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Racismo contra indígenas é alimentado o tempo todo, diz artista do povo Yepá Mahsã

 

Por: Letícia Mori

A crise de saúde no território yanomami é um retrato do tamanho do desafio que o movimento indígena tem ao assumir o Ministério dos Povos Originários: lidar com violências resultantes de séculos de desumanização, diz a ativista Daiara Tukano, do povo Yepá Mahsã (conhecido como Tukano), mestre e pesquisadora em direitos humanos e uma das principais artistas indígenas da atualidade.

“É um momento muito especial, mas ao mesmo tempo é muito desafiador para o próprio movimento indígena assumir esses lugares (no Executivo) porque os movimentos sociais estão ali para questionar o Estado, para demandar políticas públicas”, reflete ela.

“É um processo muito duro de construção desses direitos civis, da compreensão de que os povos originários também são humanos e portanto também temos direitos a serem respeitados.”

Ela afirma que a forma como os indígenas sempre foram — e continuam sendo — representados na arte é parte central desse processo de desumanização que resulta em tragédias.

“O racismo é alimentado dentro de casa, na escola, nas mídias o tempo inteiro”, diz a artista, que foi destaque na 34ª Bienal de São Paulo, foi tema de mostras na Pinacoteca, no Masp e no Museu Nacional da República e agora passou a ser representada comercialmente pela galeria Millan, em São Paulo, onde inaugura neste sábado a mostra Amõ Numiã.

“Se esse racismo, essa violência continuam acontecendo no território, se essas pessoas são assassinadas, é porque a arte no livro de história, na escolinha, no museu, te diz que índio bom é índio morto ou ajoelhado diante de uma cruz”, diz Daiara em entrevista à BBC News Brasil.

A artista hoje mora em Brasília, mas nasceu em São Paulo quando sua família — do povo Yepá Mahsã, da região do alto Rio Negro, na tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Venezuela — estava na cidade para a mobilização indígena para a Assembleia Constituinte de 1987-1988.

Hospedada na capital paulista para criar obras exclusivas para sua mostra, Daiara conversou com a BBC News Brasil, entre outras coisas, sobre as narrativas femininas na cultura Tukano, o uso de ayahuasca por não indígenas, a crise yanomami e o papel dos museus no processo de colonização e genocídio dos povos das Américas.

Leia abaixo trechos selecionados da entrevista.

Fotografia colorida mostra um manto vermelho feito de pluma em volta de uma figura com um espelho no rosto
CRÉDITO, LEVI FANAN/FUNDAÇÃO BIENAL DE SÃO PAULO. Legenda da foto: A obra Kahtiri Éõrõ – Espelho da Vida foi exibida na 34ª Bienal de São Paulo

BBC News Brasil – A gente tem visto mais exposições de artistas indígenas em mostras e museus que historicamente mostraram povos originários na visão do branco europeu ou a arte indígena em museus etnográficos. E agora você está sendo representada por uma galeria comercial. Como é essa relação?

Daiara Tukano – A arte tem uma importância política, ela constrói narrativas. A maneira como os povos indígenas foram representados antes mesmo de serem conhecidos… como aqueles seres dos quais não se reconhece humanidade durante tantos séculos. Você vê aquelas gravuras de 1500 mostrando indígenas como se fossem monstros demoníacos. A construção da imagem desse povo originário no imaginário serve para justificar os processos coloniais inclusive dentro da própria Europa. Serve para reforçar essas dinâmicas de violência e de poder. Esta construção está em todos os museus. Até porque o museu também nasce do processo colonial — nasce desses gabinetes de curiosidades, que é o lugar onde se colocam os troféus de guerra dos povos que foram subjugados. Essa representação faz parte do processo de genocídio contra os povos das Américas, que foram literalmente dizimados.

Então os museus são espaços a serem retomados. A gente usa muito essa palavra “retomar”. Agora todos os espaços são nossos também e a gente tem que ter muita coragem para entrar neles, porque não foram feitos para nós. Eles são cheios de armadilhas para fazer você entrar nessa onda de achar que a nossa arte é menor. Foram construídos para nos negar.

Essa imagem de que índio bom no Brasil é morto ou ajoelhado na frente da cruz já deu. Agora a gente está em pé e ninguém vai ficar tratando a gente desse jeito. A gente tem que escancarar as portas do museu, porque são espaços extremamente coloniais. A gente tem entrado nesses espaços para questionar e jogar na cara da galera, é um movimento de constrangimento. Não só no sentido de falar “olha, nossa arte tem valor”, mas de evidenciar que existe uma dinâmica de poder colonial dentro desses espaços e que isso não é mais aceito.

Foi muito esforço e muito diálogo para poder chegar nesse espaço, e chegar na galeria faz parte disso. É mostrar que nós continuamos aqui, nós somos a prova viva que essa colonização não é plena, não é completa.

Ainda tem mais de 300 culturas indígenas no Brasil, são quase 200 línguas vivas e cada cultura, cada povo, cada língua é um universo tão completo, tão complexo, tão antigo e tão legítimo como qualquer outro.

Fotografia colorida mostra arte urbana na lateral de um prédio que mostra
CRÉDITO, CAIO FLÁVIO REIS NOGUEIRA/DIVULGAÇÃO. Legenda da foto: Daiara Tukano é autora do maior mural urbano do mundo feito por um artista indígena, em Belo Horizonte

BBC News Brasil – Você falou das armadilhas e recentemente teve um episódio no Theatro Municipal de São Paulo em que você não conseguiu fazer o que queria. Como foi isso?

