As eleições revelaram a escalada da ultradireita e rachaduras no projeto de comunidade europeia. França e Alemanha, espinhas dorsais do continente, radicalizam o belicismo. O custo: cansaço do eleitorado. “Reconstrução” da Ucrânia deve aprofundá-lo
Por: Sergio Ferrari | Tradução: Rose Lima | Crédito Foto: Yoan Valat/EPA. O presidente francês, Emmanuel Macron, em encontro com Volodymyr Zelensky, presidente da Ucrânia.
Choque político continental, tsunami na França. Um em cada quatro eleitores nas eleições parlamentares que aconteceram em todo o continente entre 6 e 9 de junho optou por forças de extrema direita. Preocupações estruturais não resolvidas – segurança, migração e queda do poder aquisitivo – às quais se somam as consequências desastrosas da guerra Rússia-Ucrânia marcam o presente-futuro de uma União desorientada.
As pesquisas anteriores sobre as tendências não estavam erradas em relação aos resultados das eleições parlamentares continentais: a direita mantém quase inteiramente a sua força; a extrema direita dá um salto em frente; enquanto liberais, socialistas, esquerda radical e verdes se esforçam para relativizar a perda, mas sem disfarçar a queda.
Na madrugada desta segunda-feira 10 e quando os detalhes dos assentos obtidos ainda estão sendo escrutinados, o grande raio-x eleitoral mostra o amplo espectro de direita, de extrema direita e de liberais com cerca de 400 eurodeputados (de um total de 720), enquanto as forças progressistas (socialistas, ecologistas, esquerda radical) ganhariam pouco mais de 220 cadeiras. O resto inclui forças que atualmente não participam de nenhum grupo parlamentar, mas que, no futuro, poderão ser alinhadas.
Nesse cenário global, surge uma primeira questão-chave: será mantida a atual aliança do governo da União entre democratas-cristãos, liberais e socialistas (que ocupou a presidência da democrata-cristã Ursula von de Leyen nos últimos cinco anos) ou será que essa nova realidade eleitoral poderia desencadear uma reorganização das alianças entre centro, direita e extrema direita? O atual bloco governista se define como marcadamente pró-europeu, enquanto entre as pujantes extremas direitas há setores eurocéticos, o que pode significar um freio a essa hipotética reformulação de alianças.
O cenário para a décima legislatura será esclarecido nas próximas cinco semanas, dado que o calendário é muito preciso. Entre 18 de junho e 4 de julho, novos grupos políticos serão formados no Parlamento Europeu, de acordo com afinidades político-ideológicas. Em 16 de julho, o Parlamento Europeu se reunirá para nomear suas autoridades para a primeira metade dos próximos cinco anos. Anteriormente, em 27 e 28 de junho, será realizada a Cúpula de Chefes de Estado e de Governo para acordar os nomes para os altos cargos que serão renovados, incluindo o de presidente da Comissão Europeia, bem como a presidência do Conselho Europeu.
Terremoto na França
O Reagrupamento Nacional de Marine Le Pen e Jordan Bardella, com mais de 32% dos votos, provocou uma verdadeira ruptura política, relegando a força do presidente Emmanuel Macron a um distante segundo lugar, com apenas 15,2% dos eleitores, pouco acima dos socialistas, que alcançaram 14,3%.
Duas horas depois de conhecidos os resultados, o presidente francês anunciou a dissolução da Assembleia Nacional e a convocação de eleições legislativas para 30 de junho (primeiro turno) e 7 de julho (segundo turno). “Dissolução, aposta extrema” encabeça a edição de segunda-feira, 10 de junho, do jornal francês Liberation. Enquanto isso, o Le Figaro titula: “Desautorizado (rechaçado), Macron contra a parede”. O El País, da Espanha, fala em uma “derrota humilhante” do atual presidente francês.
As análises dos políticos e da mídia, a partir do anúncio da dissolução da Assembleia Nacional, jogam com diferentes hipóteses. Enquanto para alguns dirigentes, especialmente à direita e à extrema direita, a decisão era a única chance de Macron diante de sua derrota eleitoral; representantes de forças ecológicas e progressistas ressaltam o enorme risco envolvido. Se a tendência eleitoral atual se confirmar, se não houver uma mudança significativa na política nacional, em 8 de julho a França pode acordar com uma primeira-ministra de extrema direita (Marine Le Pen) coabitando com Emmanuel Macron até as próximas eleições presidenciais, em 2027.
