A dona do bar e os laços de solidariedade. O ex-usuário e sua nova vida. A artista trans em luta por justiça. Uma série de perfis mostra quem são as pessoas que vivem (n)a Cracolândia e são os verdadeiros rostos, histórias e sonhos do território
Por: Ana Luiza Voltolini Uwai | Créditos da foto: Pedro Stropasolas/Brasil de Fato
A atuação da segurança pública no centro de São Paulo tem sido intensificada desde 2020, quando a violência policial aumentou na região da Cracolândia e serviços de saúde e assistência social foram fechados. Com a pandemia de covid-19, a crise sanitária vulnerabilizou ainda mais o território.
Diante disso, a organização da sociedade civil foi essencial para garantir saúde e direitos na região. Entre as organizações e coletivos que atuam ali, está o Centro de Convivência É de Lei, que atua com redução de danos há mais de 20 anos e lançará em fevereiro a pesquisa “Policiamento, covid-19 e pessoas que usam drogas: sobrevivendo à polícia na Cracolândia”.
A pesquisa, realizada em parceria com o International Drug Policy Consortium (IDPC), tem como foco compreender as dinâmicas de violências no território da Cracolândia durante a pandemia de covid-19, a partir de relatos de pessoas diretamente afetadas pela política de drogas. Além do relatório de pesquisa, que trará recomendações para o poder público, será lançada uma série de perfis de pessoas que vivem a Cracolândia, com os objetivos de trazer para o debate as narrativas de quem deveria protagonizá-lo e tratar a Cracolândia como o que ela é: além de um território, são pessoas com direitos, sonhos e histórias.
A cada novo governo é anunciado o fim da Cracolândia, uma das maiores cenas abertas de uso de drogas do município de São Paulo. A região do bairro da Luz é, há 30 anos, permeada por miséria, exclusão social e disputas no âmbito da especulação imobiliária e a chamada guerra às drogas.
O apelido “Cracolândia” veio como uma forma de estigmatizar as pessoas que vivem ali, por serem em sua maioria usuárias de crack. Sob a justificativa da política de guerra às drogas, essas pessoas – pobres, negras e com histórico de institucionalização, por exemplo em manicômios, prisões e abrigos – são alvo constante de violações de direitos.
O nome, no entanto, se tornou uma identidade ao longo dos anos, pois ali há muito mais do que corpos vulnerabilizados. Existe arte, cultura e vida, o que trouxe um sentimento de pertencimento e resistência das pessoas que sobrevivem no meio dessa guerra, que se mostrou ser contra elas.
Por outro lado, as intervenções estatais nessa região são majoritariamente focadas na segurança pública. O que se observa é a fragilidade da criação e continuidade de políticas de drogas pautadas na saúde, na moradia e na redução de danos, o que gera dificuldades em serem criadas iniciativas permanentes e de longa duração. Portanto, a cada mudança governamental a ênfase é voltada para uma direção e fica a cargo de instituições voltadas à defesa de populações vulnerabilizadas, como organizações da sociedade civil, grupos e movimentos sociais a tentativa de impedir práticas violadoras de direitos.
O texto a seguir é o primeiro de uma série de perfis, elaborados pela jornalista Ana Luiza Voltolini Uwai como parte da citada pesquisa, que retratam as pessoas que vivem (n)a Cracolândia e são os verdadeiros rostos, histórias e sonhos do território.
O proceder do bar da Nice
Por Ana Luiza Voltolini Uwai
Este texto faz parte da pesquisa Policiamento, covid-19 e pessoas que usam drogas: Sobrevivendo à polícia na Cracolândia, desenvolvida pelo Centro de Convivência É de Lei em parceria com o International Drug Policy Consortium (IDPC).
Cracolândia, 20 de setembro de 2022. Estamos num bar, a porta entreaberta para nos dar privacidade para conversar. Me sinto em casa, mas percebo que o sentimento tem razão: ali também mora uma família.
A dona do bar é Nice, uma mulher conhecida e respeitada no bairro da Luz. De sorriso largo, braços sempre abertos, oferecendo um abraço. “Se eu não for gentil, não vão ser gentis comigo”, ela diz. Nos encontramos ali para conversar sobre como a violência policial afeta aquela região num momento de crise sanitária, e como isso tudo a afeta, já que seu bar está no meio da Cracolândia – ou o que restou dela.
Para isso, ela nos fala sobre como chegou àquele local, onde trabalha e mora com dois filhos e Pituca, a cachorra. Nice passou boa parte da vida viajando, “tive uma grande trajetória de estrada”, conta. Em São Paulo, trabalhou por anos com sexo no Parque da Luz, um conhecido ponto de prostituição do centro da cidade. Esse período contribuiu para que seu sentimento de pertencimento à região fosse crescendo, e que sua presença enquanto mulher, negra e prostituta fosse respeitada.
O respeito foi conquistado a muito custo. Quando começou a trabalhar no primeiro bar, na rua Mauá, logo veio a pandemia. Morava na Zona Sul e ia trabalhar todos os dias, mesmo durante o período de quarentena, porque não teve opção de parar. “Se eu cair, a casa cai pra todo mundo”, ela diz. Toda a família, os quatro filhos, que na época moravam com ela, estavam sem saber o que seria da vida naquele momento.
Esse é um sentimento comum a muitas mulheres que se perceberam sozinhas (ou ainda mais sozinhas do que já eram) quando a pandemia de covid-19 começou. Sem assistência do governo, depois de um tempo de pandemia teve que voltar a trabalhar com público e a ajuda veio da rede de apoio que se formou na região da Cracolândia. O auxílio emergencial não veio de pronto, mas ajudou quando chegou. Enquanto isso, sempre chegava uma ajuda, uma doação. Marmita não faltou, porque os esforços de pessoas e grupos de movimento social durante esse período foram intensos.
