Por: Leandro Prazeres | Crédito Foto: Reuters
Pressionada pelo aumento consistente no número de queimadas no país, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, declarou que havia suspeitas de que uma série de incêndios em São Paulo neste mês poderia ter sido orquestrada, repetindo um episódio que ficou conhecido como “Dia do Fogo”, em 2019.
A comparação feita por Marina na semana passada jogou luz sobre um assunto que parecia estar esquecido: afinal, o que aconteceu com os responsáveis pelo “primeiro” Dia do Fogo de cinco anos atrás?
Uma apuração da BBC News Brasil revela que, cinco anos depois do suposto primeiro “Dia do Fogo”, as duas investigações em nível federal sobre o assunto foram arquivadas no primeiro semestre deste ano, sem que ninguém tenha sido indiciado, denunciado ou julgado pelo episódio.
Em nota enviada à BBC News Brasil na terça-feira (27/8), o Ministério Público Federal (MPF-PA) informou que as investigações não conseguiram chegar a uma conclusão sobre o episódio.
“As investigações não lograram êxito em obter elementos de convicção para a propositura de denúncia pelo MPF”, disse um trecho da nota enviada pelo MPF-PA.
Os inquéritos, segundo o MPF-PA, foram arquivados em fevereiro e em junho deste ano, mas a informação só foi revelada agora.
A Polícia Federal (PF), por sua vez, afirmou que abriu um inquérito policial para investigar ocorrências na cidade de Novo Progresso, mas esse acabou arquivado.
“A principal hipótese investigada apontava para a participação de um grupo composto por sindicalistas, produtores rurais, comerciantes e grileiros, que teriam agido de forma coordenada. Durante o curso do inquérito, foram cumpridas medidas de busca e apreensão, mas o Relatório Final não confirmou a hipótese inicialmente aventada e sugeriu o arquivamento do procedimento”, afirmou a PF.
A BBC News Brasil também procurou o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) e a Polícia Civil do Pará (que também abriu uma investigação sobre o episódio).
O MJSP pediu que as questões sobre o caso fossem enviadas à PF. A Polícia Civil do Pará não respondeu.
Ambientalistas avaliam que a falta de responsabilização pelo Dia do Fogo de 2019 fortalece a sensação de impunidade em relação a crimes ambientais no Brasil.
Queimadas em sequência
O “Dia do Fogo” é como ficou conhecido uma série de incêndios florestais em Novo Progresso, no sudoeste do Pará, entre os dias 10 e 11 de agosto de 2019.
À época, houve a suspeita de que os incêndios foram combinados por fazendeiros do oeste e sul do Pará como forma de demonstrar apoio ao então presidente Jair Bolsonaro (PL). Naquele momento, o governo vinha sofrendo pressões domésticas e internacionais pelo aumento no número de incêndios na Amazônia.
As suspeitas de que as queimadas em municípios como Novo Progresso haviam sido combinadas surgiram após um veículo jornalístico da cidade publicar uma reportagem informando que empresários e fazendeiros da região haviam combinado os incêndios por meio de um grupo de WhatsApp.
As suspeitas ganharam corpo em função do aumento significativo de incêndios no Estado em agosto daquele ano.
Naquele mês, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o Pará registrou 10.185 incêndios. No mesmo mês do ano anterior, o número foi de 2.782, um crescimento de 290%.
Queimadas são normalmente utilizadas por fazendeiros e grileiros em regiões como a Amazônia com o objetivo de remover a vegetação nativa e abrir espaço para a plantação de pasto para a pecuária.
Nem toda queimada é ilegal, mas para que seja considerada regular, é preciso uma autorização do órgão ambiental local.
Cinco anos e nenhum indiciado
A repercussão negativa do episódio fez com que a Polícia Federal e o Ministério Público Federal no Pará (MPF-PA) abrissem dois inquéritos para investigar o caso.
Em outubro de 2019, a PF deflagrou a operação “Pacto de Fogo” e cumpriu quatro mandados de busca e apreensão em endereços de empresários e fazendeiros de Novo Progresso. Ninguém foi preso na ocasião.
