Karl Marx foi um teórico analiticamente rigoroso. Mas seu artigo de 1853, “A Duquesa de Sutherland e a Escravidão”, é um bom lembrete de que ele também foi motivado por uma indignação ardente contra a injustiça.
Por: Ben Burgis | Tradução: Pedro Silva | Crédito Foto: (Bildagentur-online /Grupo de imagens universais via Getty Images). Monumento Karl Marx no bairro Friedrichshain de Berlim, Alemanha.
Em 1853, Karl Marx escreveu um artigo para o New York Daily-Tribune chamado “A Duquesa de Sutherland e a Escravidão”. Nele, começa discutindo um “discurso da Assembleia de Senhoras de Stafford House às suas irmãs na América” condenando a escravidão.
O Daily-Tribune era um jornal antiescravista e o próprio Marx era um defensor apaixonado da causa da abolição. Mas ficou revoltado com a postura moral da Assembleia de Senhoras de Stafford House, que ele via como típica da “filantropia da Aristocracia Britânica” – que tendia a se concentrar em aliviar as injustiças “o mais longe possível de casa, muito mais do que o que acontece deste lado do oceano.”
Marx prossegue dando aos seus leitores um vislumbre horrível das origens da fortuna da família da presidente da Assembleia, a Duquesa de Sutherland. E ao fazer isso, ele nos mostra um lado de seu personagem que pode passar despercebido a alguns leitores de seus outros trabalhos.
Marxismo e moralidade
Quando falamos de “marxismo”, estamos normalmente falando de duas coisas: a teoria da história de Marx e a sua teoria do funcionamento das economias capitalistas. Ele pode ser friamente analiticamente rigoroso em ambos os assuntos. E alguns marxistas insistem que, por mais carregados de moral que possam parecer termos como “exploração” e “alienação”, o projeto de Marx era puramente “científico”, sem uma dimensão moral.
O germe da verdade aqui é que Marx não se parecia em nada com um filósofo moral. Além de comentários aqui e ali espalhados pelo seu trabalho (principalmente inicial), ele não tinha interesse em refletir sobre os tipos de debates que os kantianos, os utilitaristas e outras correntes têm sobre a natureza da moralidade. Suas contribuições teóricas residiam realmente em outro lado – numa teoria descritiva de como o capitalismo e outros “modos de produção” funcionam, e como eles ascendem e caem ao longo da história.
Mas isso não deve nos cegar para o fato de que o que o levou a realizar este trabalho teórico, em primeiro lugar, foi — quer ele próprio o colocasse desta forma ou não — a sua indignação moral ardente frente à injustiça capitalista. Isso está totalmente exposto em “A Duquesa de Sutherland e a Escravidão”.
A expropriação dos membros do clã da duquesa
Marx nos diz que o modo de produção nas Terras Altas da Escócia antes do advento do capitalismo estava “um grau abaixo” até mesmo do nível feudal de desenvolvimento. Era patriarcal — o que significa que um “clã”, liderado por um chefe, funcionava totalmente como uma extensa família. Os camponeses do clã iriam para a guerra sob a bandeira do chefe quando chegasse a hora, e em tempos de paz as terras que cultivavam — embora diferentes partes fossem, na prática, atribuídas individualmente a diferentes famílias — eram a propriedade comum do clã.
De um modo geral, “cada lote de terra foi cultivado pela mesma família, de geração em geração”, mas Marx escreve que “não poderia haver mais dúvidas, sob este sistema, de propriedade privada, no sentido moderno da palavra, do que poderia haver de comparar a existência social dos membros do clã com a dos indivíduos que vivem no seio da nossa sociedade moderna.”
Este sistema começou a mudar no século XVIII, quando um sistema de “regimentos familiares” foi usado para integrar o antigo sistema de clãs nas forças armadas britânicas e a economia monetária começou a interferir no sistema de “produção agrícola para uso”. A mudança mais significativa, porém, foi sobre as próprias relações de propriedade.
Uma das principais afirmações da teoria da história de Marx é que os sistemas jurídicos e políticos de uma sociedade tenderão a se adaptar às mudanças nas relações econômicas e, por sua vez, estabilizarão essas novas relações, lhes dando a força da lei.
Em lugares como a propriedade de Sutherland, o que isto significava é que a propriedade comum de um clã foi conceitualizada como propriedade privada dos aristocratas que chefiavam os clãs — os descendentes dos antigos chefes, primeiro integrados na aristocracia britânica mais ampla e depois tratados como os detentores de títulos de propriedade capitalistas — para dela disporem como quisessem.
