Para analistas, modelo produz desigualdade social ao privilegiar taxação sobre consumo em detrimento de renda e patrimônio. Com reforma em discussão, críticos veem risco de “fatiamento” do debate sobre justiça fiscal.
Em um dos países mais desiguais do mundo, a discussão sobre o que é uma carga tributária justa não é trivial. Para especialistas, mexer em um sistema que beneficia uma pequena – porém influente e barulhenta – minoria explica, em parte, por que a ideia de justiça fiscal tem sido mais teoria do que prática.
A Constituição prevê que o Estado deve considerar a capacidade individual dos contribuintes ao recolher impostos para financiar o bem-estar comum: quem tem mais, paga mais; quem tem pouco, paga pouco ou nada.
Na prática, porém, não é bem assim que funciona. Isso porque, no Brasil, boa parte dos impostos arrecadados incidem sobre consumo, em vez de sobre renda e patrimônio.
Especialistas apontam que esse modelo, onde pesa mais a tributação indireta – o imposto pago automaticamente por contribuintes ao adquirirem um bem ou serviço –, fomenta desigualdades e está na contramão de nações com um sistema de proteção social comparável ao brasileiro.
Enquanto entre os países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) o consumo respondeu por, em média, 32% da arrecadação tributária segundo dados de 2020, no Brasil esse percentual foi de 42% no mesmo período e de 40% em 2022.
Para Eduardo Fagnani, do Instituto de Economia da Unicamp e estudioso da área de justiça fiscal, o problema não é a carga tributária em si, mas a má distribuição dela entre os contribuintes. “Atinge muito mais os pobres, e residualmente os ricos”, explica. “Pobres consomem tudo o que ganham. E como têm renda menor, essa parcela de impostos compromete uma parcela maior da renda deles.”
Quanto mais rico se é, menos imposto se paga
O imposto sobre a renda da pessoa física tem quatro alíquotas: começa em 7,5% para quem ganha entre 1,9 mil reais e 2,8 mil reais mensais e chega a 27,5% para quem recebe mais de 4,6 mil reais mensais. O problema, segundo especialistas, é que esses parâmetros não só não refletem a alta no custo de vida nos últimos anos, como também desconsideram a brutal desigualdade do país.
Dados do World Inequality Lab apontam que a renda média mensal do 1% mais rico é de 103 mil reais. Do outro lado, 67 em cada 100 brasileiros têm renda média de até 2,4 mil reais mensais – destes, mais da metade ganha menos de um salário mínimo.
Quem recebe lucros e dividendos – pagos majoritariamente aos já abastados, que têm dinheiro para investir, e profissionais da elite – não paga nada de imposto. “A Petrobras vai pagar mais de 200 bilhões de dividendos. Se um acionista receber 40 milhões de reais, esse dinheiro não é taxado um centavo de imposto, enquanto uma professora que ganha 5 mil reais é taxada 27,5% na fonte”, exemplifica Fagnani. “Taxação é o princípio da equidade, tem que ser proporcional à renda. E nós não taxamos proporcionalmente a renda.”
Já no caso dos investimentos, quem tem patrimônio elevado tira proveito de cargas tributárias comparativamente menores.
Para o advogado tributarista e presidente do Instituto Cearense de Estudos Tributários (ICET), Schubert Martins, é uma situação de injustiça extrema. “É justo eu tributar a 17% um grande aplicador e tributar a 27,5% quem ganha 5 mil reais?”, questiona. “Além do imposto de renda, a pessoa ainda paga a tributação em cima dos bens que ela consome para sobreviver.”
No caso do imposto de renda, especialistas defendem que é possível aliviar as classes mais baixas ampliando alíquotas para os super-ricos e taxando lucros e dividendos.
Presidente Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Unafisco), Mauro Silva lembra que muitos profissionais bem-remunerados, como diretores de empresas, deixaram de receber como empregados e tornaram-se prestadores de serviço ou sócios, com remuneração por lucros – uma forma de pagar menos impostos, mas que deixa a previdência subfinanciada.
“Existe um incentivo à pejotização na medida em que você não taxa a distribuição de lucros e dividendos. Sem corrigir o problema da pejotização, não vai ter ninguém para você cobrar 35% ou 45% de imposto de renda, porque a maioria recebe renda como lucros em vez de salário. A classe alta não paga imposto de renda”, diz Silva.
Pouco tributo sobre imóveis e herança, isenção para jatinhos e iates
Além da alta tributação do consumo e das distorções no imposto da pessoa física, pesa também a subtributação de patrimônio. No país do agronegócio e dos investimentos imobiliários, tributos sobre propriedade não chegaram a 5% da arrecadação total em 2022.
“O imposto territorial rural, que deveria ser muito importante do ponto de vista da arrecadação, dado o tamanho do Brasil, gera 0,06% da arrecadação federal”, exemplifica Machado, do ICET. “Detentores de terras, vastas propriedades, não pagam imposto territorial.”
E embora carros estejam sujeitos ao pagamento de tributos, bens como jatinhos e iates, apesar de mais caros e poluentes, não pagam nada. Outro aspecto do modelo brasileiro sob críticas é a taxação de heranças. Enquanto na Alemanha, por exemplo, o imposto pode chegar a até 50% do patrimônio, no Brasil, não passa de 8%.