Os policiais apreenderam notebooks, telefones celulares, HDs e anotações que foram alvo de perícia.
À época, o delegado responsável pelo caso, Sérgio Pimenta, declarou à revista Globo Rural que haveria indícios de que o “Dia do Fogo” havia sido, de fato, combinado via WhatsApp.
“A Polícia Federal ouviu oito pessoas que confirmaram os episódios do “Dia do Fogo”, disse o delegado, segundo a revista.
Ainda de acordo com o delegado, os incêndios teriam sido combinados em três grupos de WhatsApp e os administradores deles excluíam integrantes que não fossem considerados confiáveis.
Apesar dos indícios, nenhum dos empresários e fazendeiros inicialmente investigados chegou a ser indiciado.
Entre eles, está o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Novo Progresso, Agamenon Menezes.
Ele chegou a ser alvo de mandado de busca e apreensão e prestou depoimento à Polícia Federal. Ele teria sido apontado como um dos integrantes dos grupos de WhatsApp onde o “Dia do Fogo” teria sido organizado.
À BBC News Brasil, Menezes classificou a polêmica em torno do “Dia do Fogo” como uma farsa.
“Nunca existiu esse Dia do Fogo. O que houve foi uma mensagem de WhatsApp que colocaram na rede e pegaram isso para fazer um escândalo. Isso tudo foi uma farsa. Houve fogo, sim, mas isso é coisa natural que sempre tem todo ano. Neste ano, aliás, está pior do que antes”, disse Menezes em entrevista nesta terça (27).
Liderança em queimadas e impunidade
Ambientalistas ouvidas pela BBC News Brasil avaliam que o arquivamento das investigações e o fato de ninguém ter sido punido pelo “Dia do Fogo” de 2019 aumentam a sensação de impunidade em relação a crimes ambientais.
“Há um cenário de impunidade e uma sensação de que o crime ambiental compensa”, disse à BBC News Brasil a porta-voz de Florestas do Greenpeace Brasil, Thais Banwart.
Banwart disse que o Greenpeace Brasil realizou um estudo com dados ambientais e financeiros públicos e constatou que houve um crescimento da área destinada à agropecuária na região onde ocorreu o “Dia do Fogo”.
Segundo ela, propriedades onde foram constatadas queimadas naquele período chegaram a acessar financiamentos públicos com taxas subsidiadas.
“Ou seja: o proprietário faz a queimada, não é responsabilizado nas esferas civil e criminal e ainda consegue acesso a crédito rural a taxas mais baixas que as de mercado”, disse a porta-voz.
Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) coletados pela BBC News Brasil apontam que mesmo após a repercussão negativa do “Dia do Fogo” cinco anos atrás, a região continua a liderar o ranking de incêndios florestais em todo o Brasil.
De acordo com o Programa Queimadas, do Inpe, Novo Progresso é o quarto município com o maior número de queimadas detectadas neste ano, com 2.292, perdendo apenas para Corumbá (MS), com 4.243; Apuí (AM), com 3.401; e Lábrea (AM), com 2.464.
Para a ex-presidente do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e atual coordenadora de Políticas Públicas da organização não-governamental Observatório do Clima, Suely Araújo, o desfecho das investigações no Pará pode impulsionar o crime ambiental.
“Essa não responsabilização sobre o que aconteceu no Dia do Fogo, que foi orquestração criminosa, é muito ruim e acaba impulsionando a possibilidade de novas ocorrências similares. Isso, inclusive, já pode estar acontecendo”, disse Araújo.
Segundo ela, há uma ligação direta entre a impunidade e o fato de Novo Progresso, palco do “Dia do Fogo”, continuar entre os líderes no número de queimadas no Brasil.
“A impunidade sempre tem relação com a continuidade das infrações ambientais, e o Brasil tem dificuldade em impor essa responsabilização”, afirmou Araújo.
Veja em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cz6xypqn53vo
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