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A ilusória “ecologia industrial”

Eficiência na produção de materiais gerou um efeito rebote: preços baixos, mais demanda e explosão do extrativismo. Fenômeno mostra: inovação é crucial, mas políticas ambientais efetivas passam por novos modos de produzir e redução das desigualdades e do consumismo

Por: Ricardo Abramovay | Crédito Foto Eddypump

Quanto pesa tudo o que você consome durante o ano? Sua alimentação, sua roupa, os materiais para a construção de sua casa, de seu local de trabalho ou de onde você estuda, aqueles dos quais é feito seu carro ou o transporte coletivo que você utiliza e os combustíveis dos quais este transporte depende, qual o peso, em toneladas, de tudo isso? Sabemos aproximadamente quanto gastamos, em dinheiro, para adquirir os bens e os serviços de nosso uso.

A própria ciência econômica (quem fez um semestre de introdução à economia vai se lembrar disso) recomenda que não se somem bananas com bicicletas e que é melhor traduzir tudo o que forma a riqueza transacionada numa sociedade em algo que lhe é comum: os preços.

Só que o avanço da crise socioambiental contemporânea deu origem a uma disciplina (a ecologia industrial) que procura responder a uma pergunta à qual a tradição dominante na ciência econômica nunca havia se voltado: de que forma estamos usando os materiais dos quais depende nossa riqueza? Em que quantidade? Quando comparamos estes materiais com os indicadores monetários de riqueza (o Produto Interno Bruto, por exemplo) o resultado é que estamos usando cada vez mais ou cada vez menos materiais? E quais os impactos deste uso na produção dos remanescentes de nosso consumo, nas embalagens que descartamos ou nas emissões de gases de efeito estufa, derivadas da queima de combustíveis fósseis? Qual a relação disso tudo com as desigualdades?

O que está em jogo quando se formulam estas perguntas é a relação entre a sociedade e aquela que nos fornece as bases materiais, bióticas e energéticas para formar a riqueza, ou seja, a natureza. Da mesma forma que, no nosso corpo, o metabolismo é a reação de nossas células, transformando em energia os alimentos e a água que ingerimos, existe um metabolismo social, que pode ser definido como o conjunto de fluxos de materiais e de energia que ocorre entre a sociedade e a natureza. E não é preciso muita perspicácia para imaginar que nosso metabolismo social está doente.

Estamos retirando da natureza materiais a um ritmo explosivo, que não permite sua regeneração e que está comprometendo os mais importantes serviços ecossistêmicos dos quais dependemos (água, solos, clima, oceanos, ar limpo e biodiversidade). Pior: toda esta extração não está levando o mundo em direção ao cumprimento do mais importante compromisso multilateral contemporâneo que é atingir os 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável até 2030. Mais materiais, mas nem sempre uma vida melhor.

Estas são as principais conclusões de um relatório publicado recentemente pelo Painel de Recursos Internacionais (International Resource Panel) do Programa Ambiental das Nações Unida (IRP/UNEP) e cujo título já é um spoiler de suas principais conclusões: Bend the trend. Pathways to a liveable planet as resource use spikes (Inverter a tendência. Caminhos para um planeta habitável enquanto o uso dos recursos explode). O trabalho é o mais recente exemplar de um conjunto de pesquisas que o IRP/UNEP vem levando adiante desde 2007, quando se formou com a missão de produzir e compartilhar conhecimentos para melhorar a maneira como as sociedades contemporâneas usam os recursos que estão na base da oferta de bens e serviços. A pesquisa sobre o tema avançou muito desde o final dos anos 1990.

Que materiais e quanto?

Foi em 2011 que o IRP/UNEP publicou o primeiro relatório global sobre este tema. A palavra-chave é decoupling (desacoplamento). Trata-se de desacoplar a riqueza de sua base material, energética e biótica (ou seja, produzir, usando cada vez menos esses recursos), para que não se esgote aquilo que a natureza nos fornece e para que os impactos do uso que fazemos desse fornecimento não se traduza em poluição, erosão da biodiversidade, emissão de gases de efeito estufa, esgotamento de água, destruição da vida dos oceanos e empobrecimento dos solos.

