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França x Telegram: bastidores e geopolítica

Mais um barão das Big Techs busca livrar-se da autoridade dos Estados. Ao reaproximar-se de Moscou, Pavel Durov virou alvo de Paris. Mas ajudou a colocar a ultradireita ucraniana no poder – e orgulha-se da política de “zero moderação”

Por: Pablo Elorduy, no El Salto | Tradução: Rôney Rodrigues

Pavel Durov, criador e proprietário do Telegram, a terceira rede de mensagens mais importante do mundo, atrás apenas do Whatsapp e do Facebook Messenger (ambos da Meta), terá de depositar uma caução de cinco milhões de euros, comparecer duas vezes por semana na delegacia e está proibido de sair do território francês. Com as medidas de precaução tomadas em 28 de agosto, chega ao fim um episódio iniciado no dia 24.

Seu caso é inédito até agora, já que ele é o primeiro magnata da economia da atenção a enfrentar um julgamento criminal pela atividade realizada na plataforma que dirige. As autoridades francesas emitiram o mandado de prisão em março passado, embora só na sua chegada a Paris é que Durov foi detido e os motivos concretos da denúncia foram revelados. Segundo o site Politico, além do mandado de prisão contra Pavel Durov, a face visível do Telegram, também foi emitido um mandado contra seu irmão Nikolai, considerado o cérebro tecnológico da empresa.

Durov, que foi detido no sábado, 24 de agosto, no aeroporto Le Bourget, em Paris, quando o seu avião privado aterrissou vindo do Azerbaijão, nasceu na Rússia há 39 anos. O magnata mora desde 2013 nos Emirados Árabes Unidos, país para o qual tem passaporte, além de nacionalidade do paraíso fiscal de São Cristóvão e Névis, tal como seu irmão Nikolai. Pavel Durov também possui passaporte francês, conforme publicado pelo Le Monde, resultado de um processo express de nacionalização realizado em 2021 através de um “procedimento excepcional e altamente político” destinado a VIPs.

Com o passar dos dias, as informações sobre as causas da sua prisão tornaram-se mais refinadas. A ação judicial se deve à falta de cooperação do Telegram na identificação de um determinado usuário, suspeito de ter cometido crimes de abuso sexual contra menores. As acusações específicas limitaram-se a “cumplicidade no crime de disponibilização sem motivo legítimo de programa ou dados destinados à distribuição organizada de imagens de menores que apresentam pornografia infantil e tráfico de drogas”.

Não há indícios, aponta o processo, de que os Durov estejam envolvidos em atividades criminosas, mas o Telegram é acusado de ter se recusado a entregar dados de “arquivos sujos” e de ter uma política de laissez-faire, deixando as coisas passarem sem moderação de conteúdo ou cooperação com as autoridades. A Procuradoria de Paris detalhou as doze acusações pelas quais Durov foi interrogado, podendo enfrentar uma pena de dez anos de prisão e uma multa de 750 mil euros.

Mas, no atual contexto internacional, a prisão de Durov foi mais um episódio de desestabilização política e, como tal, gerou um problema diplomático para a França. A prisão de Durov só pode ser comparada com a prisão de Meng Wanzhou, diretora financeira da Huawei, que esteve detida durante três anos sob acusações de fraude no contexto da batalha pela expansão da tecnologia 5G.

Neste caso, não é a infraestrutura que está em disputa, mas sim os aplicativos de mensagens, área em que o Telegram se expandiu geometricamente desde a sua fundação em 2013. Hoje ultrapassa os 900 milhões de usuários em todo o mundo e caminha para o bilhão. “Como apontado pelas autoridades francesas, gigantes como Meta ou X estabeleceram fluxos regulares de informações com agências governamentais — o caso dos aplicativos da China é semelhante — e a mensagem enviada com essa detenção é que o Telegram não pode continuar operando como tem operado até agora”. Especificamente, é rejeitada a recusa da empresa “em comunicar, a pedido das autoridades autorizadas, as informações ou documentos necessários à execução e exploração das intercepções autorizadas por lei”.

