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WikiFavelas: Como as favelas pensam o racismo

No Dicionário Marielle Franco relatos de moradores das periferias sobre a questão racial. Para quem vive na pele, preconceito vê classe, CEP e religião – e no agir das polícias. A escola, atravessada pela cultura negra, pode ser lugar de conscientização

Manifestações de racismo têm ocorrido, com frequência assustadora, em diversos cantos do mundo, evidenciando a presença inequívoca da discriminação que se perpetua e reproduz desde as situações menos evidentes do dia a dia até os gritos escancarados de torcidas que ecoam em grandes estádios de futebol. No Brasil, só nos dois primeiros meses de 2023, houve 1.433 violações registradas, mais do que o dobro de denúncias feitas no primeiro semestre de 2022. Diante desse contexto, fica a interrogação: o aumento do números de casos conhecidos de racismo seria um indicador positivo da existência de mecanismos mais eficazes de registro de casos antes não notificados ou, de fato, a conjuntura política nos últimos anos contribuiu para o encorajamento de práticas e comportamentos racistas? Se considerarmos estes números alarmantes, existe realmente um complicador: não há padronização nos registros de casos de discriminação racial no Brasil; cada estado trata o racismo de forma diferente e tem métodos próprios de registrar. A falta de normatização desses dados pode levar à subnotificação e, consequentemente, à dificuldade de estabelecer políticas públicas de combate aos crimes de racismo e injúria racial.

Mas, quando o assunto é o preconceito racial, a mesma situação de falta de regras de padronização dos registros não se verifica só no Brasil. No mundo dos esportes, em especial do futebol, cada país adota uma política diferente para lidar com o problema. Ou seja, o racismo atravessa fronteiras e as punições são escassas. Em tempos recentes, na Europa, a Liga Nacional de Futebol Profissional da Espanha (LaLiga) apresentou 13 denúncias, ainda sem nenhuma responsabilização (incluindo 9 relacionadas ao jogador Vinicius Junior). Na Inglaterra, onde houve 183 denúncias de racismo nos últimos dois anos, foi adotado o plano “No Room for Racism”, um sistema mais rígido de punições, incluindo multas milionárias. Na Alemanha, um clube (o Schalke) foi multado em 50 mil euros por cânticos racistas de sua torcida, na Copa da Alemanha em 2020, enquanto outros episódios ficaram sem punição. Na França, um torcedor foi sentenciado com prisão e afastamento dos estádios após fazer gesto nazista.

Para mencionar só alguns casos de discriminação racial em 2023 – dentro e fora dos esportes – que ganharam maior repercussão no Brasil ou relacionados a brasileiros no exterior, a lista já é extensa. No início de junho, alunos do ensino fundamental de um colégio particular no Rio de Janeiro, na Zona Norte, gravaram vídeo onde fazem ofensas racistas e homofóbicas contra dois professores. A direção suspendeu os estudantes e acionou o Conselho Tutelar. Em maio (dia 31), as influenciadoras Kérollen Cunha e Nancy Gonçalves (mãe e filha), passaram a ser investigadas por crimes de racismo ou injuria racial após compartilharem vídeo no TikTok, no qual aparecem entregando banana e macaco de pelúcia para crianças negras abordadas na rua. Ambas possuem cerca de 13 milhões de seguidores nessa rede social. Ainda em maio (dia 21), veículos da mídia brasileira e internacional noticiaram os xingamentos racistas sofridos pelo jogador brasileiro Vinícius Junior, do Real Madrid, em partida contra o Valencia, na Espanha; no jogo, além dos gritos da torcida, Vini Jr. também foi vítima de ações discriminatórias e omissas por parte da arbitragem e da Liga Nacional de Futebol Profissional da Espanha. Mas o caso só explodiu na imprensa após a repercussão do pronunciamento de autoridades brasileiras, incluindo o presidente da República Luís Inácio Lula da Silva. Até então, já havia nove denúncias de ataques racistas, fartamente documentadas contra o atleta, incluindo um episódio em que torcedores de um time rival simularam o enforcamento de um boneco com nome do jogador, fazendo alusão a “era dos linchamentos” contra a população negra, com ápice entre 1890 e 1930 nos Estados Unidos. Em abril, no domingo de Páscoa, a ex-jogadora de vôlei Sandra Mathias chicoteou, com a coleira do seu cachorro, o entregador Max Ângelo dos Santos e deu tapas na também entregadora Viviane Maria Souza – ambos negros – no bairro de São Conrado (RJ). Morador da Rocinha, Max relatou ter sido chamado de “preto da favela” e registrou o caso na delegacia como injúria. Sandra negou as agressões e o caso segue sendo investigado. Em fevereiro, duas moradoras de um prédio no Centro do Rio denunciaram racismo por parte de uma vizinha, que gritava insultos racistas diariamente e fazia ameaças de agressão física. Luana Rolim, estudante de medicina veterinária, e Etiene Martins, doutoranda em Comunicação, denunciaram o caso à síndica, que não tomou providências. O caso está sendo investigado pela Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância.

O debate teórico sobre racismo também ganhou novo capítulo recentemente, quando o intelectual negro e professor emérito da UFRJ Muniz Sodré concedeu entrevista à Ilustríssima, da Folha de São Paulo, na qual criticava o conceito de racismo estrutural, tornado conhecido por meio do livro Racismo estrutural, de autoria do ministro de Direitos Humanos Sílvio Almeida, também intelectual negro. Na ocasião, Sodré explicou o argumento que desenvolve em seu livro O fascismo da cor, segundo o qual o racismo no Brasil é institucional e intersubjetivo, mas não estrutural, por lhe faltar ordenação escrita em lei ou padronização em costumes publicamente reconhecidos. A crítica despertou inúmeras reações, que ressaltaram que o conceito de estrutura não se restringe ao Estado ou a organizações formalmente constituídas, podendo se expressar como um conjunto discursivo estável ou um sistema simbólico implícito.