Para desacoplar a produção de bens e serviços de sua base material, ou seja, para depender cada vez menos da extração daquilo que a natureza nos oferece, o caminho mais evidente consiste em aumentar a eficiência, por meio de inovações tecnológicas. E isso, de alguma forma, vem sendo feito.

Em 1980, por exemplo, uma lata de alumínio para o consumo de refrigerantes ou cerveja pesava em média 19 gramas. A produção era então de 41,6 bilhões de unidades. Inovações tecnológicas permitiram que, em 2010, o peso desta latinha caísse para 13 gramas. Só que, neste ano, foram vendidas 97,3 bilhões de unidades. Um telefone celular, em 1990, quando 11 milhões de unidades foram comercializadas, pesava 600 gramas. O peso caiu para 118 gramas em 2011, quando seis bilhões de assinantes usavam o aparelho.

As inovações tecnológicas contribuíram para reduzir o peso dos materiais usados em cada unidade, mas, com o aumento explosivo do consumo, é óbvio que o total usado de materiais aumentou. Antes de examinar os dados agregados sobre o uso de materiais e seus impactos é importante saber de que materiais se trata.

A infinidade dos produtos que estão à nossa volta se apoia em quatro materiais básicos, oferecidos pela natureza e extraídos pelo trabalho humano. Quais são eles?

Em primeiro lugar vem a biomassa, ou seja, as culturas agrícolas, os pastos, as plantações destinadas ao consumo animal, a madeira, a pesca e a coleta. Em 1970, nada menos que 41% do peso (em toneladas) de todos os materiais que formavam a riqueza social vinha da biomassa. Com o avanço da industrialização essa proporção cai e hoje a biomassa é apenas 26% do peso de todos os materiais. Mas isso não quer dizer que o mundo está usando menos biomassa do que cinquenta anos atrás. O peso total da matéria viva (biomassa) que retiramos do solo, das águas, das colheitas e das florestas era de 12,6 bilhões de toneladas em 1970 e chega hoje a 24,8 bilhões de toneladas.

O segundo material na base da oferta contemporânea de bens e serviços são os combustíveis fósseis, ou seja, petróleo, gás natural, carvão. A sua participação (em toneladas) na formação da riqueza em 1970 era maior (20%) do que hoje (16%). Só que, em termos absolutos, a extração de fósseis que era de 6,1 bilhões de toneladas em 1970 chega a 15,4 bilhões de toneladas nos dias de hoje.

O terceiro material importante na formação da riqueza social são os minerais metálicos: ferro, cobre, alumínio e outros metais não ferrosos (ouro, prata, por exemplo). Sua participação relativa na base da oferta de bens e serviços se mantém estável ao longo dos últimos cinquenta anos (passando de 9% para 10% do total). Mas com a acelerada industrialização global, a extração dos minerais metálicos vai de 2,7 a 9,6 bilhões de toneladas entre 1970 e os dias de hoje.

Por fim, os materiais que hoje mais pesam na formação da riqueza (passando de 31% a 50% da extração global) são os minerais não metálicos: cimento, argila, cascalho, fundamentais para a construção civil. Em 1970 eram extraídos 9,6 bilhões de toneladas destes materiais e hoje este montante chega a 45,3 bilhões de toneladas.

Limites da eficiência

O resultado de tudo isso são números estarrecedores. Em 1970, a soma destes quatro materiais atingia 30,9 bilhões de toneladas. Cinquenta anos depois, o total chega a 106,6 bilhões de toneladas. O uso de materiais teve uma elevação de três vezes e meia neste período. Mas é importante comparar este movimento com o da própria formação da riqueza.

O que se constata é que o Produto Interno Bruto Global nesses 50 anos aumentou cinco vezes, portanto, mais do que a extração de materiais. Isso significa que a sociedade está usando os recursos com mais eficiência do que usava 50 anos atrás, já que a oferta de bens e serviços aumentou bem mais do que a base material sobre a qual ela se apoia. O tão almejado desacoplamento parece ter acontecido, o que sinalizaria que a humanidade está usando cada vez melhor aquilo que extrai da natureza.

Mas, esta é uma conclusão apressada e errônea das informações do trabalho do IRP/UNEP. Há ao menos quatro razões que corroboram o alerta contido no título do relatório quanto ao caráter explosivo da forma como estamos extraindo e usando os recursos que a natureza nos oferece.

