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França Insubmissa enfrenta um caminho enigmático pela frente

Nas eleições francesas de julho, o France Insoumise (França Insubmissa) de Jean-Luc Mélenchon superou novamente as expectativas. O foco no líder e no programa tem se provado uma boa estratégia eleitoral, mas sua estrutura excessivamente centralizada arrisca minar sua sustentabilidade a longo prazo.

Por: Manuel Cervera-Marzal e Rémi Lefebvre | Tradução: Sofia Schurig | Crédito Foto: (Francois Lo Presti / AFP via Getty Images). O líder do partido de esquerda francês France Insoumise, Jean-Luc Mélenchon, faz um discurso em Lille, França, em 18 de abril de 2024.

OFrance Insoumise, criado em janeiro de 2016 para servir como um veículo para a campanha presidencial de Jean-Luc Mélenchon, é hoje uma força com setenta e um membros da Assembleia Nacional e um financiamento público anual de cerca de 5 milhões de euros. Seus resultados nas eleições presidenciais e parlamentares, como seu desempenho forte na última votação desse tipo em julho, são inigualáveis em comparação com suas pontuações em contestações europeias ou locais. No entanto, este movimento se estabeleceu como o centro de gravidade para a esquerda francesa ao longo de muitos anos.

Em 2017, Mélenchon conquistou o maior número de votos para um candidato à esquerda do Partido Socialista na história da Quinta República. Em 2022, adicionou mais setecentos mil votos, alcançando 22% de apoio. É verdade que isso não foi suficiente para ganhar a presidência ou mesmo chegar ao segundo turno contra Emmanuel Macron. Ainda assim, enquanto após o aumento de 2015–19, a maioria das forças radicais de esquerda na Europa está em retração (Podemos, Syriza, Jeremy Corbyn, Bloco de Esquerda, etc.), o France Insoumise continua em frente — como o que Mélenchon chama de uma “tartaruga astuta.”

Apesar das previsões frequentes da morte política de Mélenchon, isso nunca se concretiza na prática. Nas eleições parlamentares do mês passado, os institutos de pesquisa e a mídia previram a vitória do Rassemblement National, de extrema direita. No entanto, a coalizão de esquerda, liderada pelo France Insoumise, conquistou o maior número de cadeiras. Essa foi, sem dúvida, uma vitória relativa: a Nova Frente Popular da Esquerda tem 178 cadeiras, em comparação com 162 do campo de Emmanuel Macron e 142 do Rassemblement National. Mas isso mais uma vez testemunha a longevidade de Mélenchon. Então, que avaliação podemos fazer, após oito anos do France Insoumise?

Com base em uma pesquisa de longo prazo sobre ativistas, quadros, funcionários e representantes eleitos do France Insoumise, e utilizando conhecimento sociológico sobre partidos políticos, neste ensaio queremos lançar luz sobre uma série de dilemas (parcialmente sobrepostos) que este movimento enfrenta. De fato, preferimos falar em termos mais abertos de dilemas enfrentados — escolhas insatisfatórias, mas necessárias — em vez de “lições” unilaterais desta experiência. Os dilemas dos quais estamos falando vêm especificamente do caso francês. Mas são colocados de uma forma ou de outra a qualquer partido político que busca um cargo governamental em uma perspectiva anticapitalista.

Ganhar ou protestar?

Aquestão “ganhar ou protestar” pode parecer incongruente. Mas precisa ser feita: o France Insoumise realmente quer governar? Ou está satisfeito simplesmente em tentar fazer se ouvir a voz dos esquecidos — o que antigamente era chamado de papel de uma “tribuna popular”? Dois pensamentos parecem coexistir tanto no France Insoumise quanto em seus aliados na Europa. Por um lado, existe a cultura dos vencedores. Isso é frequentemente encontrado entre ex-social-democratas que têm familiaridade com os pormenores do poder, mas também entre jovens quadros com um perfil mais tecnocrático. Mas também, há uma ética minoritária mais comum entre ativistas de extrema esquerda, que colocam a convicção política acima da responsabilidade governamental e que têm pouca fé de que as instituições políticas atuais possam transformar a sociedade.

