Clipping

A cilada

Ou de como conceitos como “colaborador” e “empreendedorismo”, ou estruturas como as OSs, Oscips e PPPs estabeleceram a hegemonia ideológica do capital, amarram as mãos do Estado e levam os governos de esquerda a frustrar seus eleitores

Por: biratan de Paula Santos

Desde os anos 1990, em reuniões fechadas, aqui na terra ocupada dos tupiniquins, com consultoria ativa dos “hegemônidas” do Hemisfério Norte, a corrente principal dos organizadores das estratégias de dominação resolveu, subliminarmente e depois abertamente, introduzir o termo colaborador para substituir trabalhador, empregado ou funcionário. O nome, que não consta em leis, vem ganhando terreno a passos de légua no Brasil. O objetivo posto pela estratégia no processo de constructo da hegemonia neoliberal foi o de com isso ganhar corações e mentes para a colaboração entre capital e trabalho, entre patrão e empregado/a, retirando qualquer interpretação de

classes ou de interesses, entre os que contratam e os que vendem sua força de trabalho. Atualmente até no domicilio os patrões chamam as faxineiras/os, cozinheiras/os, arrumadeiras/os de colaborador/a; Hospitais universitários, grandes redes de comercio e indústria, progressivamente adotam a nova denominação. O pretendido é que todos se sintam colaborando com os seus patrões, ajudá-los, colaborativamente, a ganhar mais, economizando sempre. Não perguntaram aos operários, bancários, comerciários, pedreiros, trabalhadores ou empregados domésticos, cortadores de cana o que achavam de mudarem de nome, trocar o nome de categoria por um genérico – todo mundo colaborador e, se possível alegre e docilmente, sem conflitos. O ferramenteiro colaborando na montagem de um caminhão na Scania, um bancário colaborando com a família Setúbal a manter os juros no cartão de crédito e no cheque especial do Itaú, o cortador de cana colaborando com os Ometto na produção de álcool e açúcar e melhor manter seus imóveis em Paris, Nova York ou Montecarlo, o faxineiro de um hospital colaborando com a Rede d’Or, com o Hospital Sírio ou Einstein ou HC, o jornalista colaborando para a rede Globo fazer as matérias que divulga. Uma beleza.

Muito embora o nome não tenha poder de mudar as relações de trabalho, não foi construído à toa, tem simbolismo. É preciso pôr fim à farsa urdida, com o esclarecimento e debate permanente com os que trabalham e vivem de salários, das razões do nome, até que convenções coletivas de trabalhadores avaliem colocar em pauta a proibição do seu uso pelos empregadores e pôr um fim a este escárnio que integra o mecanismo de dominação.

O exemplo dessa construção veio no esteio da estratégia maior de reduzir o papel do Estado e por decorrência do voto popular, forma universal, conquistada a duras penas, de poder aproximar pela urna o peso do bilionário com o do despossuído. Como não podem mais, por enquanto, eliminar eleições, fazem-nas inofensivas ao poder dos “hegemônidas” atuais.

Assim, foi sancionada em 1995 a Lei de Concessões, criadas Organizações Sociais (OS) e as Organização da sociedade civil de interesse público (OSCIP), por lei de inciativa do executivo federal em 1998, essas todas tendo à frente o autor da frase “esqueçam o que eu escrevi”, o mesmo que dizia orgulhar-se de enterrar a herança varguista (FSP, 14-02/1995, 20-08-1997), a lei das Parcerias Público Privadas (PPP), de 2004, bem como importado dos “esteites” o MBA- Master of Business Administration (Mestre em Administração de Negócios), também na década de 1990, depois veio uberização, o trabalho intermitente, as MEIs, o empreendedorismo, a pejotização do assalariado, você patrão de você.

Num regime capitalista é natural que a maior parte da atividade empresarial, econômica, seja realizada pelo setor privado, que ocorram contratos entre o poder público e o privado para compra de serviços, de obras, de materiais de consumo, pratica aliás sempre realizada no país. Também a necessidade de modernizar o funcionamento do Estado e das normativas para funcionamento do privado é de fácil compreensão. Não são essas a gerar controvérsia.

A controvérsia é que essa construção veio atender, engraxar o processo de aumento da apropriação do fruto do trabalho, pela redução dos direitos trabalhistas, pela automação e aumento da produtividade do trabalho, pela redução dos recursos e gastos do Estado para atender toda a população (para organizar e manter um sistema de saúde, de educação, de mobilidade, de assistência social, de cultura, para atividades esportivas, para orientar a produção de alimentos de qualidade e garantir o direito a uma aposentadoria digna), pelas isenções fiscais e subvenções do Estado ao setor privado em quase todos os campos, pelo pagamento da dívida pública, sem contingenciamento e a juros controlados pelo mercado. A decorrência é a de que a cada ano e década o grupo do 1% mais risco concentra mais renda e bens. Como o PIB é finito, meia dúzia de bilionários se apropriando de maior fatia do produzido pelos 108 milhões que constituem a População Econômica Ativa do Brasil, resta a essa, que envelhece, que demanda por mais cuidados, se muito, esperneio, pois esvaziadas foram também seus órgãos de representação e as categorias pelo enxugamento do trabalho formal e a desindustrialização acelerada.

Essa situação criada pelo liberalismo global turbinado a partir do final dos anos 1970 e, por aqui a partir de 1989-90, tem levado governos com discurso e programa voltados para atender as maiorias, decepcionar, entregar muito menos do necessário e prometido. Nos impérios ocidentais do Norte (EUA, Canadá e União Europeia) o que assistimos com a redução de direitos é o avanço da ultradireita que assumiu a pauta antissistema, mesmo sem o ser, uma vez que os chamados progressistas foram abduzidos politicamente pelo mercado e pela máquina de guerra do Império, como demonstra o envolvimento de países sob governos socialdemocratas em todas as empreitadas guerreiras (Iraque, Afganistão, Balcãs, Líbia, Siria e agora na operação Ucrânia).

No Brasil vimos assistindo situação semelhante, onde a expectativa criada com a interrupção do regime militar, em 1985, de que a democracia levaria a um maior e rápido atendimento aos mais necessitados, teve uma entrega muito parcial e sofre ataques permanentes para não se desviar do rumo neoliberal – persistência de privatizações/doações como a recente Eletrobrás, a do saneamento em curso, o garroteamento para que a Petrobrás pague lucros antecipados aos acionistas privados em detrimento de investimentos, autonomia do Banco Central. É preciso interromper este processo, revertê-lo e para isso repito aqui uns versos do Noel Rosa, que aprecio muito:

“João Ninguém
Que não é velho nem moço
Este João nunca se expôs ao perigo
Nunca teve um inimigo
Nunca teve opinião

João Ninguém
Não tem ideal na vida…”

Partidos, movimentos e governos voltados para atender as maiorias, os que mais precisam, devem deixar de ser João Ninguém

 

Veja em: https://outraspalavras.net/mercadovsdemocracia/a-cilada/

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