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WikiFavelas: Um novo olhar para o direito ao saneamento

Dicionário Marielle Franco apresenta o Cocôzap, projeto que aposta na geração cidadã de dados para denunciar a rede de esgoto e água precária – ou inexistente. Em diálogo com as comunidades, recebe denúncias e propõe políticas públicas

Por: Arthur William Santos e R Ramires | Créditos da foto: Mistério Filmes. Vinícius e Victoria, coordenadores do Cocôzap, projeto de geração de dados do Data Labe

Saneamento básico é uma das principais questões das periferias urbanas de todo o país. Contudo, apesar dos diversos projetos do poder público para tentar garantir este direito, os moradores das favelas ainda continuam a conviver com problemas como esgoto na porta de casa, o que evidencia a insuficiência e descontinuidade dos investimentos no saneamento das favelas e periferias.

Para dar visibilidade a este tema e cobrar providências das autoridades, moradores costumavam recorrer à mídia tradicional ou à comunicação comunitária. Agora, com a apropriação das ferramentas digitais, os próprios favelados se organizam para mapear os casos críticos em seus territórios através da “geração cidadã de dados”.

E não param por aí. A partir do diagnóstico, os movimentos sociais conseguem propor políticas públicas diretamente para os gestores públicos, além de influenciar o aprimoramento de metodologias de coleta de dados sociais em favelas por parte das entidades responsáveis pelas estatísticas oficiais do Estado, como no caso do Censo. Recentemente, o IBGE convocou organizações de favelas para discutir novas formas de realizar pesquisas estatísticas nestes territórios.

Uma das principais iniciativas da geração cidadã de dados no contexto do saneamento básico é o “CocôZap”, projeto do “Data Labe”, um laboratório de dados com atuação no conjunto de favelas da Maré, zona norte do Rio de Janeiro. Nesta semana, o Dicionário de Favelas Marielle Franco destaca, aqui no Outras Palavras, o verbete “CocôZap” da plataforma Wikifavelas.

O CocôZap nasceu em 2016 e promove uma metodologia inovadora por dois motivos: tem como base um laboratório de dados (Data Labe) e é pensado pelos próprios moradores da Favela da Maré. De lá para cá, houve a aprovação do Novo Marco Legal do Saneamento Básico (Lei n.º 14.026/2020) e outras iniciativas se somaram nestas articulações da sociedade civil organizada. Uma delas é a Rede de Vigilância Popular em Saneamento e Saúde, criada em 2022 após a privatização da empresa responsável pelo abastecimento de água na região metropolitana do Rio de Janeiro. Entre outras ações, esta rede atua no levantamento de dados sobre o abastecimento em favelas e territórios periféricos.

Além dos problemas sociais consequentes da privatização, há os impactos ambientais que, em seus desdobramentos, revelam recortes de raça e classe em suas incidências. Territórios majoritariamente populados por pessoas negras são os locais com mais descaso por parte da gestão pública, algumas regiões vivem completo abandono: a este fenômeno nomeia-se o racismo ambiental, como ilustra Rita Maria da Silva no artigo “Racismo ambiental deveria ser crime“, que também é um verbete do Dicionário de Favelas Marielle Franco. Outros verbetes da Wikifavelas também denunciam os riscos da privatização do saneamento nas metrópoles brasileiras, como por exemplo: “As mulheres contra os negócios da água” e “Água não é mercadoria

O racismo ambiental compõe também a análise de uma conjuntura de “injustiça ambiental, um conceito que “articula movimentos ambientalistas desenvolvidos nas últimas décadas com diversas lutas sociais, antirracistas, étnicas e feministas”.

Outro projeto de destaque ocorreu durante a pandemia de covid-19 no Morro Santa Marta. Moradores desta favela da zona sul carioca organizaram uma sanitização nos becos e vielas da comunidade, evitando a proliferação do coronavírus. Por conta da inatividade do poder público, o protagonismo ficou sob responsabilidade da sociedade civil, que recebeu doações para executar seu trabalho. Já em em 2022, uma cooperativa da comunidade Vale Encantado, situada na Floresta da Tijuca (Rio de Janeiro-RJ), inaugurou um biossistema para tratar o esgoto da comunidade.

Neste segundo semestre, o Dicionário de Favelas Marielle Franco está organizando um ciclo de debates sobre “Produção de conhecimentos e memórias em favelas e periferias” em parceria com diversas instituições: BONDE (IESP-UERJ), CIDADES-Núcleo de Pesquisa Urbana (PPCIS-UERJ), Grupo Casa (IESP-UERJ), Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial (IDMJR), Instituto Raízes em Movimento e Radar Saúde Favela (Fiocruz). Essa iniciativa mostra uma mudança importante na visão sobre o “locus” privilegiado na produção de conhecimentos, tradicionalmente atribuído à Academia. A Academia quer ouvir moradores de favelas e periferias que estão envolvidos na produção de conhecimentos e preservação da memória em seus territórios. Dentre os assuntos abordados nos quatro encontros, encontra-se a atuação da Geração Cidadã de Dados nas pautas da Infraestrutura e do Meio Ambiente.

