Perfil dos “trabalhadores de app” em Transporte e Entrega: são homens não-brancos. Recebem menos de 1,5 salário. Têm menos de 40. Metade dos mototaxistas estão no Nordeste. E, em três meses, quantidade de entregadores cresceu 21%
Por: Anderson Alves Esteves e Marcelo Phintener | Imagem: Getty Images
Os trabalhadores de aplicativos ou de startups, cujo tipo de trabalho é contratado, sem vínculo empregatício, por meio de plataformas digitais – que prometem “conectar usuários a prestadores de serviços” –, foram os primeiros a sentir no bolso, no corpo e na alma os efeitos da Reforma Trabalhista, sobretudo aqueles vinculados ao setor de transporte de passageiros e de mercadorias em empresas como Uber, Rappi, iFood e 99Taxi.
Antes da contrarreforma ser implementada pelo Congresso Nacional – sob a Lei nº 13.467, de 2017 – o poder empresarial, como argumentou em artigo o historiador João Bernardo, já havia se antecipado e aplicado aos trabalhadores o que seria efetivado pela supracitada lei, principalmente a partir de 2014, quando chega ao Brasil a Uber, uma gigante do transporte particular que emprega motoristas sob relações de trabalho sem contrato firmado, ou seja, sem direito a salário mínimo e à proteção social.i
A partir do relatório da McKinsey Global Institute, a revista The Economist noticiou que “162 milhões de pessoas na América e na Europa, ou mais de 20% da população em idade ativa, trabalham fora do emprego normal”.ii Em outras palavras, estão na economia da informalidade – e esta é, pois, a dinâmica do “compartilhamento de carona pago” e das empresas de entrega, dois ramos de atividadea compor a chamada gig economy, ou, na linguagem do dia, a economia dos bicos, a qual está associada a formas laborais precárias, estabelecendo relações de trabalho sob demanda e temporária.iii
Essa atividade econômica baseada em aplicativos – que vão do setor de transporte e delivery ao de alojamento, entretenimento e serviços gerais – é baseada na ideia de freelance, onde o pagamento realizado por hora, corrida ou entrega reduz os custos da produção através do barateamento da mão de obra. Em essência, é uma versão do toyotismo levada às últimas consequências: um modelo concatenado à acumulação flexível de capital que vinca-se, entre outros fenômenos, pela diminuição da utilização do trabalho vivo no processo produtivo – e pela disponibilização de serviços a nichos de mercado que, para tornarem-se lucrativos, demandam mais precarização, mais informalidade e a fusão entre mais valias absoluta e relativa, amalgamando o moderno e o arcaico (Oliveira, 2003) e revestindo a neomarginalização social (Antunes, 2009, p. 234) ideologicamente como “empreendedorismo”. Os desempregados e os não empregáveis, então, tornam-se “autônomos”.
Este artigo visa analisar as relações laborais da gig economy, apesar das dificuldades de mensuraçãoiv. Para isso, consultamos os microdados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Continua (PNADC/IBGE), 3º trimestre de 2022, e filtramos a Classificação de Ocupações para Pesquisas Domiciliares e a Classificação Nacional de Atividades Econômicas Domiciliar (CNAED), a partir dos quais identificamos e localizamos atributos dos trabalhadores de app, como ocupação, idade, sexo, cor/raça, qualificação laboral, rendimento etc.
Os predicados para caracterizar o perfil desse trabalhador ocupado se encontra nos microdados da PNADC/IBGE identificado no regime por Conta Própria e no grupo de atividade econômica Transporte, armazenagem e correio, especificamente nas atividades de transporte rodoviário de passageiros, transporte rodoviário de carga e atividades de malote e de entrega. É importante ressaltar que, como a PNADC/IBGE não está desenhada para captar grupos ocupacionais específicos, o coeficiente de variação de qualquer estimativa pode oscilar. Além disso, este estudo se baseia em duas pesquisas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) – de 2021 e 2022 – para estimar o universo de “trabalhadores de aplicativos”.v
Vamos, então, a alguns dados. A PNADC/IBGE captou 5,3 milhões de trabalhadores vinculados ao setor de Transporte, armazenagem e correio, sendo 31% (1,6 milhão de pessoas, conforme Tabela 1) trabalhadores em plataformas digitais atuando em regime de conta própria. Deste universo, como também mostra a Tabela 1, quase 1 milhão trabalha como motoristas de aplicativos e de taxista, representando 62% da força de trabalho. O segundo maior contingente de trabalhadores se encontra na ocupação de motoboy, com mais 319 mil pessoas, seguido de mototaxista e outros entregadores (de bicicleta ou de carro): respectivamente, 224 mil e 62 mil trabalhadores.