A primeira razão é que apesar do desacoplamento relativo entre produção e extração de recursos, em termos absolutos a quantidade de recursos de que depende a vida econômica não para de crescer, apesar das inovações tecnológicas impressionantes que ocorreram neste período. A ideia tão propagada de que a revolução digital provocaria a desmaterialização da economia global não encontra fundamento nos dados empíricos. Se a tendência atual persistir, os 106 bilhões de toneladas extraídos hoje serão 160 bilhões de toneladas em 2060, ou seja, em menos de 40 anos.

E quem imagina que o esforço em reduzir a emissão de gases de efeito estufa e de descarbonizar a oferta de energia atenuará a pegada material do sistema econômico levará um susto quando examinar os materiais necessários para produzir um carro elétrico. Uma bateria de lítio, com peso de 450 quilos, contém 11 quilos de lítio, 14 quilos de cobalto, 27 quilos de níquel, mais de 40 quilos de cobre e 50 quilos de grafite, assim como 181 quilos de aço alumínio e plástico. O fornecimento desses materiais (para um só veículo) exige o processamento de 40 toneladas de minérios. Mas, tendo em vista a baixa concentração de muitos destes minérios, isso significa a extração de 225 toneladas de materiais brutos. Isso só para a bateria de um único carro!

Quando se soma esta extração de materiais à tendência atual da indústria automobilística de produzir carros cada vez maiores e mais pesados, o resultado é o que um artigo recém publicado na Nature Energy não hesita em chamar de “mobesidade”, neologismo que funde mobilidade e obesidade. Nada menos que 35% dos carros elétricos vendidos no mundo são SUVs e os fabricantes estão oferecendo cada vez menos modelos leves.

As consequências são negativas não apenas do ponto de vista do uso de materiais, mas igualmente para a organização urbana, já que o espaço ocupado no trânsito e as próprias vagas de estacionamento são cada vez maiores. O professor Christian Brand, autor do artigo, preconiza maior taxação para SUVs e redesenho urbano que desencoraje a compra deste tipo de veículos.

Além disso, nem sempre o desacoplamento relativo acontece. A produção global de grãos, dos anos 1960 até o final da primeira década do milênio, aumentou sobre a base de um uso da terra que se manteve praticamente estável, ou seja, mais produto por cada unidade de solo utilizada. Mas este desempenho produtivo apoiou-se no uso em larga escala de sementes modificadas, cujo alto potencial se revelava por meio de fertilizantes nitrogenados. Só que o uso de fertilizantes por unidade de grãos produzida, desde os anos 1960, aumentou, ou seja, não houve sequer desacoplamento relativo. Entre 1961 e 2017, o consumo de fertilizantes nitrogenados por unidade de colheita aumentou oito vezes.

É importante saber que os produtos químicos usados na agricultura têm impactos destrutivos sobre as águas subterrâneas e superficiais maiores que os de fontes urbanas de poluição.

A segunda razão que fundamenta a urgência de “mudar a tendência” refere-se às desigualdades. A pegada material média, per capita, em 1970 era de 8,4 toneladas anuais. No prefácio ao relatório que o IRP/UNEP publicou em 2011, Achim Steiner, então sub-secretário geral das Nações Unidas, escrevia que “nas próximas décadas, o nível de recursos usados por cada pessoa precisa cair para algo em torno de cinco a seis toneladas. Alguns países em desenvolvimento estão ainda abaixo deste nível, como a Índia com 4 toneladas per capita e alguns países desenvolvidos, como o Canadá, têm 25 toneladas”.

E o que ocorreu desde então? Em vez de cair, esta média (per capita) subiu para 12,2 toneladas de materiais. E as desigualdades só se aprofundaram: nos países de baixa renda (quase toda a África ao Sul do Sahara e parte importante da Ásia do Sul) a pegada material per capita em 2020 continua ao redor de quatro toneladas. Já no segmento mais próspero dos países de renda média (onde estão China e Brasil) a pegada ultrapassava a média mundial e chegava, em 2020, a 19 toneladas per capita, aproximando estes países da média dos países de alta renda que é de 24 toneladas per capita.