A Duquesa de Sutherland no início do século XIX — que era a sogra da futura Duquesa de Sutherland que chefiou a assembleia que condenava a escravidão — decidiu que, em vez de continuar a extrair renda dos camponeses, as terras que agora eram legalmente consideradas sua propriedade pessoal, seria usada de forma mais lucrativa para pastorear ovelhas. Para as ovelhas virem, os humanos tiveram que ir. Marx descreve como isso ocorreu com detalhes horríveis:
De 1814 a 1820, esses 15 mil habitantes, cerca de 3 mil famílias, foram sistematicamente expulsos e exterminados. Todas as suas aldeias foram demolidas e incendiadas, e todos os seus campos convertidos em pastagens. Soldados britânicos foram comandados para esta execução e combateram os nativos. Uma velha que se recusou a sair de sua cabana foi queimada nas chamas. Assim, a minha senhora condessa se apropriou de 794.000 acres de terra, que desde tempos imemoriais pertenciam ao clã. Na exuberância de sua generosidade, ela distribuiu aos nativos expulsos cerca de 6.000 acres — dois acres por família. Esses 6.000 acres estavam abandonados até então e não traziam nenhuma receita aos proprietários. A condessa foi generosa o suficiente para vender o acre por 2s 6d em média, aos homens do clã que durante séculos passados derramaram o seu sangue pela família dela.
Uma parte dos camponeses dispostos, nos diz Marx em “A Duquesa de Sutherland e a Escravatura”, foi atirada “à beira-mar e tentou viver da pesca. Eles “tornaram-se anfíbios e, como diz um autor inglês, viviam metade na terra e metade na água e, afinal, não viviam em ambos”.
Retomando a história catorze anos depois, na última secção da sua obra-prima O Capital, Marx relata que mesmo esta vida anfíbia era temporária. “O cheiro do seu peixe subia aos narizes” dos aristocratas recém-empreendedores — que “sentiram algum lucro nele” e alugaram a praia “aos grandes peixeiros de Londres”. Os ex-camponeses foram despojados pela segunda vez.
Quem tem legitimidade para condenar a injustiça?
Ateoria da história de Marx dita que ele não pensa que seja possível ou desejável regressar a uma forma de vida pré-moderna. O relógio do progresso econômico não pode ser atrasado, apenas avançado com a “expropriação dos expropriadores” expressa no final de O Capital. Aí, ele especula que a transformação da propriedade privada capitalista em propriedade coletiva pode acontecer de uma forma muito menos “prolongada, violenta e difícil” do que a expropriação dos camponeses no alvorecer do capitalismo. O processo que ocorreu em lugares como a propriedade de Sutherland foi “uma questão de expropriação da massa popular por alguns usurpadores”, enquanto a transição para o socialismo significará “a expropriação de alguns usurpadores pela massa de um povo”.
Marx é bastante claro ao afirmar que não há transição global para o socialismo sem que uma transição global para o capitalismo aconteça num momento anterior. Assim, por um lado, parece que, apesar de todas as atrocidades que acompanharam esta última, foi uma fase inevitável do desenvolvimento histórico. Por outro lado, Marx simplesmente não olha para este processo com a fria indiferença de uma visão histórica de cima.
Mesmo o leitor mais casual de “A Duquesa de Sutherland e a Escravatura” e a continuação que lhe é dada na Parte VIII de O Capital será capaz de sentir as ondas cruas de indignação moral que emergem do texto. E ver a nora do expropriador brutal de quinze mil camponeses, vivendo da fortuna acumulada através dessa expropriação sem aparente sentimento de vergonha, postura sobre os males morais de um sistema diferente de exploração que faz o sangue de Marx ferver. Ele pôde ouvir os gritos daquela velha que morreu quando os soldados incendiaram sua cabana e quer que você os ouça também.
Marx cita uma defesa de 1820 das ações da anterior Duquesa de Sutherland feita pelo seu administrador, o Sr. Loch, que perguntou por que uma exceção especial deveria ser feita neste caso à “regra geral” da “autoridade absoluta do proprietário sobre suas terras”. Por que deveria essa autoridade absoluta ser sacrificada ao “interesse público” quando presumivelmente todas as pessoas decentes normalmente priorizam os interesses dos proprietários de terras acima de todo o resto?
Se assim for, Marx pergunta acidamente: “Por que deveriam os proprietários de escravos nos Estados do Sul da América do Norte sacrificar os seus interesses privados às caretas filantrópicas de Sua Graça, a Duquesa de Sutherland?”
Marx, é claro, era um fervoroso oponente do sistema escravista. Quando Abraham Lincoln foi reeleito em 1864, Marx enviou a ele um telegrama em nome da Associação Internacional dos Trabalhadores, no qual expressava a fervorosa esperança de que o “grito de guerra triunfante” do segundo mandato de Lincoln fosse “Morte à Escravidão!”
Mas ele odiava a ideia de uma duquesa de Sutherland, vivendo à custa dos ganhos ilícitos da sua família, envolvendo-se no manto moral da causa antiescravista. Ele conclui que um “inimigo da escravatura assalariada britânica” tem o “direito de condenar” a escravatura de bens móveis no Sul dos Estados Unidos. “Uma duquesa de Sutherland, um duque de Atholl, um senhor do algodão de Manchester – nunca!”
Veja em: https://jacobin.com.br/2024/06/marx-fez-analises-rigorosas-movido-pela-indignacao-moral/
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