A própria Nice, mesmo nessa situação incerta, nos conta que seu bar virou um ponto de segurança para algumas das pessoas usuárias de drogas. Talvez por sua história de vida, ela nos fala que sua maneira de pensar é brutal. No entanto, fala isso com doçura na voz e nos explica que não pode explodir com toda a brutalidade que acontece ali.
Ela não nega apoio às pessoas, porque enxerga na Cracolândia uma humanidade percebida por poucos. Arrisco dizer que essa capacidade de enxergar é, de um modo geral, compartilhada por quem vive o território. Isso por entender que aquele não é só um espaço aberto de uso de drogas, mas um sentimento de pertencimento que vai muito além das vulnerabilidades às quais as pessoas estão sujeitadas ali.
Nice nos conta que, conforme as pessoas em situação de rua que frequentavam a região viram como ela as tratava, foram se aproximando. Segundo ela, isso tem motivo: “eu vim da rua, eu falo a língua deles”. Isso se fortaleceu quando foi para o bar em que trabalha e mora hoje em dia. Não à toa, sua ida para esse novo local foi impulsionada por pessoas que fazem parte dessa rede construída na Craco, que inclui pessoas que moram, trabalham e atuam em movimentos dali.
Uma das coisas que ela manteve de um estabelecimento ao outro foram os lambes, colados em todas as paredes. São lambes do Coletivo Paulestinos, que atua na região e espalha lambes com dizeres da rua pela cidade. Eles estão lá para mostrar às pessoas da rua, que elas são bem-vindas no bar. Entre as palavras, que gritam por direitos, por liberdade e por cultura, está um papel que quase se perde na parede, com o “proceder do bar da Nice”.
Enquanto estávamos lá, mesmo com só uma nesga da porta aberta, uma mulher, aparentemente em situação de rua, entra no bar. Ela pede um café, uma pinga. Já é conhecida da dona do bar, que interrompe a entrevista para acomodá-la numa cadeira e dar o que ela pede. Ela toma o café e a pinga, se levanta, e vai lavar a louça. Entendemos, então, que aquele era um combinado antigo e que depois Nice nos explicou que se estende a outras pessoas que frequentam o bar e não podem pagar por suas bebidas.
Conforme Nice fala das pessoas, vamos entendendo que sua prática é a prática de uma redutora de danos, ainda que ela não se descreva como tal. A redução de danos (RD) apareceu na sua vida com força junto dessa rede de apoio formada durante a pandemia. Não como um dispositivo para ajudá-la com alguma questão relacionada ao uso de substâncias, mas como essa teia de acolhimento – porque a redução de danos é sobre as pessoas.
A Nice nos indaga a pensar o que fazer para lidar com esse mundo “injusto e cruel”, e responde da maneira mais prática possível, como alguém que não tem escolha: “tem que lidar com esse mundo. Muito louco”.
“Quem é seu escudo aqui?”
Em certo momento da conversa, começamos a falar sobre quais são os problemas de trabalhar e morar ali. Ela diz que está esgotada. Não é novidade que aquela é uma região cercada pelas forças policiais e cerceada pela especulação imobiliária. Entretanto, as ações das polícias têm ficado cada vez mais violentas no último ano, ainda mais durante a pandemia, longe dos olhos do público geral.
Para a Nice, “a Craco foi sufocada”. Em 2021, ocorreram as últimas desapropriações das quadras 37 e 38. Essa é parte do plano do governo para levantar prédios e comércios e acabar com a Cracolândia. Moradores da região e pessoas que lutam por direitos como moradia resistem há muitos anos a essa política que desconsidera as pessoas que já vivem ali. A percepção dela é que depois dessas desapropriações, o fluxo aumentou.
Para ela, o que o governo fez deixou tudo pior. Se sente mais insegura agora do que antes, porque o público aumentou. Para além das desapropriações, a questão da Cracolândia é que, desde os últimos governos do PSDB na cidade e no estado de São Paulo, a segurança pública é a única política pública que chega com força ali. Equipamentos como o ATENDE, que prestava serviços de saúde e assistência social, foram fechados em plena crise sanitária. Na percepção de Nice, “se não tem os RDs na rua, os usuários não têm em quem se apoiar”. Ela diz ainda que “aqui virou o pantanal. A polícia movimenta as pessoas como se fosse gado”.
Desde que a Praça Princesa Isabel foi cercada, a população da Cracolândia foi espalhada pelo centro de São Paulo. Essas pessoas, agora sob a vista de moradores da região, incomodados com a presença de pessoas usuárias de drogas e em situação de rua nas portas de suas casas, vivem à mercê do que a mídia tradicional e os governantes falam sobre elas.
Nice vive o outro lado, porque testemunha todos os dias a violência sofrida por quem mora na rua, e constrói com elas estratégias para reduzir os danos do sofrimento causado pela atual política de drogas. Quando jogam bombas na rua do seu bar, ela fecha as portas para proteger a si e a família do gás da polícia. Por vezes ofereceu o bar como abrigo para quem passava frio na rua. Seu bar também é um espaço de cultura para as pessoas a quem até isso é negado, abrigando eventos como o Pagode na Lata.
A Nice, em dado momento da entrevista nos perguntou, como se perguntasse a si mesma, “quem é seu escudo aqui?”. E com tudo o que disse, o que fica é que ela mesma é um escudo para os seus, resistindo aos escudos da polícia.
Veja em: https://outraspalavras.net/desigualdades-mundo/quem-e-a-cracolandia/
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