É claro que tem que existir espaço para ampliar o uso de recursos por parte dos países mais pobres (para a construção de escolas, hospitais, meios de comunicação e transporte), mas isso supõe (como bem preconizava Achim Steiner) uma drástica redução na pegada material dos países ricos e mesmo no segmento mais próspero dos países de média e até de baixa renda.

A terceira razão para o alerta das Nações Unidas está na evidência de que reduzir a pegada material da economia exige transformações drásticas nos padrões de produção e de consumo. Muito mais que carros elétricos, o essencial é incrementar a mobilidade coletiva e estimular o uso e o reaproveitamento das áreas centrais para implantar iniciativas como as da “cidade de quinze minutos”, modelo já aplicado em cidades como Bogotá, Melbourne e Paris.

Na moradia, a ideia de cidades compactas e conectadas e o uso de materiais alternativos aos atualmente dominantes são os caminhos para reduzir a pegada material e o uso de cimento, cuja destinação, em fim de vida é altamente problemática e que responde por quase 8% das emissões globais. Na alimentação, mais do que aumentar a produtividade das áreas em que predomina a monotonia dos grãos voltados a alimentar os animais de criação industrial, a prioridade é a diversificação das paisagens agrícolas, das dietas e a correlativa redução no consumo de produtos de origem animal, hoje excessivo na maior parte do mundo.

A quarta razão é de natureza ético-normativa. Nas discussões sobre clima já se generalizou a ideia de que é necessária uma transição justa, o que só será alcançado se a ênfase da descarbonização da vida econômica se concentrar no empenho em oferecer bens públicos que melhorem a vida social e se houver mecanismos financeiros para que a adaptação aos eventos climáticos extremos tenha foco, sobretudo, nos que vivem nas áreas mais suscetíveis de serem castigadas pelas catástrofes cada vez mais frequentes. Daí se origina o vínculo, estabelecido no relatório do IRP/UNEP entre transição justa e suficiência.

Vale a pena transcrever a definição deste termo pelo IRP/UNEP: “Conceito que está ganhando força na agenda política e que, do ponto de vista dos recursos, refere-se à necessidade de: aumentar o uso de recursos em contextos de baixo desenvolvimento para permitir uma vida digna, enquanto se reduzem os níveis de consumo nas partes da população que vivem muito acima da capacidade do planeta”.

A ênfase que, até aqui, as organizações multilaterais, as empresas e os governos colocam em ampliar a eficiência no uso dos recursos vem tendo como contrapartida aquilo que os especialistas chamam de efeito ricochete ou efeito rebote: os exemplos das latinhas de refrigerantes e de cerveja e dos celulares citados acima (aos quais se pode acrescentar os do cimento e inúmeros outros produtos) mostram que as inovações tecnológicas que conduzem à diminuição na quantidade de materiais contidos em cada unidade dos produtos tendem a baratear seus preços, a aumentar seu consumo e, portanto, a ampliar, em termos absolutos, a extração de materiais dos quais os produtos dependem.

Não se trata de negar a importância da eficiência e sim de constatar que ter nela o objetivo central das políticas socioambientais não reduzirá a pressão que o uso dos recursos exerce sobre os serviços ecossistêmicos dos quais a própria vida depende.

Conclusão

É totalmente ilusória a ideia de que a luta contra as desigualdades consiste em elevar a pegada material dos países e das pessoas mais pobres ao nível dos que estão no topo da pirâmide social. Os dados do último relatório do IRP/UNEP mostram que tal caminho só faria acelerar a destruição dos serviços ecossistêmicos que os atuais padrões de produção e consumo vêm provocando. Daí vem a ideia de explosão contida no título do trabalho do IRP/UNEP. E é por isso que ele propõe que se altere o foco da transição da eficiência para a suficiência.

É verdade que os caminhos para obter eficiência estão relativamente bem traçados e é neles que se concentram os esforços atuais da esmagadora maioria das empresas, dos governos e mesmo das organizações multilaterais. Já as rotas para que se reduza a pegada material, o que passa, antes de tudo, pela diminuição das desigualdades no uso dos recursos, nem de longe estão desenhadas. Enfrentar este dilema deveria ser tema central do multilateralismo global.

 

Publicado originalmente em: https://outraspalavras.net/terraeantropoceno/a-ilusoria-ecologia-industrial/

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