Uma candidatura unitária para 30 de junho de todo o espectro progressista (socialistas, comunistas, França Insubmissa, verdes e esquerda radical) poderia evitar esse cenário. Somados, tomando como referência os resultados do último domingo, alcançariam mais de 30% do eleitorado, quase igualando a ultradireita. Problemas profundos de egos e diferenças de concepções, mesmo em relação à própria União Europeia, conspiram contra esta hipótese de unidade, embora a última palavra não tenha sido dita e a ameaça da extrema direita possa dar origem a uma nova dinâmica unitária.
Nas próximas horas e numa intensa corrida contra o relógio, poderá haver outros cenários para a recomposição de alianças e até uma eventual “ressurreição” macroniana muito difícil (para não dizer quase impossível) caso obtenha apoio circunstancial de outros setores.
No entanto, o ponto de partida de todas as hipóteses anti-Le Pen baseia-se numa posição defensiva. Nesta segunda-feira, 10 de junho, a ofensiva é liderada pelo Reagrupamento Nacional (RN) que, com os seus 32% dos votos e com o eventual apoio do Reconquista (com 5% do eleitorado), inicia a corrida para o 30 de junho com uma posição confortável e com um piso de quase 38% do eleitorado nacional. Sem esquecer que foi Jordan Bardella, o candidato vencedor do RN e braço direito de Marine Le Pen, quem desafiou Emmanuel Macron a tomar a decisão de dissolver a Assembleia Nacional.
Futuro incerto
Analisando a dinâmica dos quatro países mais populosos da União Europeia (Alemanha, França, Itália e Espanha) e os seus resultados eleitorais, podem ser levantadas algumas hipóteses que poderão ter impacto no progresso da União Europeia a curto prazo.
O eixo França-Alemanha, que constitui a espinha dorsal da União e a locomotiva econômica e financeira do projeto comunitário, está gravemente ferido pela consulta eleitoral de 9 de junho. Tanto o liberal Emmanuel Macron, condenado em seu país a uma distante segunda posição, quanto o socialdemocrata chanceler alemão Olaf Scholz, relegado à terceira posição muito atrás dos democratas cristãos e dois pontos atrás da extrema direita AfD, perdem autoridade no contexto nacional e europeu. Os dois principais líderes do atual projeto europeu serão confrontados a curtíssimo prazo com a redefinição de papéis, protagonismos e prioridades políticas, respectivamente, em cada um dos seus países.
Nos últimos meses, ambos os líderes também se definiram como os principais pilares de apoio da UE a Volodimir Zelensky e sua estratégia de guerra contra a Rússia. Desde a eclosão do conflito, o impacto negativo da crise na vida cotidiana da população europeia tem sido significativo, com o seu componente de crise energética, aumento dos preços essenciais, tendência inflacionária, agitação camponesa – face aos benefícios concedidos pela UE aos produtos agrícolas ucranianos – para citar apenas algumas facetas da problemática.
Nas últimas semanas, os dois multiplicaram novas promessas de apoios bélicos multimilionários à Ucrânia. Ambos os países decidiram autorizar, inclusive, o uso de armamento ofensivo pela Ucrânia contra o território russo. Macron criou uma polêmica de proporções ao lançar a possibilidade de envolver soldados franceses e europeus nesse confronto.
Os votos a favor das sanções contra Macron e Scholz nas eleições europeias também podem expressar o cansaço de uma parte significativa do eleitorado europeu diante do custo já astronômico dessa guerra. E isso vai se multiplicar ainda mais na fase de reconstrução. Se as eleições costumam ser vistas como plebiscitos sobre as políticas de governo, de qualquer forma, a guerra na Ucrânia não parece ter trazido resultados políticos positivos para Macron e nem para Scholz.
Para o próximo fim de semana, nos dias 15 e 16 de junho, o governo suíço convoca uma Conferência Internacional para o Processo de Paz na Ucrânia, em Bürgenstock, no Lago de Quatro Cantões. Com a promessa de participação de representantes de alto nível de 90 países e organizações internacionais, pretende começar a definir um roteiro para uma solução pacífica. Apesar de que o não convite à Rússia para esse evento conspira contra eventuais resultados concretos, esse espaço internacional do qual Emmanuel Macron prometeu participar, poderia oferecer uma saída para o projeto mais radicalmente belicista promovido pela União Europeia. Macron e Scholz, assim como outros líderes europeus determinados a continuar a guerra, poderiam, em Bürgenstock, ouvindo a linguagem das urnas neste domingo, 9 de junho, começar a repensar seus argumentos de guerra e apostar em uma solução negociada rápida para esse conflito que desgasta a Europa em sua vida cotidiana e em sua própria identidade.
Veja em: https://outraspalavras.net/eurocentrismoemxeque/a-europa-entre-a-guerra-e-a-crise-de-identidade/
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