Quando se compara com o terceiro trimestre de 2021, segundo informações do Ipea, com base nos microdados da PNADC/IBGE do período, há um crescimento de 4% de trabalhadores na chamada gig economy, passando de 1,5 milhão em 2021 para 1,6 milhão em 2022. E, na comparação trimestral entre as ocupações, o maior crescimento ocorre na função de entregadores, por meio de bicicleta ou de carro, e por motocicleta, respectivamente, 21% e 7% de trabalhadores. No caso do transporte de mercadorias, em particular a entrega de comida, uma reportagem da Época Negócios, (dezembro/2021) revelou que só a Ifood emprega, em regime de conta própria, mais de 200 mil trabalhadores de entrega, ou seja, 62% do universo pesquisado. Tem-se, aqui, um exemplo acabado do toyotismo, quando a empresa, para acumular capital e explorar a força de trabalho, administra uma massa de trabalhadores sem precisar concentrá-los no mesmo espaço físico.
A distribuição regional dos trabalhadores de app pelo Brasil revela que a região Sudeste (Tabela 2) concentra percentual acima de 50% desta mão de obra, no caso de motoboys e motoristas de aplicativo e taxista. Os dados confirmam a presença mais generalizada de atividades relacionadas a gig economy em cidades, particularmente em áreas metropolitanas, onde o tecido econômico é mais desenvolvido. A Uber, por exemplo, emprega globalmente (e à margem da legislação trabalhista e social) mais de 5 milhões de motoristasvi, – e a América Latina foi uma das principais regiões que a corporação se expandiu nos anos.vii Uma síntese, portanto, da ascensão da gig economy nas remodelações do capitalismo: inicia-se onde ele está mais avançado e, em razão da luta trabalhista, as plataformas são obrigadas a conceder direitos (como aconteceu no Reino Unidoviii) e/ou se expandir para outros países.
Sigamos com a Tabela 2, que aponta que os mototaxistas têm expressiva presença na região Nordeste, representando 51% dos profissionais dessa categoria.
Este setor de atividade econômica tem uma força de trabalho predominantemente masculina, cuja média de idade é de 36,7 anos, sendo o motorista de aplicativo e de táxi o profissional com idade mais avançada, conforme ilustram as Tabelas 3 e 4. No atributo cor/raça, observado na Tabela 5, percebe-se a predominância de pretos/pardos/indígenas entre os mototaxistas, ao passo que para os demais profissionais o percentual é próximo dos 57%.
Acerca da habilidade das pessoas ocupadas – o parâmetro é o aprendizado em sala de aula, ou seja, a escolaridade formal –, tratam-se de trabalhadores com qualificação de nível médio. Conforme reportado na Tabela 6, a qualificação média está distribuída acima de 50%, sendo quase 70% para os motoboys. Na PEA total que é ocupada, 43% dos trabalhadores têm a qualificação em questão. Entre os mototaxistas, há maior percentual de ocupados com baixa qualificação (quase 45%), ao passo que o nível de qualificação mais elevado se encontra entre os motoristas de aplicativos e taxistas (20%). Para o quesito rendimento mensal médio (Tabela 7), as estimativas indicam que os motoristas de aplicativos e taxistas possuem os melhores ganhos. São R$ 2,2 mil recebidos por mês no terceiro trimestre de 2022, seguidos pelos motoboys, com rendimento mensal de R$ 1,7 mil. Os mototaxistas recebem por mês R$ 1,1 mil, valor inferior ao salário mínimo vigente em 2022, que é de R$ 1,2 mil. O rendimento médio mensal para o total da PEA ocupada, no mesmo período, é de R$ 2,7 mil.
A qualificação, tanto quanto o rendimento e a jornada semanal de trabalho, que é, em média, acima de 40 horas (Tabela 8), evidenciam como o setor de transporte de passageiros e de mercadorias desenvolve seus mecanismos de produtividade, ou seja, para garantir a acumulação de capital, atrai um contingente de trabalhadores com média qualificação, oferecendo-lhe baixas remunerações e impondo longas jornadas de trabalho. Os aplicativos ou startups, formas de trabalho que vêm remodelando a economia, que terceirizam a entrega de mercadorias e o transporte de passageiros e, burlando as legislações trabalhistas, vivem à custa da condição de riscoix e insegurança, sobretudo a econômica, a que submete os trabalhadores, vendendo-lhes a ilusão de que podem ser independentes e não ter patrão.x A presente reflexão exemplifica como o capitalismo, notadamente em sociedades periféricas, tal como o Brasil, tem expandido, por meio de tal remodelação econômica, a precariedade laboral para o conjunto da classe trabalhadora, em termos de condição de trabalho, remuneração, formas de controle e disciplina.
Veja em: https://outraspalavras.net/trabalhoeprecariado/um-retrato-do-proletariado-digital/
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