Aos 90 anos, ele prepara-se para fazer “a viagem de onde não se volta”. Resgate de seus últimos atos e dos momentos marcantes em que afirmou, diante de um mundo regredido, a possibilidade de reencantar a vida e a política
Por: Soledad Gago, na Revista Anfibia | Tradução: Rôney Rodrigues | | Arte: Melisa Blois
Epílogo: o fim
1º de março de 2015. Montevidéu, Uruguai.
É assim que se despede um homem que sabe que nunca se retirará.
— Eu não vou embora. Estou chegando. Partirei com meu último suspiro, e onde eu estiver, estarei por você, estarei com você, porque é a forma superior de estar com a vida. Obrigado, querido povo.
José Alberto Mujica Cordano, o Pepe, tem 79 anos. Nesta manhã ele acordou cedo, ligou o trator, trabalhou na roça, tomou banho, vestiu uma camisa branca, um terno preto impecável. Penteou o cabelo para trás. Subiu no banco do passageiro de seu Volkswagen Fusca azul claro, caminhou 13 quilômetros da chácara onde mora com sua esposa Lucía Topolansky – senadora – em Rincón del Cerro, nos arredores de Montevidéu, até a Plaza Independencia, no centro de a cidade. No caminho ele parou, cumprimentou as milhares de pessoas que o esperavam, passou pelo posto, abasteceu, deixou gorjeta para o frentista e ouviu uma jornalista perguntar se aquele foi o dia mais emocionante de sua vida.
Pepe se aproximou dela sem sair do carro. Encolheu os ombros e, como se nada pudesse perturbá-lo, nem mesmo vivendo seu último dia como presidente da República do Uruguai, respondeu:
—Vocês não entendem. Não conseguem entender. O dia mais emocionante da minha vida foi quando me transferiram de Paso de los Toros para a prisão porque ali percebi que a ditadura estava entrando em colapso. Este um feijão perto daquele dia.
Depois continuou, chegou na praça, andou no meio de uma multidão que o esperava, cantando seu nome – Pepe, Pepe, Pepe – e agradecendo, querido velhinho, obrigado. Ele cumprimentou Tabaré Vázquez, que estava prestes a tomar posse como presidente – e que comemorava 15 anos consecutivos de Frente Ampla, seu partido, no governo – com um abraço apertado, rude e triunfante. Subiu ao palco, ainda com a faixa presidencial atravessada no tronco, e disse que os cinco anos de governo passaram rápido, que ele não ia sair, que estava chegando: obrigado, povo.
Ato 1: hoje
Do lado de fora do Teatro El Galpón, na Avenida 18 de Julio, no coração de Montevidéu, há uma multidão. Homens, mulheres e crianças formam uma longa fila que se estende da sala do teatro em direção à rua por vários metros. Carregam garrafas térmicas, mates, bandeiras, camisetas, bonés, cartazes e balões da Frente Ampla, do Movimento de Participação Popular (MPP) e da lista 609. Um carrinho vende choripanes, outro refrigerantes, outro brinquedos para crianças – carrinhos de plástico, lanternas coloridas, bonecos de paraquedas, disparadores de bolinhas de sabão. Através de alto-falantes eles transmitem, ali, na rua, o que está acontecendo lá dentro.
É quarta-feira, 19 de junho de 2024, às seis e meia da tarde. O sol já se foi e a noite aparece carregando um frio infernal. É como um anúncio: daqui a dois dias começará o inverno, e será um dos mais frios dos últimos anos.
No salão do El Galpón – um dos teatros independentes mais importantes do Uruguai, cujos membros tiveram que se exilar durante a ditadura de 1973 – distribuem a lista 609. Faltam 11 dias para as eleições internas no Uruguai, nas quais cada um partido elege o candidato que o representará nas eleições presidenciais, e o MPP, liderado por José Mujica e Lucía Topolansky, comemora o encerramento de campanha de lista com a qual apoia a candidatura de Yamandú Orsi, ex-prefeito de Canelones.
Às sete e meia a sala, com capacidade para 800 pessoas, fica lotada. No palco há uma mesa e quatro poltronas. Ao fundo, numa enorme tela onde tremula a bandeira da Frente Ampla, está escrito: “Com Orsi voltamos”. Ao lado, uma imagem do candidato e outra de Mujica.
