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O veto à Venezuela no Brics foi o maior equívoco da diplomacia petista

Na mais recente cúpula do Brics, realizada na cidade russa de Kazan, ocorreu mais uma expansão do bloco, com novos países na condição de parceiros, avançando o projeto de integração entre o Sul Global. Mas o veto brasileiro ao ingresso da Venezuela foi um equívoco histórico é o que diz o historiador Marco Fernandes, que estava lá para testemunhar o evento.

Por: Hugo Albuquerque | Entrevista com: Marco Fernandes| Crédito Foto: Alexei Danichev / Agência Photohost brics-russia2024.ru. Cidade de Kazan, sede da XVI Cúpula do Brics.

AXVI Cúpula do Brics foi uma grande demonstração de força do bloco e da Rússia, o país sede. O Brics segue em expansão e em desenvolvimento e até os adversários do presidente russo Vladimir Putin reconheceram que, ao atrair dezenas de líderes a Kazan, ele rompeu com a tentativa de isolamento que lhe foi imposta – e se apresentou como “como campeão do mundo em desenvolvimento” segundo o Washington Post.

Realizada na histórica Kazan, capital da República do Tartaristão, na Federação Russa, que fica a cerca de 800 quilômetros de Moscou, a cidade é uma expressão do multiculturalismo concreto que caracteriza o Brics. Fundada há cerca de mil anos pelos búlgaros do Volga – um povo turcomano –, Kazan foi, séculos mais tarde, capital do poderoso Canato tártaro que levava seu nome e que foi derrubado somente pelo czar russa Ivan, o Terrível no século XVI.

Parte da Rússia desde então, Kazan é habitada pelos tártaros, um outro povo turcomano que sucedeu os búlgaros do Volga, e por russos, além de outras nações – e lá convivem muçulmanos, católicos ortodoxos, católicos romanos, judeus e outras minorias religiosas. Sua escolha como sede não parece ter sido por acaso: Kazan expressa a plurinacionalidade russa e a diversidade do Brics, mas também o encontro entre Oriente e Ocidente.

A Rússia põe em curto-circuito a divisão entre Europa e Ásia pela sua própria existência, demonstrando que a “fronteira” desses continentes é uma ficção estratégicas das potências do oeste da Eurásia. A aliança russa com a China, nesse sentido, é central para criar um sistema global alternativo – que se fortalece com a pacificação dos conflitos de fronteira entre indianos e chineses sob mediação russa.

Agora, apesar do bloco avançar e se expandir, nem tudo são flores. Ganhou destaque o veto brasileiro contra a entrada da Venezuela como país parceiro do bloco, o que ascende dúvidas sobre o posicionamento do país, que assume agora a presidência do bloco – em um momento chave para o seu crescimento, tendo ainda a ex-presidenta Dilma Rousseff no comando do seu banco de desenvolvimento.

Para falar sobre isso e muito mais, a Revista Jacobina fala aqui com o analista geopolítico, editor e historiador Marco Fernandes, que esteve na Cúpula de Kazan e foi testemunha histórica desses eventos, os quais, junto com a próxima eleição americana, podem moldar o cenário global consideravelmente. Os próximos anos tendem a ser, para o bem e para mal, muito agitados e sem entender Kazan, não entenderemos o que virá a seguir.


HA

Inicialmente, se especulou que foi o Brasil a vetar o ingresso da Venezuela no Brics, na qualidade de parceira, o que foi confirmado pelo próprio presidente russo. Como podemos avaliar o que aconteceu?

MF

O veto à entrada da Venezuela no Brics foi o maior equívoco da história da diplomacia brasileira em um governo petista. Acho que nós vamos nos arrepender muito, durante muito tempo ainda, por esse erro, que tem dois aspectos principais.

Primeiramente, esse veto infringe um princípio central da política externa brasileira, o qual nos impõe a não ingerência em assuntos internos de outros países. Ora, o Brasil, quando se assume como fiscal eleitoral da Venezuela e se dá o direito de não reconhecer as eleições reconhecidas pelo Poder Judiciário local, está infringindo isso.

Em segundo lugar, o Itamaraty foi contraditório com a prioridade da política externa do presidente Lula no seu terceiro mandato, que foi anunciada desde o primeiro dia, que é a integração da América do Sul. Bem, fazendo o que nós estamos fazendo com a Venezuela, nós estamos enterrando a possibilidade de integração sul-americana.