No Brasil, país onde mais da metade da população se declara preta ou parda (56,1 % da população brasileira, segundo o IBGE/2022) e onde as favelas concentram uma proporção maior de negros do que a média brasileira (ou seja, 67%, de acordo com o Data Favela/2022)[1], importa, e muito, saber como a população residente nesses espaços percebe o racismo. Essa é a abordagem do verbete Racismo na favela: Como os Moradores Entendem o Preconceito Racial (artigo), escrito por Gracilene Firmino e Amanda Botelho, jornalistas, nascidas e criadas em favelas do Rio de Janeiro. Cientes de que “o racismo existe e está enraizado na sociedade, ancorado em falas, comportamentos, atitudes, sistemas e narrativas que excluem e matam pessoas negras”, elas foram movidas pelo interesse em conhecer melhor sobre o que pensam e sentem, em relação ao preconceito racial, seus vizinhos ou pessoas de outras favelas da cidade. Afinal, moradores das favelas cariocas já somam cerca de 2.144.000 habitantes (Censo IBGE/2010).

Na visão de entrevistados na Rocinha, Complexo do Alemão e Cidade de Deus, a percepção do racismo nas favelas abrange a concepção de racismo de cada um, além de como este preconceito se manifesta em relação às pessoas residentes – no que diz respeito a quem sofre e quem pratica a discriminação. Quanto ao que é racismo, há consenso sobre se tratar de uma forma discriminatória e desigual da alteridade pela “cor da pele”, para muitos associada a outros elementos como a classe social, o endereço e a religião; a maior parte concorda que está presente “em todos os lugares”, mas alguns acreditam que se apresente mais fortemente no Brasil. Mencionam também a percepção de envolver diferentes violências por meio de ações concretas e simbólicas, interligadas a um sistema de poder “estrutural (e estruturante), individual e institucional”.

Quando pensam em quem sofre e quem pratica o preconceito racial à sua volta, apontam sentimentos em comum e concordam em relação aos protagonistas da violência racial. Sobre os últimos, o Estado, por meio das forças policiais, é identificado como o principal ator da violência contra a população das favelas. Já quando o assunto é o racismo sentido na própria pele, ressaltam que o peso sentido nas favelas é maior, por conta da soma dos marcadores de raça e classe social (já que são “pretos e pobres”). Por exemplo, em um episódico citado, amigos brancos e negros foram parados em uma batida policial na Rocinha, mas apenas os pretos foram revistados. Além disso, surge nessas falas também o racismo enquanto elemento simbólico associado à representação dos territórios favelados, no imaginário social, como lugares habitados majoritariamente por criminosos. No caso do Rio de Janeiro, tais estereótipos têm sido alimentados por discursos do poder público e da imprensa desde o surgimento das favelas, no fim do século XIX, como demonstram diversos estudos históricos e científicos.

Portanto, as falas desses moradores levam a pensar na necessidade de compreender o racismo, do ponto de vista das favelas, a partir de uma perspectiva interseccional que combina diferentes fatores. Mas nem sempre há consciência por parte dos moradores desses espaços sobre todas essas opressões sofridas, conforme também destacam as autoras do artigo (e do verbete). A educação é apontada como dimensão importante neste contexto, por meio da qual práticas racistas podem ser identificadas, pensadas e combatidas.

A partir desta perspectiva, pode-se estabelecer um convite a um breve diálogo com o pensamento do sociólogo Florestan Fernandes, de modo a complementar o panorama de estudos (alguns aqui mencionados) mais recentes já oferecidos por autores e pesquisadores negras e negros no Brasil. Dedicada não só à compreensão do Brasil, no contexto do pensamento social brasileiro, mas aos estudos sobre a questão racial e à constituição do racismo em nosso país, bem como a subsídios às lutas contra a discriminação de negros e negras, os escritos de Florestan, principalmente do fim da década de 1980, podem contribuir para lutas antirracistas nas favelas. Não é demais lembrar que muito da trajetória biográfica do sociólogo corresponde ao seu comprometimento não apenas com as ciências sociais, mas com a educação, a luta dos de baixo e os negros, conforme lembra Ronaldo Tadeu de Souza. Portanto, há desdobramentos prático-políticos de sua interpretação sobre o problema racial brasileiro.

No que diz respeito a esse tema, Florestan se preocupa com a efetiva democratização da sociedade brasileira – e suas estruturas de organização – a partir do pós-escravidão. Mas suas pesquisas mostram exatamente os impedimentos à essa democratização. Assim, argumenta se tratar de uma sociedade que se orienta social, cultural, política e economicamente contra a democratização – portanto contra os negros. Diante desse fato, dois aspectos podem ser destacados: a necessidade da negação e, portanto, da tomada de consciência da inexistência da suposta democracia racial no Brasil, bem como da manutenção de todos os privilégios dos brancos daí decorrentes; e a aposta de que a mudança desse estado de coisas, só será possível por meio do protagonismo da população negra na luta radical pela transformação das relações de raça e classe em nossa sociedade. Para Florestan, é necessária “uma radicalidade revolucionária” (Significado do Protesto Negro, 1989), ao movimento negro para derrota do racismo e construção de uma sociedade verdadeiramente democrática. Ou seja, nessa perspectiva, a efetivação da democracia no Brasil, em seus diversos sentidos, virá por meio das lutas em torno da questão racial. (Introdução: Kita Pedroza)

 

Veja em: https://outraspalavras.net/descolonizacoes/wikifavelas-como-as-favelas-pensam-o-racismo/

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