Porque ele, um homem de 90 anos que em abril foi diagnosticado com câncer de esôfago e fez tratamento radioterápico, é a peça fundamental: para que Orsi ganhe as eleições internas da Frente Ampla contra Carolina Cosse e para que a Frente Ampla volte ao governo. Os candidatos sabem disso, o partido sabe disso e, acima de tudo, ele sabe disso.
“Apesar da idade, Mujica mantém forte influência na política nacional. É a última liderança viva da esquerda uruguaia e, nos últimos anos, também tem sido um fator de gravitação no contato com os líderes dos outros partidos, incluindo o presidente Luis Lacalle Pou”, explica o historiador e cientista político Gerardo Caetano. “Mesmo com limitações dada a doença, sua palavra é de enorme importância. Em muitas ocasiões, os outros líderes da esquerda parecem até esperar que ele se pronuncie sobre as questões mais difíceis e vexatórias para depois tomar uma posição. A sua presença, ainda limitada, constitui sem dúvida um fator de triunfo da Frente Ampla e do seu candidato Yamandú Orsi face às eleições nacionais de outubro.”
“El Pepe está cumprindo o papel de facilitador da transição de lideranças. Algo que no Uruguai custa muito à classe política e, principalmente, à esquerda”, afirma Gonzalo Puig, cientista político. Esta é a eleição em que se consolida a “renovação” na Frente Ampla.
A deputada Cecilia Cairo, o senador Alejandro Sánchez, Orsi, Topolansky e Mujica estão programados para falar neste evento de encerramento da campanha. Todos subirão ao palco em momentos diferentes. Orsi entrará como um astro do rock com garrafa térmica e mate, andando pelo corredor, entre as pessoas: estenderão a mão para ele, tirarão fotos, cantarão presidente, presidente, presidente.
Porém, quando Mujica fica diante da multidão vestido com calça esporte cinza e casaco quente, quando agarra o microfone sem hesitar, quando se sente cansado e ainda assim insiste, quando diz, com voz envelhecida e apertada, que a política precisa ser épica, compromisso e atitude moral, quando tem que ficar em silência porque as pessoas não param de cantar ole, ole, ole, Pepe, Pepe, Pepe, quando ele reivindica, hoje, no seu aniversário, a luta de José Gervasio Artigas e o êxodo com o seu povo, quando afirma que os políticos têm de viver como vivem as pessoas comuns, quando fala de esperança e de utopias, quando diz “pertenço a uma geração que está indo embora”, quando o aplaudem sem parar durante vários minutos, será um rugido, um alvoroço.
Mujica não o dirá, mas terá, então, a sensação de ter cumprido o seu dever, de ter feito o que tem que fazer. E o que quer fazer.
Não há doença ou inverno que o impeça. Durante a campanha, Mujica caminha entre as pessoas, percorre os bairros de Montevidéu, participa de eventos, palestras, conferências, canta, bebe mate, sorri e dança aquela música de Ruben Rada que diz “quando eu morrer não quero chore nem pena” Ele fala de tudo o que quer, questiona Cosse numa campanha sem questionamentos, sem embates ou debates, recebe críticas que não o afetam, senta-se numa praça ao sol enquanto as pessoas o cercam, como se estivessem ouvindo um velho sábio, e o escutam dizer que o tempo livre é valioso, que tem que gastar o seu tempo com o que quer e não com o que lhe é imposto. Em suma, ele faz o que sempre faz: um soldado com sua palavra e seu corpo.
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A escola 188, no bairro Las Torres, distante do centro de Montevidéu, enfrenta um terreno baldio coberto de grama. É um edifício com telhado de zinco e paredes coloridas. Numa dessas paredes há uma árvore pintada com mãos de crianças e uma frase de José Martí, poeta cubano. Diz: “A educação é como uma árvore: uma semente é lançada e se abre em muitos ramos”.
É domingo, 30 de junho, e às sete e meia da manhã o sol ainda não nasceu. Na sala que corresponde ao circuito eleitoral de 1990, as três responsáveis pela mesa esfregam as mãos para tentar se aquecer. O termômetro marca que são três graus e não há maneira, nesta manhã que mal aparece, de escapar do frio.
Quinze minutos antes das oito, jornalistas, fotógrafos e cinegrafistas se aglomeram naquela pequena sala com mesas e cadeiras empilhadas umas sobre as outras para economizar espaço. Um ex-presidente deverá votar lá às oito horas em ponto.