A operação insere-se numa dinâmica de bloco e o que no passado apenas implicava algumas advertências verbais, hoje adquiriu maior significado. A origem russa de Durov, o fato de o Telegram ser uma rede-chave na guerra da Ucrânia, usada tanto pelos exércitos russo como ucraniano, e a revelação de que neste mesmo ano esta rede foi usada para revelar dados sobre alguns dos militares israelenses responsáveis pela campanha de extermínio em Gaza, influenciam um caso que transcende fronteiras e que antecipa uma fase diferente na questão da moderação de conteúdos, comentários e contas na internet.

Os meios de comunicação ocidentais do establishment apontam a aparente melhora nas relações entre o criador do Telegram e o Kremlin — e, a partir da Rússia, os duplos padrões do Ocidente em relação à liberdade de expressão são criticados sem mostrar qualquer preocupação transcendental por Durov, para os propósitos de um cidadão francês. O ex-presidente russo, Dmitry Medvedev, criticou o magnata por considerá-lo ingênuo por não ter se associado ao governo de Putin no passado, e aproveitou o caso para usar a carta da russofobia: “[Durov] calculou mal. Para os nossos inimigos comuns, ele continua a ser russo, imprevisível e perigoso, de sangue diferente.”

Mesmo assim, a Rússia solicitou que fosse prestada assistência consular ao detido, tal como também o fez o governo dos Emirados Árabes Unidos, país onde o Telegram está sediado e onde vive o próprio magnata. O presidente da República Francesa apressou-se na segunda-feira a distanciar-se da decisão judicial e garantiu que não se tratava de uma operação política.

A ação do sistema de justiça francês é, em qualquer caso, consistente com a narrativa promovida pelos Estados Unidos durante anos, de que o aplicativo Telegram é a “favorito dos terroristas”. Este é um debate entre privacidade e “segurança”, do qual o próprio Durov teve que se afastar no passado, transformando-se em alguém que afirmava que “a privacidade, em última análise, e o nosso direito à privacidade são mais importantes do que o nosso medo de que coisas ruins aconteçam, como o terrorismo” para se adaptarem, como exigem as normas europeias, a determinados níveis de regulamentação.

A empresa de Durov não mudou de posição oficial de que o Telegram cumpre os padrões internacionais, incluindo o Regulamento de Serviços Digitais (DSA) implementado pela Comissão Europeia. O objetivo do Telegram é ampliar o debate sobre liberdade de expressão e, para isso, Durov recebeu apoio online do dono do X, Elon Musk. Nesse sentido, os apoiadores de Durov se mobilizaram sob o símbolo de um cachorro com capuz, adotado pelo milionário desde sua passagem pela Rússia. O Liberation relatou uma série de ataques realizados por hackers em diferentes portais de instituições francesas, aparentemente coordenados sob os títulos #freedurov e #opDurov

O interesse por parte da justiça francesa é que o Telegram permita que sejam abertas as famosas “portas dos fundos” das comunicações para a investigação de crimes. Especialistas em direitos digitais esclarecem que, sob o argumento de persecução destes crimes, a abertura destas informações pode resultar em técnicas de controle social e individual. “Um direito humano é a privacidade. Se algum governo abrir uma porta dos fundos, o que aconteceria se esse governo fosse um governo autoritário? Essa porta dos fundos não afetaria também os cidadãos?”, apontou Eric Iriarte, advogado especializado em direito digital, à estação de rádio francesa RFI.

A ferramenta mais utilizada do Telegram não é totalmente “segura” na medida em que os chats não são criptografados end to end, ou de ponta a ponta (E2EE, na sigla em inglês); os chats secretos são, embora não sejam um tipo de mensagens muito conhecida por seus usuários. Desta forma, a grande maioria dos chats do aplicativo não são E2EE e estão, portanto, acessíveis nos servidores. No entanto, como o próprio aplicativo explica, quando se trata de chats na nuvem, todos os dados são armazenados fortemente criptografados e as chaves de criptografia em cada caso são armazenadas em vários outros data centers em diferentes jurisdições. Dessa forma, engenheiros locais ou invasores físicos não poderão acessar os dados do usuário. Isso torna a ferramenta uma rede não particularmente segura – apesar de Durov promover que ela é. Sobre as acusações de disseminação de conteúdo criminoso em chats, especialistas refutam que a ferramenta não possui algoritmo de disseminação de conteúdo, nem o conteúdo é indexado, o que significa que a plataforma não deveria ser obrigada a moderação.