Os partidos da chamada esquerda populista estão divididos entre a mobilização social e o Estado, entre sua origem e seu objetivo final. Seu desafio ao sistema atual coexiste com a participação eleitoral com o objetivo explícito de conquistar o poder. Para alcançar o governo, o France Insoumise precisa captar o maior eleitorado possível, o que pode envolver a moderação de sua oferta programática, a construção de uma imagem respeitável e a realização de certos compromissos.

No entanto, isso certamente trará algumas dificuldades para um partido cujo próprio nome remete aos seus instintos ‘rebeldes’. Ao buscar a normalização — como o deputado dissidente François Ruffin tem defendido desde 2021, antes de se separar do France Insoumise — corre o risco de obscurecer sua identidade de protesto, tornando-se ilegível para seus próprios apoiadores e alienando os ativistas mais ligados à sua definição radical. Por outro lado, ao cultivar seu perfil subversivo, o France Insoumise arrisca minar suas chances eleitorais.

“Os partidos da chamada esquerda populista estão divididos entre a mobilização social e o Estado, entre sua origem e seu objetivo final.”

O exemplo do Syriza na Grécia, bem como os governos latino-americanos dos anos 2000, demonstrou que a esquerda populista não se restringe ao papel de desestabilizadora ou de marionete da social-democracia. Mas mesmo vencer uma eleição é apenas o começo da batalha. Governos da esquerda-populista enfrentam o poder financeiro, a resistência das camadas superiores da administração pública e as elites midiáticas e políticas que defendem seus interesses e o estado atual.

A forma como a Troika Europeia forçou o governo de Aléxis Tsípras à submissão mostra que ter um programa radical não é suficiente. As condições para sua aplicação também precisam ser atendidas. Sem uma pressão popular massiva e a solidariedade de pelo menos alguns parceiros internacionais, um governo de esquerda-populista tem grandes chances de ceder à pressão adversa dos mercados financeiros.

Senso comum

Inspirados pelo marxista italiano Antonio Gramsci (ou pela sua ideia dele), os líderes do France Insoumise estão convencidos de que a política é uma questão de “hegemonia”. Para ganhar uma eleição, eles devem primeiro vencer a batalha das ideias, derrotando os mitos persistentes sobre o “fim da história”, “não há alternativa” e o “conflito das civilizações.” Daí a energia que o France Insoumise investe nas redes sociais e na comunicação pública.

Daí também a presença rotineira de seus representantes em canais de notícias ostensivamente populares. O neoliberalismo devastou nossas imaginações, fazendo com que cada indivíduo se visse como um empreendedor e tudo como uma fonte de lucro. Em um clima assim, é difícil para uma força política que defende um valor tão antiquado quanto a ajuda mútua ser ouvida. Daí a prioridade de lutar no nível das ideias.

Mas a batalha cultural não está perdida de antemão? O que podem fazer cerca de vinte mil militantes do France Insoumise — por mais talentosos e determinados que sejam — diante de quarenta anos de propaganda neoliberal? E quanto ao condicionamento em massa para a “competitividade”, a individualização das condições de trabalho, a desintegração da solidariedade coletiva — ou mesmo os batalhões de lobistas e comunicadores profissionais cujo orçamento é infinitamente maior que o do France Insoumise?

Nessas condições, não seria o papel de um partido político abordar os eleitores como eles são, em vez de como gostaríamos que fossem? Intelectuais, jornalistas, professores, cineastas, escritores, cantores e artistas estão lá para mudar o senso comum. Não deveria o candidato concentrar-se em ganhar a eleição, mesmo que isso exija silenciar propostas que possam alienar segmentos decisivos do eleitorado? Em outras palavras: A missão de uma força eleitoral é transformar o senso comum ou adaptar-se a ele?

Os tratados europeus e internacionais das últimas décadas organizaram a privatização dos serviços públicos e o confronto entre os trabalhadores em nome da “competitividade.”

Esse dilema é muito real. No caso do Podemos na Espanha, ele se manifestou em torno de temas inflamáveis como a independência da Catalunha e a abolição da monarquia. Para o France Insoumise, esse dilema gira em torno de questões espinhosas como a saída da União Europeia e o tratamento dos imigrantes. Os populistas de esquerda têm uma opinião divisiva sobre esses assuntos e se dividem regularmente sobre a conveniência de avançar com essas opiniões. Deve-se, por exemplo, deixar de lado taticamente o apelo para desafiar os tratados da UE ou a demanda para regularizar todos os trabalhadores não documentados, a fim de maximizar as chances de vitória eleitoral?