A memória das favelas é outro tópico que ajuda na avaliação das atuais políticas públicas e na proposição de novas ações do Estado. Registrar e discutir a memória das favelas são ações fundamentais para a avaliação de políticas públicas, como as de saneamento básico, por exemplo. Fotos, vídeos e relatos de moradores contam muito mais do que os relatórios burocráticos dos órgãos estatais e demonstram a real efetividade de programas governamentais nestes territórios ao longo das últimas décadas. A apropriação das ferramentas de organização desse material pelos movimentos sociais é justamente um dos objetivos do Curso de Acervos Marielle Franco, promovido pela equipe da Wikifavelas em parceria com o ICICT/Fiocruz. (Introdução: Arthur William Santos R Ramires, pesquisadores do Dicionário de favelas Marielle Franco)

O Cocôzap

[Projeto do data_labe de geração cidadã de dados[1] a partir de denúncias sobre os problemas de saneamento básico no conjunto de favelas da Maré, Rio de Janeiro]

Origem do projeto

Mapa nome das favelas – Foto: Acervo Cocôzap

A região que engloba o Conjunto de Favelas da Maré teve sua origem na década de 1940, sendo erguida sobre palafitas em uma área de mangue, sem infraestrutura de saneamento básico e direitos adequados. O surgimento da Maré está diretamente ligado aos processos de remoção, desenvolvimento e expansão da cidade do Rio de Janeiro, iniciados no século XX, por meio de reformas urbanísticas visando modernização. A construção da rodovia BR-101, hoje conhecida como Avenida Brasil, inaugurada em 1946, levou a uma migração para a região devido à demanda por mão de obra. Posteriormente, houve também uma migração vinda do Nordeste[1].

Na década de 1980, com a implementação do Projeto Rio, uma iniciativa governamental para fornecer infraestrutura para algumas favelas da cidade, a Maré recebeu suas primeiras melhorias em saneamento. Antes disso, a coleta de esgoto e os encanamentos eram feitos manualmente pelos próprios moradores. Até então, era comum o uso do “rola-rola”, uma tecnologia criada pelos moradores em um barril de madeira adaptado para transportar água até suas casas (Relatório CocôZap, 2021).

As associações de moradores sempre tiveram um papel crucial na história da Maré, mobilizando a comunidade local. As mulheres do território foram líderes nas decisões, buscando garantir seus direitos. A Chapa Rosa, formada na década de 1980, foi a primeira chapa democrática composta exclusivamente por mulheres. É importante ressaltar que, ao longo da história, as mulheres são as mais afetadas por doenças e pela falta de acesso ao saneamento adequado. Essa mobilização resultou na conquista do acesso à luz, água e esgoto.

A falta de acesso ao saneamento adequado, junto com desigualdades raciais e sociais, resulta em racismo ambiental, afetando principalmente comunidades negras, periféricas e marginalizadas. As favelas são as mais prejudicadas por eventos climáticos, como enchentes, devido à falta de planejamento e ação governamental. A coleta de dados nas favelas é essencial para criar políticas públicas que atendam às necessidades reais da comunidade, combatendo o racismo ambiental e promovendo a justiça climática e racial.

O “Cocôzap” é uma iniciativa promovida pelo data_labe, voltada para mapeamento, incidência e promoção da participação cidadã no âmbito do saneamento básico nas favelas. O projeto tem sua atuação centralizada no Complexo de favelas da Maré, uma localidade da Zona Norte do Rio de Janeiro que abriga aproximadamente 140 mil habitantes.

Desde 2018, o grupo executor do projeto, em colaboração com instituições como a Casa Fluminense e a Redes de Desenvolvimento da Maré, tem trabalhado para estabelecer, por meio de um número específico no aplicativo WhatsApp, uma plataforma dedicada para recepção de denúncias, além de promover debates e proposições relativas ao saneamento básico, abastecimento de água e gestão de resíduos sólidos na região.

Funcionamento do Cocôzap

O mecanismo de funcionamento da iniciativa é estruturado de maneira simplificada: os moradores enviam fotos, vídeos e descrições narrativas sobre problemas relacionados ao lixo e ao esgoto para o número de WhatsApp do Cocôzap. Esta estratégia permite uma identificação precisa e ilustrativa dos desafios enfrentados diariamente em razão das desigualdades no acesso a serviços públicos essenciais. Com isso, o projeto visa construir uma base de dados robusta, servindo como ferramenta complementar para diagnósticos que auxiliem no desenvolvimento de políticas públicas fundamentadas e eficazes.

Objetivos do Cocôzap

Morador com a carta de saneamento da Maré. Foto Patrick Marinho/Data Labe

A perspectiva do Cocôzap é fomentar debates que possam intensificar a pressão por políticas mais assertivas e legitimadas, com base em evidências fornecidas diretamente pelos residentes da área afetada. Além do enriquecimento do banco de dados, são realizadas reuniões mensais envolvendo moradores, representantes de escolas, postos de saúde e associações locais, com o objetivo de promover a divulgação do canal de denúncias e incentivar uma discussão contínua sobre as questões sanitárias pertinentes ao bairro.

Como resultados concretos do engajamento e das atividades desenvolvidas, destacam-se a elaboração de uma carta-manifesto e a criação de um plano de monitoramento[2][3]. Ademais, a equipe engajada no eixo de justiça ambiental do data_labe, composta por jovens residentes na favela da Maré, tem produzido reportagens e relatos que delineiam as questões socioambientais do território, contribuindo assim para uma maior visibilidade e compreensão dos desafios enfrentados pela comunidade.

 

Saiba mais em: https://outraspalavras.net/cidadesemtranse/wikifavelas-um-novo-olhar-para-o-direito-ao-saneamento/

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