A infraestrutura prometida foi risível – e obras estão paradas até hoje. 170 mil pessoas sofreram remoções forçadas. Cidades-sedes foram gentrificadas. E a Fifa submeteu o país a seus esquemas de corrupção. Mas este legado desolador é pouco relembrado…
Por: Mauro Donato | Crédito Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
Estivesse a partida ainda em andamento, o placar estaria em torno de 9.382.746 a 1, ou qualquer outro número estratosférico, para atualizarmos a brincadeira a respeito da maior goleada já sofrida pela seleção brasileira de futebol masculino em 100 anos. Um placar tão desmoralizante, que representou o naufrágio daquela Copa do Mundo no Brasil, em tudo descabida e descabeçada.
Descabida num país deficiente em suprir necessidades primárias e direitos básicos como saúde, educação, moradia. Neste último quesito é ainda pior: não apenas não assegura o direito de parcela considerável da população, como o evento desabrigou centenas de milhares de pessoas. Segundo o Dossiê Megaeventos e Violações dos Direitos Humanos no Brasil, foram cerca de 170 mil remoções pelos dados da Ancop – Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa.
Para avaliar os impactos ocasionados pelas intervenções do megaevento e debater a preparação das cidades, sobretudo na questão das moradias, ainda em 2011 nasceu em São Paulo o Comitê Popular da Copa, ampliado para Ancop pouco tempo depois, com atuação nas 12 cidades-sede em apoio aos movimentos sociais das comunidades atingidas. A lista de lutas abrangeu o monitoramento das inúmeras violações da Lei Geral da Copa, uma lei recheada de ingerências e arbitrariedades como exigir a revogação do Estatuto do Torcedor que proibia o consumo de bebidas alcoólicas, proibia as baianas de vender acarajés em frente ao estádio Fonte Nova, a instalação dos tribunais de exceção no entorno dos estádios, o acompanhamento das mortes de trabalhadores na construção de estádios (foram 9, pelo Anuário Estatístico de Acidentes de Trabalho – AEAT), os processos de exclusão social e a subtração higienista da população em situação de rua. Uma preocupação fundamentada na experiência da Copa anterior, na África do Sul, quando milhares de moradores de rua de Johannesburgo foram recolhidos e enviados para um campo similar ao de refugiados e 30 quilômetros distante.
Como previsto, a gentrificação trouxe os efeitos colaterais mais graves e traumáticos. Comunidades inteiras foram despejadas, sem sequer a contrapartida dos tão propalados legados da Copa. Em virtude de obras de ampliação do metrô para atender a demanda dos turistas futeboleiros, as favelas do Buraco Quente e Comando, em São Paulo, tiveram suas 400 famílias retiradas à força e, uma década depois, nem receberam os apartamentos da CDHU prometidos, nem o metrô está pronto ali. Em Porto Alegre, aproximadamente 2.400 famílias foram removidas de locais como a Vila Tronco – também para a realização de obras – e muitas estão em vias de sofrer um novo despejo devido o não recebimento do auxílio aluguel, cujo valor as obriga a morar em áreas pobres, normalmente sem energia elétrica ou esgoto. Muitas foram para o bairro Nonoai, à beira do arroio Passo Fundo, o que permite afirmar que provavelmente hoje tenham sido despejadas pelas águas em consequência de outra incompetência da prefeitura da capital gaúcha.
As ínfimas indenizações (quando ocorrem) ou a interrupção nos pagamentos do auxílio-aluguel, transformam muitas dessas pessoas nos sem-teto dos grandes centros urbanos.
A realização de uma Copa do Mundo era igualmente desnecessária, inoportuna, em razão do evento implicar o governo, qualquer que seja ele, a envolver-se com uma entidade como a Fifa (Federação Internacional de Futebol). Governo nenhum precisa atrair para si mais desconfiança do que a intrínseca à condição de estar no poder. Como sabido, em muitas situações não basta ser honesto, é preciso parecer honesto. E a Fifa, no papel, é uma organização sem fins lucrativos que na prática funciona como um imenso balcão de negócios escusos. Antes mesmo do início da Copa, a entidade ameaçava processar judicialmente as cidades-sede dos jogos que não realizassem as Fan Fests, eventos com telões, shows e, obviamente, muita cerveja. É de se perguntar por que uma organização sem fins lucrativos tem tanto interesse nisso.