Nacional e transnacional

Araiz dos males que afetam as classes média e trabalhadora está, em parte, no nível supranacional. Os tratados europeus e internacionais das últimas décadas organizaram a privatização dos serviços públicos e o confronto entre trabalhadores em nome da “competitividade.” Com base nessa observação, o France Insoumise critica severamente os órgãos supranacionais, sejam eles públicos (União Europeia, Banco Central Europeu, Fundo Monetário Internacional) ou privados (multinacionais, lobbies, agências de classificação). Para restaurar a soberania ao povo, o France Insoumise defende um retorno ao nível nacional.

Mas a soberania nacional não é automaticamente sinônimo de soberania popular. Embora seja verdade que a classe capitalista está, no momento, organizada em escala global, também é verdade que a luta de classes continua a ser travada dentro de cada nação-estado. Não devemos esquecer que as elites políticas nacionais, que tentam evitar a responsabilidade referindo-se à pressão de “Bruxelas”, organizaram elas mesmas o esvaziamento de seus próprios poderes em favor de órgãos distantes e não eleitos. Também não devemos esquecer que os governos franceses começaram a privatizar e introduzir austeridade sem esperar que tais práticas fossem impostas pelas regulamentações da UE.

Assim, o France Insoumise está travando sua batalha em duas frentes: tanto no nível nacional quanto no transnacional. Alianças estão sendo forjadas em nível europeu, como em 2019, quando a plataforma “Agora o Povo” reuniu Podemos, France Insoumise, Bloco de Esquerda e três partidos nórdicos para empreender uma campanha conjunta contra a evasão fiscal. No dia 8 de novembro de 2020, em La Paz, os mesmos partidos assinaram uma declaração transcontinental com seus aliados da Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador e Peru para alertar contra a propagação global da extrema direita.

Mas, apesar dessas iniciativas, o France Insoumise dedica a maior parte de sua energia à política de nível nacional. Ao se engajar na arena eleitoral, o France Insoumise está necessariamente sujeito a esse quadro. Seu modo preferido de ação (eleições nacionais) está, portanto, desalinhado com sua análise (da importância do nível transnacional). Pode uma estratégia populista, que tem um forte componente patriótico, adquirir uma dimensão cosmopolítica?

Esse “cosmo-populismo” de esquerda já existe em forma embrionária e, notavelmente, liga cidades em vez de países. Em setembro de 2015, por exemplo, a prefeita de Barcelona, Ada Colau, iniciou uma rede de cidades refugiadas no meio da crise migratória. Enquanto os estados membros da União Europeia se enfrentavam para determinar quem suportaria o fardo do influxo de migrantes, sessenta municípios — frequentemente ligados à esquerda populista — demonstraram solidariedade de duas maneiras: em relação uns aos outros (Barcelona, por exemplo, ofereceu-se para receber migrantes que haviam chegado em Atenas) e em relação aos refugiados (oferecendo-lhes abrigo, ajuda material e suporte legal).

Personalizado e democrático

Um segundo conjunto de dilemas está mais especificamente relacionado à forma organizacional do France Insoumise. O partido não se vê como um partido, mas sim como um movimento que seu líder teorizou como uma formação “gasosa” (sic). Não pretende reproduzir as deficiências dos partidos tradicionais (como o Parti Socialiste), considerados muito burocráticos, dominados por notáveis e enterrados em intrigas internas. Mélenchon gosta de dizer que prefere “viajar leve” (sem a complicação de uma organização pesada), mas será que o France Insoumise pode ir longe? Qual forma organizacional a esquerda deve adotar se quiser ser uma força para a transformação social?

Talvez a esquerda não precise tanto de ideias quanto dos meios (partidos e sindicatos, em particular) para promovê-las e construir uma maioria social que possa se unir a elas e, de maneira mais geral, politizar a sociedade. Os partidos estão em declínio, mas a ação organizada de longo prazo (na forma de partidos que precisam ser reinventados) não perdeu sua necessidade política e estrutural. A solução, no entanto, não pode ser um retorno puro e simples ao bom e velho partido de massa. A sociedade mudou. O contexto demográfico, econômico e tecnológico que moldou o surgimento inicial dos partidos não existe mais.