Mujica chega meia hora depois. Veste calça esporte cinza, duas jaquetas quentes sobrepostas, um boné preto de viseira com o logotipo da lista 609. Entra na sala caminhando lentamente, acompanhado por um homem que cuida de suas costas. Tira o chapéu. Seu rosto é rígido, severo. Está despenteado. Diz bom dia sem qualquer expressão. Entre na sala secreta, vota. Sai e, embora não fale, faz o que sabe: age devagarzinho, coloca o envelope na urna, olha as câmeras ao seu redor, entrega para eles a foto do seu voto.
Sai, cumprimenta quem se aproxima. Caminha lentamente em direção ao carro onde Topolansky o espera.
— Como você está, Pepe?
— Os médicos dizem que estou melhor.
— Por que você tem sido tão ativo nesta campanha?
— Eu não fiz nada. Comparado ao que fiz é uma besteira. Eu milito desde os 14 anos e vou morrer militando. É uma forma de vida.
Naquela noite, apesar do frio e do inverno, vai com a esposa ao diretório-central onde Yamandú Orsi descobre que, finalmente, ganhou as internas contra Cosse e é candidato à Presidência. Não fala com a imprensa. Não diz nada. Exceto isso: “Ainda me falta uma última jogada, vocês já vão ver”.
Essa é a última vez que apareceu em público em meses. Depois daquele primeiro triunfo (que é de Orsi e também um pouco dele), ele se refugia em sua casa, faz tratamento de radioterapia e seu corpo enfraquece, diz não às entrevistas, diz que quer se cuidar para poder ser um soldado na campanha presidencial.
No final de agosto, o MPP anuncia uma conferência de imprensa para a noite do dia 27. Nesse mesmo dia, Mujica é internado no hospital para estudos. O médico que conduz o tratamento diz que o cancro desapareceu, mas que a radioterapia lhe deixou algumas sequelas, nada grave, mas que ele precisa se recuperar, que ficará internado dois ou três dias.
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Na noite do dia 27, na sede da Frente Ampla, o MPP realizou uma conferência para anunciar a incorporação ao partido de Blanca Rodríguez, professora de literatura, jornalista de referência para a opinião pública, há 30 anos à frente dos programas mais visto no Uruguai.
Em uma mesa com toalha vermelha e microfones estão Alejandro Sánchez, senador, Blanca Rodríguez, Lucía Topolansky e José Mujica.
Pepe chegou em cadeira de rodas, de boina e luvas, vestido com o mesmo casaco com que votou no dia 30 de junho. Ele e Lucía são os responsáveis pela incorporação da jornalista à Frente Ampla.
Mujica avisa que está ferrado, mas que não poderia perder aquele momento. “Política não é um negócio, política é uma paixão que você tem ou não tem”, diz ele, com a voz frágil e tensa. “Não viemos aqui para vencer, viemos aqui porque estamos convencidos. Tenho consciência que pertenço a uma geração que está partindo, pertenço ao adeus e o adeus deve zelar pelo que está por vir, porque a luta continua e tem que sobreviver.”
Este é o seu último movimento: deixar a casa em ordem, antecipar o futuro, garantir que, com ou sem ele, as ideias e as formas – aquelas às quais dedicou toda a sua vida – permanecerão.
Ato 2: ontem
O ano é 1943. A família Mujica Cordano mora no bairro Paso de la Arena, nos arredores de Montevidéu. É um local habitado por trabalhadores e donas de casa, homens e mulheres que vivem em pequenas propriedades onde trabalham a terra. Esse é o caso da família de Pepe.
A casa fica a poucos quarteirões da escola nº 150, onde frequentam Pepe e sua irmã mais nova, María Eudoxia. Para chegar lá, todas as manhãs atravessam um campo. Um dia, no início de setembro daquele ano, a rotina muda: ao chegar em casa, Pepe, de oito anos, descobre que seu pai, Demétrio, homem que votou toda a vida no Partido Nacional e trabalha na Direitoria de Viabilidade, acaba de morrer de sífilis.
Lucy aprende a cultivar flores e ensina o ofício ao filho mais velho. Com o tempo, Pepe aprende como regar cada flor, onde plantá-las, quais condições precisam para crescer. Monta buquês e os vende pelo bairro. As flores geram renda para a família, mas, acima de tudo, são o seu fascínio: Pepe passa horas e horas observando-as, cuidando delas, pensando nelas. Aprende que a natureza é fundamental para a vida.