Tukano – Em 2022 a gente teve os 100 anos da Semana de Arte Moderna, que marca o modernismo no Brasil e que é um momento muito importante dentro das artes brasileiras porque é a construção da visão de um Brasil moderno sobre si mesmo. Meu trabalho, do Jaider (Esbell importante artista makuxi morto em 2021), a gente bateu muito nos modernistas, Mário de Andrade, Tarsila do Amaral — essa galera que era uma elite branca e urbana que se apropriou da figura do índio, que pegou aquilo tudo como uma espécie de fetiche exotizante.

As artes indígenas sempre foram muito apresentadas usando como referência os parâmetros do modernismo. Mas nada do que eu faço está baseado em está baseado na Tarsila do Amaral, nos Andrade. Nosso trabalho parte da nossa narrativa, de nosso povo, de nossa história, de nosso pensamento. Não parte a partir da narrativa do branco. Então tem essa questão e outras questões que o povo está começando a entender.

Eu fui convidada para participar de uma exposição que marcou a Semana de Arte Moderna no Theatro Municipal de São Paulo.

Eu cheguei naquele salão dourado, que é obsceno, porque esse ouro vem da terra indígena, esse ouro marca a história do genocídio nas Américas e na África. Até hoje a gente tem 80 mil garimpeiros na terra yanomami e outros milhares na terra munduruku, no Pará. A gente tem populações inteiras que foram devastadas pela febre do ouro, essa doença do ouro, que é a doença do branco.

Lá tinha esse quadro de um pintor neoclássico que foi pintor oficial do Estado e fez aquela cena de teatro grego, ruínas gregas, uns atores grego, um burro entediado e umas pessoas assistindo… Me convidaram para fazer uma releitura dessa tela — que tem dez metros de largura e que ocupa o teto todo. Eu falei para a curadora: se você quer que eu faça uma releitura de uma tela que tá num salão dourado, eu quero pelo menos fazer uma do mesmo tamanho. Mas o orçamento ficou muito alto, porque a sala é toda tombada, não pode encostar em nada, teria que criar uma estrutura.

Eu falei, ok, então me dá o chão, me dá uns espelhos, eu desenho nos espelhos. Mas o chão também não poderia, porque é um tapete dos irmãos Campana etc etc.

Aí eu fui lá na papelaria Kalunga, comprei um rolo de papel Kraft, estendi aquele rolo e comecei a fazer uma carta em formato de cobra. Na montagem eu pedi para colocar a carta na escadaria. Eu li e o pessoal ficou emocionado, porque era uma fala que contestava todos esses espaços de poder.

Eu fiz usando o material mais barato, mais frágil e menos valorizado naquele salão dourado. Tinha muitas obras que queriam ser celebradas e a única que não estava correndo atrás dessa glória era eu com meu papel craft e meu canetão vermelho. A cobra depois ficou pendurada em volta das outras obras e ela é tão frágil que o pessoal foi caminhando por cima e foi rasgando. O pessoal do museu tentava juntar os pedaços, mas não lia e ficava trocando as palavras de lugar. O pessoal ficava olhando para aquele dourado do salão e nem presta atenção no que está no chão — é uma uma leitura de como nós andamos num mundo mesmo. A gente não olha o que está no chão e o que está realmente globalizado hoje é o lixo.

Fotografia colorida mostra um padrão vermelho, verde, azul, amarelo, laranja e branco feito com plumas
CRÉDITO, LEVI FANAN/FUNDAÇÃO BIENAL DE SÃO PAULO. Legenda da foto: Um das obras da série Dabacuri no Céu, exibida na 34ª Bienal de São Paulo

BBC News Brasil – Você citou os yanomami. A crise de saúde dos yanomami é uma situação que tem sido denunciada há muito tempo, mas ganhou maior repercussão com a atenção dada pelo novo governo. O que essa diferença de tratamento mostra?

Tukano – A situação é dramática desde o momento do contato. Agora estamos em um momento de virada histórica em que finalmente o Estado brasileiro não poderá mais ser omisso, pois existe um órgão do Poder Executivo que é o Ministério dos Povos Originários, não mais somente a Funai.

Até 1979 nós éramos considerados totalmente incapazes. Na Constituinte teve uma participação indígena muito expressiva. Teve a figura do Mário Juruna como o primeiro deputado indígena, teve o (cacique) Raoni, teve o Ailton (Krenak) que defendeu essa pauta ao longo dos anos 1970.

A Constituição então garantiu o direito à nossa cultura e ao nosso território, porque os dois são interdependentes. A cultura só existe por conta do território e o território só se mantém também por conta da cultura. O Estado assumiu o compromisso de demarcar os territórios, mas isso nunca foi feito. A maior parte dos territórios demarcados está na Amazônia, mas existe uma população indígena enorme no Nordeste, Sudeste, Sul e Centro-Oeste que ficam de fora e até hoje sofrem esbulho.

E a disputa por terra gera uma série de violências e inegáveis e violentíssimas, terríveis. A situação de muitos povos é praticamente uma situação de guerra. Por exemplo, a situação dos Guarani Kaiowá em Mato Grosso do Sul: é quase a Faixa de Gaza do Brasil. Você tem populações enormes à beira da estrada e levando é bala cotidianamente. Há crianças e idosos, todo mundo sendo violentado constantemente.

Com a criação do Ministério dos Povos Originários, essa situação ganha uma visibilidade maior, chega mais à população. Porque tem uma ministra que dá visibilidade.

Tem outra dimensão o Estado admitir que existe, sim, um estado de calamidade pública de extrema violação dos direitos humanos que acontece secularmente no Brasil e pelo qual somos todos responsáveis.

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