“Nos partidos políticos, é o líder individual que representa uma ‘marca’ que confere notoriedade e legitimidade ao coletivo.”

Nossos tempos são marcados pelo retorno de figuras de autoridade (Donald Trump, Vladimir Putin, Xi Jinping, Jair Bolsonaro, mas também Emmanuel Macron) e pela personalização acentuada. Isso é incentivado pela mudança tecnológica (primeiro a TV, depois a internet) e, na França, pela centralidade da disputa presidencial — a mãe de todas as batalhas eleitorais. Nos partidos políticos, agora é o líder individual quem representa uma “marca” que confere notoriedade e legitimidade ao coletivo. O que teria acontecido com o Movimento Cinco Estrelas ou com o Podemos sem a visibilidade midiática de figuras como Beppe Grillo ou Pablo Iglesias? O que é o France Insoumise sem seu líder, Mélenchon? Já não é o partido que faz o candidato, mas vice-versa (e o France Insoumise foi criado em 2016 com isso em mente).

Como Ernesto Laclau teorizou em On Populist Reason, a figura do “hiperlíder” também deve realizar e simbolizar a unidade de uma massa popular que está mais fragmentada e atomizada do que nunca. Mas essas tendências para a personalização e a importância dos líderes são acompanhadas, a nível social, por uma demanda crescente por democracia real, expressa através da série de protestos iniciados em 2011 com as revoluções árabes, ou novas expectativas democráticas nos sistemas políticos.

Os sistemas representativos são equilíbrios precários entre o poder de uma minoria (representantes eleitos) e o consentimento ativo ou passivo da maioria (eleitores). Esse equilíbrio, que tem se mantido bem por dois séculos, parece estar à beira do colapso. A escolha está entre autoritarismo e democracia. Para qual lado o France Insoumise pende a balança?

A resposta que vem mais espontaneamente é: democracia. Seu programa visa tornar realidade o ideal muito abusado da igualdade. No dia a dia, os ativistas do France Insoumise estão envolvidos em quase todas as batalhas pela justiça social. Ninguém pode duvidar da sinceridade de seu compromisso. No entanto, resta uma dúvida: quando vemos como Mélenchon controla seu movimento, suas finanças, suas orientações estratégicas e suas nomeações para eleições, começamos a esperar que ele não governaria seu país da mesma forma.

Os princípios da Sexta República que o France Insoumise propõe — uma mudança constitucional prometida para acabar com a “monarquia presidencial” — dificilmente inspiram o modo como esse movimento opera. O France Insoumise certamente responderia que a maneira como assume o poder não predetermina a maneira como pretende exercê-lo posteriormente.

O histórico misto de seus parceiros latino-americanos mostra o quão delicado é o problema. Por um lado, os “governos socialistas do século XXI” (Hugo Chávez, Rafael Correa, Evo Morales, etc.) reduziram a pobreza, a iletracia e a desigualdade. Eles também estabeleceram mesas de votação em regiões onde não havia nenhuma e incentivaram as classes trabalhadoras a se registrarem para votar.

Por outro lado, eles jogaram a carta da liderança carismática, cujos riscos e excessos são bem conhecidos, e nem sempre se comportaram de maneira exemplar com relação ao pluralismo político. Ainda assim, é bom lembrar que a oposição da direita — apoiada pelos meios de comunicação, os grandes interesses econômicos e Washington — é muito mais feroz na América Latina do que na França ou na Europa. Os conflitos políticos são mais violentos. A história e o contexto são diferentes.

“Se duas almas — horizontal e vertical — coexistiram no início, a última acabou prevalecendo.”

O sociólogo Albert Otto Hirschman identificou famosamente três opções abertas a um membro insatisfeito de uma organização: saída, voz ou lealdade. Muitos ativistas e quadros saem do France Insoumise batendo a porta atrás de si, incapazes de fazerem suas vozes serem ouvidas. Como escreveu Charlotte Girard, uma das figuras históricas do movimento que saiu em 2019: “Você não pode expressar desacordo.” Mais geralmente, há uma alta rotatividade de ativistas.

 

Saiba mais em: https://jacobin.com.br/2024/08/o-france-insoumise-enfrenta-um-caminho-enigmatico-pela-frente/

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