“Em comparação com o que é estudado em termos de justiça tributária no mundo, o Brasil tem uma deficiência de tributação nas heranças e isso acaba concentrando patrimônios em grandes famílias”, observa Daniela Olímpio, pesquisadora e professora de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
Ela diz ver o debate interditado pelo discurso de que tributar patrimônio levaria à fuga de capitais, algo sem evidências. “Isso já aconteceu há muito tempo. Todos os ricos já têm contas em paraísos fiscais, veja [a investigação do caso] Panama Papers”, contemporiza Fagnani. “Só que não dá para pegar sua fazenda, seu prédio, e botar num navio. Tem que ver para onde eles vão. Se forem pros Estados Unidos, serão muito mais taxados que no Brasil.”
Tathiane Piscitelli, professora da FGV Direito SP, segue raciocínio semelhante. “Esse tipo de argumento não deve interditar o debate, e sim estimulá-lo”, afirma.
Benefícios fiscais ao empresariado sob crítica
Outro ponto levantado pelos especialistas é a concessão de benefícios fiscais ao empresariado – segundo cálculos da Unafisco, por causa deles o Estado teria deixado de arrecadar 367 bilhões de reais até o final de 2022. “Essas desonerações e isenções funcionam muito mal porque não há critério nem transparência. Não se demonstra necessidade dessa isenção”, critica Machado.
Embora defenda a redução de tributos sobre a folha de pagamento como forma de aliviar o empresariado, Fagnani ressalta que por causa dos benefícios há diferenças entre a alíquota nominal e o imposto efetivamente pago pelas empresas, em torno de 22%. “O setor financeiro praticamente não é tributado. Há brechas legais para paraísos fiscais, com empresas exportando para subsidiárias em paraísos fiscais, praticando preços muito baixos para que imposto seja reduzido”, enumera.
Autor de estudos sobre arrecadação tributária e diretor do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Fernando Geiger acrescenta à lista de críticas benefícios fiscais para doentes crônicos e aposentados, além de despesas com educação e saúde privada – algo, aponta, que beneficia apenas a classe média alta a um custo relativamente alto.
Oxfam: Política de aliviar tributos aos mais ricos concentrou renda
“Há uma visão equivocada de que a diminuição da taxação sobre renda e patrimônio dos mais ricos levaria a desenvolvimento”, afirma Jefferson Nascimento, coordenador de pesquisa e justiça social e econômica da Oxfam Brasil. “Na verdade, levou a mais desigualdade.”
Segundo ele, essa mentalidade neoliberal, em voga desde os anos 1980, está sendo reavaliada ao redor do mundo. É por isso que, para ele e outros especialistas consultados pela DW, as discussões sobre a reforma tributária deveriam priorizar não a simplificação dos tributos sobre o consumo – caso da proposta atualmente em debate no Congresso –, mas sim o reequilíbrio da carga tributária como um todo.
“A escolha que foi feita nesse momento foi de primeiro focar nos impostos indiretos, de bens e consumo. Mas para diminuir a desigualdade deveria ser o contrário: focar primeiro na reforma dos impostos diretos, sobre renda e patrimônio, e depois nos indiretos”, avalia.
A imagem do brasileiro como favorável ao estado mínimo não condiz, segundo ele, com dados da própria Oxfam: em sondagem de 2022, 85% disseram apoiar que os mais ricos paguem mais impostos para financiar políticas sociais.
Receio é de que simplificação de tributos sobre o consumo acentue desigualdades
Para Fagnani, é arriscado discutir apenas a tributação sobre o consumo agora, deixando renda e patrimônio para depois. “Corremos o risco de fazer só uma parte da reforma e melhorar a eficiência econômica, mas não mexer na questão central, que é a desigualdade de renda.”
“Se fizer só essa reforma, corre o risco até de aumentar os tributos”, continua Fagnani. “Simplificar aumenta a eficiência econômica, mas não estão reduzindo carga tributária sobre o consumo, que é elevadíssima.”
Piscitelli chama atenção para o fato de que a tributação uniforme do consumo, como tem sido discutido no Congresso, pode acentuar desigualdades se não houver mais uma diferenciação entre bens essenciais e supérfluos – ou aqueles considerados danosos e por isso sobretaxados, como cigarro, álcool e armas. “Se [essa discussão] vier em um momento posterior, teremos que ter mais um debate no parlamento e enfrentar o lobby dos grupos de interesse.”
Cashback pode agravar problema
Piscitelli se diz ainda preocupada com a falta de detalhamento da política de devolução de imposto – que tem sido chamado de cashback. “Quem vai ser beneficiado? A devolução vai ser capaz de atingir todas as pessoas que não têm capacidade contributiva e que, portanto, poderiam ser tributadas de forma reduzida?”
Seu temor é que uma parcela significativa da população que é pobre, mas não tanto a ponto de ser beneficiária de programas sociais como o Bolsa Família, fique de fora do cashback e seja penalizada com o aumento de preços – caso, por exemplo, de mulheres que recebem um salário mínimo.
“Elas teriam uma tributação altamente regressiva, sem possibilidade de compensação do imposto. Não consigo enxergar como isso melhoraria o sistema tributário da perspectiva da justiça”, avalia. “Parte-se do pressuposto que a gente tem que escolher: devolução ou tributação favorecida para bens e serviços essenciais. Podemos ter as duas políticas.”
Oliveira, da USP, concorda e defende a isenção ou tributação diferenciada de produtos essenciais para a população mais vulnerável, como cestas básicas e absorventes. “A simplificação nivela situações muito desiguais entre pobres e ricos e acaba onerando o mais pobre”, ressalta.
Se essa discussão não for travada agora, alerta a pesquisadora, o risco é de aumentar ainda mais a taxação dos mais pobres pela via do consumo, com agravamento da desigualdade social. Daí a urgência, aponta Oliveira, de se falar também em tributação de renda e patrimônio.
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