Tal como Musk ou Andrew Tate, outros “criptobros” [fanáticos pelas criptomoeadas] que defendem a liberdade de expressão sem limites aparentes, Durov foi indiciado num caso que ameaça a sua liberdade pessoal ou, pelo menos, o que ele tinha em mente quando fundou o Telegram. Até agora, 31 países haviam banido completamente o aplicativo e outros, como a Noruega, estabeleceram medidas de restrição – ministros não podem usá-lo – mas elas não haviam sido tomadas diretamente contra Durov, outro ‘mano’ que se veste de preto, faz dietas e burpees, baseia seu senso de humor ao rir de pessoas menos ricas que ele, promoveu uma criptomoeda (toncoin) e reclama da migração e dos subsídios sociais que os parisienses recebem.

A ascensão do Telegram em meio mundo

Fundado em 2013 por Durov e seu irmão Nikolai, também programador e matemático, o Telegram se estabeleceu como a rede mais utilizada em dez países – incluindo a Ucrânia, mas não a Rússia, onde o WhatsApp continua sendo o serviço de mensagens mais utilizado. A ferramenta foi criada no contexto das revelações de Edward Snowden sobre o papel do Vale do Silício na transferência de informações para a Agência de Segurança Nacional (NSA). O modelo de atuação seguia a filosofia de seu proprietário: apenas cinquenta pessoas empregadas, num sistema de nomadismo digital que as levava a diversas cidades do mundo e quase sem equipamentos para moderação de canais.

O prestígio do Telegram, no entanto, vem crescendo como ferramenta comumente utilizada entre os líderes globais e pela capacidade de alcance de seus canais, que ganharam especial destaque tanto desde a invasão russa da Ucrânia que abriu a segunda fase da guerra no leste em fevereiro de 2024, tal como desde os ataques de 7 de outubro em Israel e o início da campanha de extermínio ordenada pelo regime de Benjamin Netanyahu.

Na Alemanha, o governo federal falou publicamente em emitir sanções, inclusive considerando o fechamento do Telegram, por ser um veículo de disseminação de teorias da conspiração e do crescimento de movimentos negacionistas da covid-19. Na Espanha, o juiz do Tribunal Nacional teve de recuar este ano na sua primeira tentativa de bloquear o Telegram por um crime de violação reiterada dos direitos de propriedade intelectual dos proprietários de alguns canais. Pedraz, o juiz, finalmente considerou a medida “excessiva”.

Apesar da reputação do Telegram de ser um canal de comunicação mais seguro do que o seu concorrente estadunidense, a empresa de Durov esteve envolvida em vários episódios de fechamento de canais alinhados com os interesses das principais potências. Em 2015, na sequência dos ataques na Sala Bataclan e arredores, em Paris, a gestão do Telegram anunciou que tinha fechado 78 canais públicos utilizados pelo Estado Islâmico (Daesh). Em 2021, e após o assalto ao Congresso em 6 de janeiro, a empresa sediada em Dubai decidiu encerrar quinze canais de grupos de supremacia branca.

Mais tarde, o Telegram cooperou com as autoridades russas para retirar dos seus serviços o sistema de votação “anti-Putin” desenvolvido pela comitiva do opositor Alexei Navalny, tendo em vista as eleições legislativas na Rússia em 2021. Nessa ocasião, porém, os gigantes do Vale do Silício, Google e a Apple, também retiraram o pedido, que se baseava na recomendação dos candidatos com maior probabilidade de derrotar o governo russo em cada distrito. Do lado do Telegram, é apontado que “não é verdade que o Telegram tenha ‘cooperado’ com as autoridades russas ao remover temporariamente o acesso ao bot vinculado a Navalny. O Telegram teve que tomar esta decisão a pedido da Apple e do Google, para evitar ser retirado de suas respectivas lojas. O bot voltou a funcionar em poucos dias e permanece acessível até hoje.”