Não é possível haver integração sul-americana sem a Venezuela, que é uma das maiores economias do continente, a maior reserva de petróleo do mundo e que, inclusive, teria um enorme potencial econômico para atrair empresas brasileiras como a Petrobras – que poderia investir pesado no petróleo de venezuelano, que está subutilizado.

Isso vai significar um prejuízo gigantesco para as empresas brasileiras. Então, nem do ponto de vista capitalista faz sentido o que o Brasil fez aqui em Kazan, de cancelar a participação da Venezuela nos Brics, uma enorme vergonha.

HA

Quais fatores levaram os novos países a serem aceitos como parceiros e não membros plenos do bloco?    

MF

Sobre a expansão ter sido dessa forma, isso possivelmente se deve à entrada de alguns novos membros plenos no ano passado, cuja integração demandaria três ou quatro anos, uma vez que o Brics já é uma organização razoavelmente complexa.

Ao mesmo tempo, há um crescente interesse pelo Brics no Sul Global, onde o bloco virou uma sensação. Tem 34 países que já se candidataram oficialmente, então é evidente que também era preciso aproveitar esse capital político que o bloco adquiriu. Assim, foi decidido envolver parte desses países candidatos na condição de países parceiros, o que ainda é nebuloso.

Então, por exemplo, a proposta de um sistema de pagamento internacional, que viria para substituir o Swift, pode ter a adesão imediata de todos os membros do Brics, que agora já vão ser cerca de duas dezenas de países.

Mas eu acho que é isso, houve um balanceamento entre as necessidades institucionais do Brics com um cálculo político da inclusão de países que desejavam a inclusão, porque isso é o capital político do grupo – e, ao mesmo tempo, um potencial de que algumas proposta, principalmente econômicas, possam se desenrolar.

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HA

De um ponto de vista prático, o que você acredita que pode avançar mais rápido nos mecanismos comuns do Brics, a moeda mecanismo de trocas para substituir o Swift e até do próprio desenvolvimento banco do bloco? Ou mesmo a superação do Fundo Monetário Internacional (FMI)?

MF

Essa é uma ótima pergunta. Dessas três iniciativas, a mais distante ainda é a moeda de reserva, que ainda não está sendo discutida concretamente no Brics, embora haja uma proposta muito interessante do Paulo Nogueira Batista. Sobre o sistema de pagamentos, ele já está anunciado como uma das prioridades anunciadas pelo governo brasileiro, que iniciará agora a sua presidência do bloco.

Esse sistema de pagamentos do Brics não tem, do ponto de vista técnico, nenhum inconveniente; do ponto de vista político, ele seria importantíssimo para que os países não estejam submetidos às vontades dos Estados Unidos que, como a gente sabe, usaram do seu controle sobre o Swift para punir países inteiros , excluindo eles do sistema global – e eu falo aqui da Rússia, da Venezuela, do Irã – mas também há uma expectativa de que vai haver mais eficiência nas trocas, e um custo menor para o comércio internacional, uma vez que os países gastam bilhões em taxas para usar o sistema tal como ele é hoje.

Porém, é claro que há uma questão nisso, e aí volto à proposta do Paulo Batista Nogueira: é preciso pensar numa moeda de reserva sim, porque o comércio em moedas locais funciona bem somente quando os países têm uma balança comercial equilibrada entre si. Quando há muito superávit de um lado, e naturalmente déficit do outro, como acontece com o comércio entre Rússia e Índia agora, temos um problema.

Neste exato instante, a Rússia está com o equivalente a dezenas de bilhões de dólares em rúpias indianas, mas não tem o que fazer com isso. Essa moeda serviria para que os russos, por exemplo, pudessem usar seu superávit para importar de outros países do Brics ou que aceitassem essa moeda. Então, isso será um desafio.

A questão do Novo Banco de Desenvolvimento, o “banco do Brics”, já é uma discussão à parte. Ele é uma instituição que tem muito potencial, mas precisa passar por reformas. Primeiramente, ele precisa arrecadar mais dinheiro. Embora tenha dobrado sua arrecadação sob a gestão da presidenta Dilma Rousseff, que terá seu mandato ampliado também em razão disso, ainda é muito pouco o para ser o grande banco do Sul Global – e que pertence a um bloco que tem China, Índia e Rússia, algumas das maiores economias globais, além de Brasil e Emirados Árabes.

O banco tem de desenvolver mecanismos para levantar recursos, inclusive em moedas locais dos membros. E ele precisaria ter um papel mais ativo no debate econômico global. Mas é bom ver que quase todos os líderes do Brics disseram que o banco tem de ser fortalecido, o que torna as reformas nessa direção muito viáveis no curto prazo.

