simbolismo claro. Pela primeira vez o povo brasileiro adentrou o Palácio do Planalto com toda a sua diversidade e variedade, com sua resistência e sua criatividade.
Quando a catadora Aline Sousa colocou a faixa presidencial em Lula, quando Sonia Guajajara e Marina Silva assinaram seus termos de posse e quando Joênia Wapixana se tornou a primeira indígena a assumir a liderança da Funai, era como se o Brasil se reencontrasse consigo mesmo, como se um pesadelo de quatro anos tivesse acabado.
Tinha-se a impressão de que finalmente a justiça fora restabelecida e que a competência e empatia derrotaram a incompetência e energia destrutiva dos ministros e autoridades bolsonaristas.
“A alma do Brasil reside na diversidade inigualável da nossa gente e das nossas manifestações culturais”, declarou Lula perante o Congresso – uma obviedade que, mesmo assim, precisa ser dita. Bolsonaro, um homem sem cultura, combateu e negou essa diversidade, que ele e seus apoiadores percebem como ameaça e que os deixa inseguros. O ideal de sociedade deles vem do colonialismo europeu.
Lista longa de problemas
Mas, tanto quanto essas cenas do primeiro dia foram emocionantes, tanto é importante que tudo não se resuma à cenografia. A esquerda tem essa tendência ao sentimentalismo e se perde em simbolismos, considera que a posse de um negro como ministro dos Direitos Humanos já equivale à mudança. Com frequência, confunde a imagem com o conteúdo, o que se percebe também no entusiasmo com que essas cenas foram compartilhadas e celebradas nas redes sociais.
Até aqui, nenhum dos 20 mil garimpeiros ilegais deixou a reserva dos ianomâmis. O desmatamento continua no Pará, em Rondônia e no Mato Grosso. As filas de espera no SUS, sem recursos e sucateado, persistem. As escolas públicas brasileiras continuam oferecendo uma educação insuficiente para os jovens. A cor da pele continua sendo determinante para a carreira profissional, para uma vida na pobreza ou na riqueza, para comandar ou ser comandado. O Brasil continua sendo um dos países mais injustos na distribuição de riqueza, e o sistema fiscal continua pavimentando essa injustiça.
A lista é longa, e o novo governo precisa fazer muitas coisas para cumprir as expectativas. Provavelmente são coisas demais para apenas quatro anos.
Uma observação crítica
Mas o espírito de um novo tempo é perceptível depois de tanta incompetência, ideologia, mentiras, nepotismo e anti-intelectualismo.
Ainda assim, uma observação crítica se faz necessária: Lula formou um ministério de forte diversidade, mas os cargos mais importantes – lá onde o orçamento é grande e as decisões estratégicas são tomadas – continuam nas mãos da velha casta política masculina e branca. Lula nomeou 37 ministros, 14 a mais que Bolsonaro e claramente demais. Apenas 11 são mulheres, ainda que inicialmente o destaque tenha sido dado a elas. Lula teve que agradar todos os grupos de interesse de sua coalizão, da esquerda até o centro. Em Brasília, isso geralmente se dá com a distribuição de cargos e abre as portas para a corrupção.
Ainda mais problemático é que Lula quase não dispõe de dinheiro para iniciar a mudança rumo a uma sociedade mais justa. O governo Bolsonaro deixou um enorme buraco no orçamento.
Por isso, é importante que Lula aproveite o entusiasmo do início para implementar projetos importantes antes que tudo se perca nas trincheiras do Congresso,com sua maioria estruturalmente conservadora.
O começo foi bonito e trouxe alívio, mas as barreiras são enormes, e as condições, totalmente diferentes das de 2003. Só o tempo dirá se a mudança que a posse de Lula simbolicamente prometeu vai de fato se concretizar.
Veja em: https://www.dw.com/pt-br/posse-de-lula-belo-recome%C3%A7o-dificuldades-enormes/a-64283778
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