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A financeirização do Agro — e sua crise

O que são os Fiagro, fundos que permitem ganhar com a “força do agronegócio” sem tirar os pés da Faria Lima. Como se tornaram plantações de papel. Por que a quebra de um deles, o Agrogalaxy, ameaça este castelo de cartas

Por: Lucas Trentin Rech

Recentemente publiquei, junto a meu colega e amigo Daniel Jeziorny, um artigo intitulado Estado, Poder Político e Financeirização do Espaço Agrário no Brasil1 no qual, a partir de um fundo teórico marcadamente marxista, demonstramos a importância do Estado Brasileiro e, sobretudo, das administrações petistas da primeira década deste século, na criação e consolidação de um sistema de financiamento do agronegócio brasileiro marcado pela presença de ativos mobiliários (Letras de Crédito Agrícolas, LCA, e Certificados de Recebíveis Agrícolas, CRA) que, além de comporem as carteiras das instituições bancárias do Sistema Financeiro Nacional (SFN), como o BTG Pactual, o Banco do Brasil, Bradesco etc., compõe as carteiras de investimento de uma série de instituições financeiras não bancárias, marcadamente as Gestoras de Ativos (asset managers).

A posse desses títulos de dívida pelas Gestoras de Ativos se intensifica a partir da oficialização – falo em oficialização pois antes mesmo da aprovação da lei, já haviam fundos de papel compostos, sobretudo, por CRAs – da legalidade dos Fundos de Investimentos nas Cadeias do Agronegócio (Fiagros) em 2021. Essa nova classe de Fundo de Investimento procurou estender às cadeias do agronegócio os subsídios tributários concedidos ao setor imobiliário urbano, que desde o primeiro Governo Lula, mais especificamente 2005, contam com isenção tributária sobre os rendimentos de Fundos de Investimentos Imobiliários (FII). Se os FII eram compostos sobretudo por imóveis urbanos e logísticos (como centros de distribuição), além dos certificados de recebíveis e letras de crédito imobiárias (CRI e LCI), os Fiagro serão compostos por imóveis agrícolas (terras), silos e centros de distribuição, além das LCAs e CRAs. Como demonstrou nossa pesquisa, se há Fiagros que investem quase que exclusivamente em terras (2 de 19 fundos em 2022), a maioria deles é composto pelos títulos de dívida (15 de 19), são os chamados ‘fundos de papel’.

Esses fundos, que são isentos de imposto de renda, buscaram impulsionar o financiamento via títulos já subsidiados, isto é, já isentos de imposto de renda e que foram criados pelo primeiro Governo Lula em 2004 (LCI, LCA, CRI, CRA). Se antes, em sua maioria, compunham as carteiras de grandes bancos que os vendiam aos clientes institucionais, com o impulso dado pelos Fiagro, que permitem que a valorização dos títulos, que já era isenta quando em posse de pessoa física e/ou jurídica particular, se estendam aos fundos de investimento que tenham cotas negociadas na Bolsa de Valores (os chamados Exchange Traded Funds). No geral, esses fundos são geridos por instituições financeiras não bancárias, como a Capitânia e a JGP, gestoras dos fundos CPTR11 e JGPX11 que tinham 7% e 8% de seus patrimônios alocados em CRAs da Agrogalaxy.

A Agrogalaxy é uma empresa fundada a menos de 10 anos, em 2016, e que atua “na comercialização de insumos agrícolas, produção de sementes, agricultura digital, originação, armazenamento e comercialização de grãos, além de prestação de serviços agrícolas”2. Trata-se de uma empresa tipicamente financeirizada, e por financeirizada, entenda-se uma empresa criada por motivos financeiros, a partir de instituição financeira e que busca atender, exclusivamente, os interesses de uma elite financeira. Nas palavras da própria empresa a Agrogalaxy “nasceu de uma decisão audaciosa do Fundo Aqua Capital de fazer investimentos em empresas do setor de revendas de insumos agrícolas no Brasil”, isto é, não tratou-se de criar um negócio mas de, a partir dos recursos financeiros acumulados sob gestão do Aqua Capital, comprar empresas do setor: “O primeiro investimento aconteceu em 2016 na Rural Brasil, seguido pela Agro100 e Sementes Boa Nova em 2017, Grão de Ouro e Agro Ferrari em 2018.
[…] em 2019 […] na Sementes Campeã […] [em] 2021 foi concluída a compra da Ferrari Zagatto, e em 2022, da Agrocat”.