Histórias de russos e americanos

O Telegram não deixou de ser notícia pelo seu papel ambíguo ao longo dos seus onze anos de vida. No Ocidente, foi celebrado o seu papel na organização dos opositores durante os protestos na Bielorrússia no início desta década. No caso da Ucrânia, Durov foi celebrado como corajoso por se recusar a fornecer dados sobre cidadãos ucranianos do VKontakte às autoridades russas do FSB. VKontakte, o equivalente russo do Facebook, foi a primeira plataforma criada pelos Durov, que se livraram deles em 2014 devido a esse episódio, ocorrido durante os protestos na Praça Maidan que provocaram a mudança de tendência política na Ucrânia.

Hoje ainda existe o VKontakte, controlado por agentes próximos do governo. Foi depois desse episódio que Durov decidiu se exilar e lançar o Telegram com o dinheiro da venda da plataforma e sua fortuna pessoal – estimada em US$ 15,5 bilhões pela Forbes – obtida em grande parte graças à sua criptomoeda.

Em 2018, a Rússia bloqueou o acesso ao Telegram por ordem de um tribunal de Moscou, num caso relacionado com o ataque de 3 de abril do ano anterior no metro de São Petersburgo, atribuído ao Estado Islâmico. O bloqueio, que foi parcialmente contornado pelos usuários do aplicativo, durou até 2020, ano em que as autoridades russas utilizaram a ferramenta em medidas de saúde pública relacionadas à pandemia. Desde 2020, e desde a proibição da candidatura de Navalny, considera-se que a relação de Durov com o Kremlin melhorou. Esta semana, após a sua detenção, especulou-se que o CEO do Telegram teria se reunido com agentes do governo russo no Azerbaijão e tentado fazê-lo, sem sucesso, com Putin. Informações de um portal anti-Putin refletiam que, exceto no período de 2018 a 2020, Durov continuou viajando do seu exílio para a Rússia.

E, desde o início da segunda fase da guerra da Ucrânia, em fevereiro de 2022, o Telegram tornou-se uma fonte indispensável em ambos os lados da fronteira. Na Ucrânia, o canal DeepState, com mais de 785 mil seguidores, tem sido uma fonte fundamental de informação sobre o andamento da guerra. Na Rússia, o canal Rybar (1,3 milhão de seguidores) desempenha um papel semelhante. Além disso, os meios de comunicação ocidentais reconhecem o papel que o Telegram desempenhou na organização dos opositores ao regime de Putin e na guerra na Ucrânia. O fato é que, segundo o centro independente Levada, considerado hostil ao governo, uma em cada duas pessoas na Rússia utiliza o Telegram. Talvez, por isso, o aplicativo atingiu seu auge em termos de difusão quando foi utilizado pelo chefe do grupo mercenário Wagner, Yevgeny V. Prigozhin, para realizar sua marcha sobre Moscou em junho de 2023.

O representante do “Estado Privado” da Rússia, Yevgeny Prigozhin, tornou-se um “traidor” após a marcha do seu exército para Moscou. O Ocidente e o governo ucraniano apontam Putin como possivelmente responsável pelo acidente que lhe custou a vida.

Para Durov, as suas ligações com a Rússia devem-se a teorias da conspiração, embora deva ser notado que o fundador do Telegram tem sido negligente no seu julgamento sobre a conspiração como argumento para defender a política de laissez-faire da sua plataforma: “O que ontem foi considerado uma conspiração a teoria pode se tornar a visão oficial hoje. E como plataforma, você nem sempre conseguirá acompanhar as mudanças.” O fato é que a sua prisão deu origem a novas teorias, que sugerem que Durov queria ser detido para se proteger da retaliação russa. Sugere-se que a tentativa fracassada de ver Putin no Azerbaijão seja o motivo oculto por trás do desembarque em Paris, onde havia um mandado de prisão pendente contra ele.

O debate entre o governo de Putin gira em torno de se é seguro continuar usando o Telegram, uma vez que o proprietário da empresa permanece sob vigilância na França, sob ameaça de prisão, caso não coopere. O canal Rybar explicou que a prisão de Durov deverá implicar mudanças nos sistemas de comunicação do setor público e do exército russo e avançou num dos seus postos aqueles que ganharam com a prisão do magnata, que foi lembrado, em termos semelhantes aos usados por Dmitry Medvedev, que não pode ser equidistante na luta entre os Estados Unidos e a Rússia.

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