Para além de especulações, vamos ao que é fato. No Copacabana Palace, 24 horas antes do famigerado jogo contra a Alemanha que terminaria 7×1, ocorreu a detenção de Ray Whelan, CEO da Match, empresa que possuía contrato de exclusividade junto à Fifa para a venda de pacotes de ingressos. O texto oficial, divulgado na época da concessão de exclusividade, denotava preocupação com as vendas de ingressos por cambistas: “O acordo fortalece ainda mais a luta da Fifa contra a venda não autorizada de ingressos. Graças a sua experiência e sua infraestrutura de monitoramento, a Match terá condições de auxiliar a Fifa a reforçar os dispositivos que regulamentam a venda de pacotes, prevenindo de maneira eficaz vendedores não autorizados”. Pois Ray Whelan foi detido uma semana depois da prisão do mega cambista argelino Lamine Fofana, também no Brasil. A suspeita de ligação entre os dois levou às acusações de lavagem de dinheiro, associação criminosa e comércio ilegal (quem diria) de Ray Whelan. A Match também tinha entre seus sócios Philippe Blatter, sobrinho de Joseph Blatter, o então presidente da Fifa. Antes de se tornar sócio, Philippe Blatter atuara na Infront, outra empresa que também havia ganhado generosos contratos de direitos de marketing e de transmissão de TV para a Copa do Mundo na Alemanha. Coincidentemente ou não, a Infront ocupava o mesmo conjunto de escritórios da ISL, cujo gerente de marketing era Jean-Marie Weber, conhecido como “homem da mala” que distribuiu 100 milhões de dólares em propinas a dirigentes esportivos, incluindo João Havelange, quando ele era presidente da Fifa, e seu genro Ricardo Teixeira, então presidente da CBF (Confederação Brasileira de Futebol). A gestão Ricardo Teixeira gerou até CPI no Congresso Nacional.
O emaranhado acima é apenas um aperitivo sobre os bastidores da Fifa e seu desnovelo daria um ou vários livros (Um jogo cada vez mais sujo, do inglês Andrew Jennings, é indicado para quem deseja se aprofundar no assunto). Pelo histórico de ocorrências da entidade máxima do futebol, causa espécie o governo federal que acredite sair ileso ao se avizinhar daquele submundo. No caso brasileiro, ainda que a intenção fosse a de não lambuzar as mãos nas negociatas que fazem a engrenagem da Copa do Mundo funcionar, a própria inversão de prioridades, como já mencionado, chamaria atenção. Pela prestação de contas do Ministério do Esporte sobre a Copa do Mundo de 2014, publicado em 2017, o orçamento total do evento ficou em R$ 27,1 bilhões. R$ 8,5 bilhões foram gastos nas construções de estádios e 80% desse total foi financiado pelo setor público. Novamente a pergunta: num país em que quase 1/4 da população não tem acesso ao saneamento básico (dados do Censo Demográfico do IBGE de 2022), hospitais sem recursos e escolas precarizadas, precisava de Copa? Para quem?
O argumento de que o legado seriam as infraestruturas demandadas para o megaevento, dez anos depois é risível. A arena Amazonas foi construída num estado em que o time melhor colocado disputará a série D do Brasileirão no ano que vem. A arena Pantanal até hoje não teve a obra concluída para que sua finalidade multiuso possa ser efetivada. Se a própria escolha por locais de pouca ou nenhuma tradição no futebol já era indefensável, o que dizer de sistemas de transporte prometidos para antes de 2014 e ainda não entregues em 2024?
Vencer a Copa do Mundo de Futebol é historicamente associado a um suposto aumento da autoestima do povo, o que é passível de debate. Mas se o esquálido 2×1 na final contra o Uruguai no Maracanã em 1950 foi um trauma nacional que perdura até hoje, o que seria aquela avalanche de gols da Alemanha no orgulho nacional? Depois que a camisa da seleção se transformou em uniforme da direita golpista e carregou a nação para o pior período da história recente democrática, o 7×1 tornou-se café pequeno.
Comente aqui