Ao entrar no ensino médio conhece os sindicatos, greves e direitos. Ingressa no Grupo de Reforma Universitária, que questiona, sobretudo, o sistema político e econômico do Uruguai e defende o movimento operário. Comece a ler sobre socialismo e comunismo, sobre anarquismo, sobre marxismo e leninismo. E, sobretudo, define que, diferentemente de sua família, eleitora e militante de um partido da direita tradicional, sua forma de pensar tem mais a ver com o movimento operário e as lutas populares.
Continua vendendo flores e, à sua forma de pensar a natureza, acrescenta uma forma de compreender a vida: sempre em comunidade. Pepe é um adolescente que defende as causas dos trabalhadores e fala – com uma desenvoltura que parece um presságio – da solidariedade como valor supremo.
Foi nessa época que sua mãe o apresentou a Enrique Erro, deputado do Partido Nacional que se distanciou da política tradicional e defendia os direitos dos trabalhadores. Pepe se diz esquerdista, mas simpatiza com as ideias e costumes de Erro e se junta à sua militância.
Um ano depois, tudo muda. Mujica viaja, como parte da equipe de Erro – que, após o triunfo do herrerismo, foi nomeado Ministro do Trabalho – para Cuba e, mais tarde, para a União Soviética. Em Havana ele conhece uma cidade em plena efervescência de uma revolução. Na URSS existe um Estado socialista há mais de quatro décadas.
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Há uma parte desta história que é mais conhecida. Em meados dos anos 60, militantes do Partido Socialista, desencantados com o poder político, juntamente com dirigentes sindicais, agricultores, estudantes e jovens das classes média e média baixa, reuniram-se, primeiro para falar sobre o futuro do Uruguai, depois para pensar numa revolução: movimentos sindicais, estudantis e operários marcham, protestam e fazem greve e o governo responde. A violência parece estar, o tempo todo, prestes a destruir tudo.
Dessa forma, surgiu o Movimento de Libertação Nacional Tupamaros (MLN), um movimento guerrilheiro que passou a utilizar a luta armada para mudar os rumos do país.
Dizem que não há outra alternativa, que para algo mudar a ação tem que ser radical. E assim começam a organizar diferentes operações para conseguir o que desejam: — “Alguns salvam o trabalhador da exploração capitalista, outros salvam o país do imperialismo”, escreve o jornalista Mauricio Rabufetti no livro José Mujica. A revolução tranquila — roubam armas, tomam cidades, atacam empresas, casas ou caminhões, passam à clandestinidade, realizam sequestros e assassinatos, os que podem vão para o exílio, outros morrem e os outros, finalmente, são capturados e presos.
Mujica, um homem de 37 anos que está disposto a sacrificar tudo pelas suas ideias, é um deles. Passa à clandestinidade, muda de nome – escolhe ser chamado de Facundo, em homenagem ao guerrilheiro argentino Facundo Quiroga -, conhece Lucía Topolansky, também guerrilheira, e se apaixona. Certa tarde de 1970, após planejar o assalto à mansão de um empresário para obter recursos e continuar com a guerrilha, enquanto brindava com seus companheiros em um bar do bairro La Blancada, em Montevidéu, a polícia o encontra, encurrala-o e, no chão, ele leva seis tiros. Sobreviver Vai preso e foge. Em 1972, é capturado novamente. Um ano depois, em junho de 1973, o presidente Juan María Bordaberry dissolve o parlamento e os militares tomaram o poder.
A ditadura durará até 1985. Ele ficará preso por 12 anos. Será torturado, física e psicologicamente, mas resistirá: não desejará que tudo tenha sido em vão.
Mais tarde, quando os anos passarem e a vida continuar, a sombra do passado sempre o seguirá, mesmo que ele insista em deixá-lo para trás. Haverá aqueles que o condenarão. Haverá aqueles que o enaltecerão.
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Em 22 de novembro de 2009, José Mujica, libertado com a volta da democracia, que solicitou um empréstimo pediu à Lucía Topolansky para comprar uma chácara fora de Montevidéu, que participou da formação do MPP dentro da Frente Ampla, que foi deputado, senador e ministro durante o governo de Tabaré Vázquez, é eleito presidente da República num segundo turno em que vence Luis Alberto Lacalle com 52% dos votos.