A partir do capital portador de juros acumulado, mas especialmente, a partir da emissão de CRAs, busca-se oligopolizar determinado extrato de um setor econômico específico com visas de, a partir de um preço superior ao preço concorrencial, assegurar rendimentos de longo prazo para o capital portador de juros que não encontrava opções lucrativas disponíveis. No primeiro semestre desse ano a Agrogalaxy pagou em juros de capital de terceiros o montante de R$58 milhões de reais3 e, nesse mesmo período, de maneira bastante desproporcional, ampliou o patrimônio líquido de seu Fiagro – sim, a empresa Agrogalaxy, criada por um Fundo de Private Equity possui um Fiagro –, via emissão de Certificados Recebíveis, de R$335milhões para R$1bilhão4. Como destaca reportagem do GloboRural:

“Embora, tecnicamente, o dinheiro [do Fundo Agrogalaxy] não seja emprestado à [empresa] Agrogalaxy mas aos agricultores, como forma de antecipar recebíveis na compra de insumos, a companhia tem responsabilidades sobre as operações. Essa é uma forma de dar mais garantias e atratividade ao fundo. Na captação de R$ 400 milhões, em maio, por exemplo, o investidor exigiu que a rede de revendas assumisse obrigações relativas às cotas.”

Isto é, a Cia apareceria como uma espécie de securitizadora da dívida de agricultores que se endividam com o intuito de comprar os insumos da empresa. Entretanto, quem está em recuperação judicial agora é a Agrogalaxy, e não o fundo Agrogalaxy. Por essas coisas que só labirinto financeiro criado pelo shadow banking é capaz, o motivo da recuperação judicial da Agrogalaxy foi o não pagamento de seus próprios CRAs: “No início da semana, o AgroGalaxy deixou de pagar uma dívida de R$ 70 milhões referente a um CRA de R$ 500 milhões emitido pela companhia há dois anos com vencimento em 2027”5. De acordo com os analistas de mercado, ouvidos pelo Valor, a recuperação judicial reflete o delicado momento vivido pelo agronegócio no país “além da queda no preço de algumas commodities agrícolas, como a soja e o milho, houve, no ano passado, um aumento no estoque de insumos como fertilizantes e defensivos”.

Entretanto, não se fala sobre a recuperação judicial da Agrogalaxy refletir a nova estrutura alavancada de uma série de empresas financeirizadas que passaram a compor o agronegócio brasileiro neste século XXI e sua extrema vulnerabilidade. O preço das commodities, utilizado como justificativa pelos analistas, só faz sentido em um cenário de empresas altamente alavancadas e com enormes obrigações financeiras de curto prazo.

Gráfico 1: Evolução dos preços de Soja e Milho em USD – jan/2016-jun/2024

 

Considerado o ano de fundação da empresa, 2016, até junho deste ano o preço da saca de soja se elevou 31,4% e de milho 15,9%. Oito anos, em uma temporalidade não frenética, como é dos mercados financeiros, é um tempo curto, entretanto, para uma temporalidade comandada pelos balanços trimestrais, um ano parece uma eternidade. De junho de 2023 a junho de 2024 o milho perdeu aproximadamente 30% do seu valor de troca enquanto a soja perdeu metade disso, 15%. Para uma empresa que vive da intermediação e suas bases são dívidas colossais, próprias e de terceiros (os produtores rurais financiados pelo fundo agrogalaxy são um exemplo) esses percentuais podem representar, e representaram, a ruína de uma empresa.

Em um momento de fortes alterações climáticas, causadas também e fortemente pela forma de se produzir comida que a sociedade capitalista impõe, a instabilidade, que foi marca dos preços futuros de commodities agrícolas, tende a ser a marca do setor agrícola, que se não é mais intensivo em força de trabalho humano, segue intensivo em utilização da natureza, sobretudo da fertilidade dos solos e das águas dos rios. Um setor altamente alavancado e dependente de créditos de curto e médio prazo, como é o caso do agronegócio brasileiro hoje, pode ser fortemente abalado – comprometendo a balança comercial – por um simples suspiro dos mercados internacionais.

 

Publicado originalmente em: https://outraspalavras.net/crise-brasileira/a-financeirizacao-do-agro-e-sua-crise/

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