Agora, há uma outra questão que deve ser considerada nessa discussão: recentemente, eu publiquei um artigo no Valdai Club que é sobre o acordo de reserva contingente. Nós temos um fundo de 100 bilhões de dólares que foi feito para ser uma alternativa ao FMI, para servir aos países do Brics, os cinco membros originais, caso eles tivessem problemas de reservas internacionais – e necessitasse de dólares emergenciais. No entanto, esses cinco países têm reservas muito sólidas. Eles não vão precisar disso.

Ao mesmo tempo, sabemos que Egito e Etiópia, dois novos membros do Brics, acabaram de fazer acordos muito ruins com o FMI. O Egito, por exemplo, teve que aumentar essa semana mais uma vez o preço dos combustíveis por imposição do FMI. Isso está gerando uma revolta enorme na população. A Etiópia também está numa situação muito difícil, mesmo tendo tomado um empréstimo de mais de 10 bilhões.

Tudo isso acontece porque existem aquelas condicionalidades que o FMI sempre impõe: cortes no orçamento social, privatizações de empresas estatais, além da proibição de mecanismos de controle cambial – ou seja, a moeda vai flutuar e vai desvalorizar os ativos nacionais. Tudo isso poderia ter sido evitado se o acordo de contingente de reserva fosse utilizado para Etiópia e Egito, que fizeram acordos cujo valor somado foi de cerca de 15 bilhões de dólares, o que também não é muito para um fundo que tem 100 bilhões.

Isso tiraria esses dois países das garras do FMI, então isso é uma coisa, por exemplo, que poderia ser implementada ontem, dependendo mais uma vez da vontade política da decisão política dos líderes do Brics.

HA

Como você lê a participação do Brasil na Cúpula? O saldo pode ser considerado positivo ou não?

MF

A participação do Brasil na Cúpula teve altos e baixos. Por um lado, o presidente Lula fez dois discursos muito bons, o segundo deles lido pelo chanceler Mauro Vieira – e este último foi um discurso muito bom que tratou da questão da Palestina, condenou o genocídio que está acontecendo lá e, ainda, condenou o embargo contra Cuba, que foi incluída no bloco. O Brasil teve na verdade um papel muito importante na construção dos critérios para a entrada dos novos países parceiros, e o Brasil, como eu falei, já anunciou que na próxima presidência vai priorizar a construção desse sistema internacional de pagamentos.

Agora, por outro lado, tivemos um papel muito ruim na questão da Venezuela, que manchou a participação brasileira nessa cúpula porque, de fato, não só foi um golpe na Venezuela como também na integração sul-americana, na diplomacia brasileira, nos seus princípios e prioridades e nos parceiros mais importantes do Brics hoje, Rússia e China que, como sabemos, eram favoráveis a entrada da Venezuela. E Putin, inclusive, declarou isso.

Mas sim, o saldo da Cúpula  é muito positivo. Não só conseguimos avançar na inclusão de mais países como, ainda, houve um avanço nas discussões concretas de alternativas ao sistema global hoje hegemonizado pelos Estados Unidos e pelo dólar. Houve a confirmação da extensão da presidência de Dilma Rousseff no Banco do Brics, o que eu acho que também foi um bom feito. E, é claro, acho que foi uma vitória da diplomacia russa, que conseguiu fazer um encontro mostrando que ela está tudo menos isolada no cenário internacional, muito pelo contrário.

A presidenta Dilma Rousseff teve um papel muito ativo esse ano na presidência dos Brics. Acho que, provavelmente, foi a presidência que mais trabalhou até agora na história do Brics. E a gente sabe que a Rússia tem um papel fundamental nesse momento de transformações, de propostas, de criação de alternativas econômicas e políticas para o Sul Global.

A Rússia, por sua vez, tem um papel protagonista. E se por um lado é evidente que a China tem um protagonismo econômico e é, digamos assim, a base econômica dessa ascensão do Sul Global e do próprio Brics, por outro lado é a Rússia que tem o protagonismo diplomático e político. Não à toa, a Rússia é alvo militar da Otan – a exemplo também do que se passa com o Irã.

Mas essa conjuntura também faz com que a Rússia tenha uma pressa, uma urgência para buscar alternativas a um sistema em que ela está sendo violentada e agredida há muitos anos, não só de agora. Isso não começa com essa guerra na Ucrânia, mas vem de muitos anos atrás. Então, creio que foi uma grande vitória da diplomacia da Rússia e, evidentemente, do presidente Vladimir Putin.

 

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