Em 1º de março de 2010, assume o cargo de presidente do Uruguai. A primeira decisão que toma é continuar morando em sua chácara. Refere-se à política como um instrumento para mudar a vida das pessoas e não para enriquecer. Doa 70% do seu salário para a construção de moradias em bairros carentes da capital. Continua andando em seu Fusca celeste, continua cuidando das flores do seu jardim. Não muda sua forma de se vestir ou de se comportar, rechaça completamente qualquer protocolo. Recebe críticas por isso. E, embora carregue a memória da violência do seu tempo, opta por falar sobre a natureza, a solidariedade, a liberdade, a comunidade e o futuro.
Torna-se uma estrela: jornalistas de todo o mundo viajam ao Uruguai para conhecê-lo, para ver como ele vive, para saber se é verdade que ele tem uma cadela, Manuela, de três patas; ficam fascinados com as coisas que ele lhes diz: “se tenho uma casa pequena e tenho pouco, há poucas coisas com que me devo me preocupar”; “a vida é linda, com todas as suas aventuras, eu amo a vida”.
Foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz; convidam-no para falar em fóruns e conferências e numa assembleia das Nações Unidas, onde diz, entre muitas outras coisas, o seguinte:
— Não olho para trás porque o verdadeiro real nasceu nas cinzas férteis de ontem. Pelo contrário, não vivo para cobrar acertos de contas ou reverberar memórias. Estou angustiado, e de que forma, pelo futuro que não verei, e pelo qual me comprometo. Sim, é possível um mundo com uma humanidade melhor, mas talvez hoje a primeira tarefa seja cuidar da vida. Mas eu sou do Sul e venho do Sul, para esta assembleia, carrego inequivocamente os milhões de compatriotas pobres, nas cidades, no campo, nas selvas, nos pampas, nos sumidouros, da América Latina, uma pátria comum que está sendo feita.
Internamente, diz Mauro Casas, cientista político, o governo de Mujica é um governo absolutamente normal, sem muitos destaques.
“Com acertos e erros, com problemas de corrupção, mas com um saldo global positivo, os indicadores de emprego, pobreza e crescimento econômico são positivos, tem algumas conquistas na agenda de direitos, como a legalização do aborto e o casamento igualitário, e algumas questões internacionais relevantes e depois, como tudo o resto, reformas adiadas e fracassadas.”
Gerardo Caetano, historiador e cientista político, coordenador do livro José Mujica. Outros mundos possíveis, diz que Mujica não gosta de comandar e que a gestão não é a sua praia.
“Dizem que o seu gabinete ministerial é um ‘tambo’ [fábrica de laticineo] mas que aí acontecem as discussões mais profundas, que por vezes são terreno fértil para decisões difíceis. Sem dúvida, seu governo tem vários fracassos: vários de seus “carros-chefe” (o porto de águas profundas do Mercosul na costa de Rocha, a usina de regaseificação para encontrar uma equação energética viável na região, etc.) não conseguem decolar, embora as suas políticas se concentrem sempre na redistribuição e no destino dos mais desfavorecidos. Os seus sucessos baseiam-se nestas primeiras definições, favorecidas por um contexto internacional favorável.”
Uma das principais críticas ao seu governo foi que, embora o Uruguai tenha crescido economicamente favorecido pelo contexto internacional, não foi capaz de realizar melhorias significativas na saúde, na educação ou na segurança. A gestão de Mujica dividiu (e ainda divide) as águas no Uruguai. Porém, os sucessos de Mujica hoje têm a ver com outra coisa, com outra dimensão.
Mauro Casas resume assim: “Mujica se conecta com boa parte da sociedade, se conecta com muito mais gente do que quem vota nele, e isso é um diferencial importante que o marca, ele é uma referência em termos de ética, moral ou pelo menos discussão pública. Às vezes fala a militantes convictos e às vezes à sociedade em geral, e quando o faz encontra terreno fértil para ser respeitado e ouvido por pessoas que não são eleitores de esquerda nem pertencem socioculturalmente ao mundo da esquerda. Acho que esse é o grande valor que Mujica teve como político, a sua capacidade de falar com os outros.”
Ato 3: amanhã
Em 2020, em plena pandemia de covid-19, Mujica aposentou-se do Senado. Num discurso em que agradeceu e recordou, disse:
— O ódio é fogo como o amor, mas o amor é criativo e o ódio nos destrói. Tenho uma boa quantidade de defeitos, sou apaixonado, mas no meu jardim não cultivo o ódio há décadas, porque aprendi uma dura lição que a vida me impôs, que o ódio acaba estupidificando, nos faz perder a objetividade (.. .) Triunfar na vida não se trata de ganhar, trata-se de levantar e recomeçar cada vez que cair (…) Há a hora de chegar e há a hora de partir. E agora tenho que dizer adeus.
E, no entanto, não desapareceu, não desapareceu.
Quem o conhece, quem o acompanha, quem atua nele, diz que é difícil pensar em um tempo sem ele. Que o Uruguai não será o mesmo sem a sua irreverência, sem as suas convicções absolutas, sem a sua militância, sem as suas pausas. Que num momento sem referências, com ele irá o último intelectual do nosso tempo, o último homem a quem todos, no encontro e no desencontro, ouvem, um dos últimos políticos de gerações que foram os protagonistas do Uruguai democrático — Danilo Astori, Tabaré Vázquez, Luis Alberto Lacalle, Jorge Batlle, Julio María Sanguinetti. Dizem que sim, claro, que é inevitável, que haverá um futuro sem ele, aquele em que tanto pensou. Dizem que sim, claro, que haverá um Uruguai sem a sua presença. Dizem que será devastador. Dizem que, nesse dia, vão pensar no seu legado, nas suas ideias, nas suas flores e nas suas árvores, nas suas contradições, nos seus sucessos, no seu desejo de liberdade, nas suas utopias. E então continuarão.
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Como no dia 19 de junho, hoje, sábado, 19 de outubro, às três da tarde, tudo se repete: os carrinhos de choripanes e tortafritas, as barracas de brinquedos – carrinhos de plástico, lanternas coloridas, bonecos de paraquedas, lançador de bolinhas de sabão –, os alto-falantes, as bandeiras, os balões.
É o ato de encerramento da campanha para as eleições nacionais da lista 609, mas, desta vez, ao contrário do que fizeram naquela noite no teatro El Galpón, organizaram um grande movimento que gerou ruído.
Fica na Praça 1° de Maio, próximo ao Palácio Legislativo. Montaram um palco enorme, com luzes, amplificadores de som. E fazem uma festa: tocam oito músicos e bandas de todos os gêneros e de todos os ritmos — tem murga, plena, folclore, cumbia.
É uma tarde de primavera que parece verão. Quando o sol se põe no Rio La Prata, a praça transborda de gente. As bandeiras da Frente Ampla se destacam no meio da multidão. Blanca Rodríguez, Alejandro Sánchez e Lucía Topolanski falam primeiro. Por fim, Yamandú Orsi entra em cena.
Desde o anúncio de Blanca Rodríguez ao MPP, Mujica estave em casa. De vez em quando, Topolanski falava com a mídia, dando atualizações sobre a saúde do marido como se fossem relatórios médicos. Dizia que Pepe estava bem, mas fraco, que não conseguia se alimentar, que três vezes ao dia colocavam uma sonda para lhe dar comida.
Sua presença não estava planejada para hoje e, ainda assim, em algum momento, sem qualquer aviso, Topolanski anuncia:
— O último ciclista chegou e está aqui.
Mujica entra no palco andando. Está mais magro do que da última vez que apareceu em público. Seu rosto parece ter mil anos. Senta lentamente. Pega o microfone. Diz:
— Peço um minuto de coração. É a primeira vez nos últimos 40 anos que não participo duma campanha eleitoral. E faço isso porque estou lutando com a morte, porque estou no final do jogo, absolutamente convencido e consciente, mas tive que vir hoje, aqui, por causa do que vocês simbolizam, porque tenho fresco em minha retina, a primeira mateada com 20, 20 e pouco mais ou menos, em La Teja, há 40 anos, e agora encontro uma multidão. Sou um ancião que está muito perto de ir para um lugar onde não se pode voltar, mas estou feliz porque vocês estão aqui. Porque quando meus braços se forem, haverá milhares de braços para subistituí-los na luta. Toda a minha vida eu disse que os melhores líderes são aqueles que deixam um bastão que os supera com vantagem. E hoje estão vocês.
O povo faz um silêncio de igreja. De vez em quando alguém grita, mas o grito é cuidadoso, como se não quisesse quebrar nada, atrapalhar nada. Alguns choram com a tristeza de uma despedida. Mujica se levanta.
—Hoje vim agradecer do fundo do meu coração. (…) Obrigado por existir. Até sempre.
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