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Por que é difícil mães seguirem fazendo ciência no Brasil

Pausa momentânea com a chegada dos filhos é vista pelo sistema acadêmico como falha de produtividade, compromete a ascensão de pesquisadoras e afasta talentos da ciência.

Por: Nádia Pontes | Crédito Foto: Privat. A bióloga e mãe Yara Araújo (à direita), que teve de interromper temporariamente a carreira acadêmica por falta de rede de apoio

Para ingressar no mestrado, a física Gabriela de Assis só tinha uma via: ser a primeira colocada no processo de seleção. O programa para o qual se candidatara oferecia apenas uma bolsa, e o apoio era condição para ela seguir o sonho de produzir ciência. Semanas depois de alcançar o feito, descobriu a gravidez.

“Cheguei no mestrado me sentindo inadequada, com uma carga grande já por ser mulher na física, negra e vinda da periferia. E agora mãe”, diz Assis à DW.

Durante o curso, ouvia pelos corredores que a universidade havia desperdiçado uma bolsa, e que ela não tinha chances de uma vida acadêmica promissora. Assis não imaginava que estava diante de um desafio ainda maior que os inúmeros vencidos até então: sair do alto do morro para dentro da universidade, única mulher a se formar na sua turma de graduação, vencer a pobreza e violência que cercaram sua mãe e as demais mulheres solitárias da famílias que a criaram.

“Para eu trabalhar na pesquisa acadêmica, eu não durmo. Tenho a impressão de que estou sendo punida pela sociedade por algo que deveria ser celebrado. A carreira científica não se faz sozinha. Quem vai querer trabalhar comigo às duas da manhã?”, diz num depoimento emocionado enquanto cuida das duas filhas em Manguinhos, Rio de Janeiro, sem qualquer creche nas proximidades.

A bióloga Yara Araújo finalmente vai começar o doutorado depois de, por quatro vezes, negar vagas conquistadas por não ter como se manter. Duas delas eram em universidades na Inglaterra. Ela chegou do Acre à Universidade Federal do Pará (UFPA), em Belém, com a filha de oito anos e diz que desta vez vai dar certo por contar com uma bolsa adicional.

“Tive crises existenciais em vários momentos. A conta não fecha para a produtividade. O trabalho é triplicado, quadruplicado. Falta rede de apoio acadêmica, principalmente para pesquisadoras negras e do Norte, como eu”, diz Araújo à DW.

Duas mulheres trabalhando em um laboratório
Embora a participação feminina na ciência brasileira tenha crescido 29% em 20 anos, ela cai conforme a idade das cientistas avançaFoto: Antonio Lacerda/dpa/picture alliance

Para mulheres cientistas que se tornam mães, a permanência no trabalho é desafiadora. Embora a participação feminina na ciência brasileira tenha crescido 29% em 20 anos, ela cai conforme a idade das cientistas avança.

Um relatório da Elsevier produzido em parceria com a agência Bori publicado nesta sexta-feira (08/03) mostra que a presença de mulheres em artigos científicos saiu de 28%, em 2002, para 49%, em 2022. À medida que elas avançam na carreira, essa contribuição cai drasticamente para 36% entre cientistas mais experientes.

“Vários desafios se apresentam e muitas vezes não há apoio institucional para lidar com essas demandas. Um deles é a maternidade: as bolsistas mulheres de pós-graduação têm o mesmo tempo que os bolsistas homens para entregar seus projetos, porém muitas vezes elas assumem vários papéis: são mães, esposas, cientistas, responsáveis pelo lar, etc”, comenta o resultado Fernanda Saraiva Gusmão, gerente de Soluções de Pesquisa da Elsevier.

“Eu não estou dando conta?”

Fernanda Staniscuaski foi uma das pioneiras a apresentar esse debate dentro das instituições de pesquisa. Ela seguiu um plano de carreira dentro do esperado e desejado por muitas biólogas, até sofrer baques a conta-gotas depois da chegada do primeiro filho. Professora na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) desde 2011, ela deixou para trás as pesquisas no laboratório de biologia molecular que tanto amava depois de tantas cobranças enquanto se adaptava ao papel de mãe.

“Eu era cobrada por não produzir como os demais colegas. Passei a ter pedidos de financiamento recusados por conta da queda na produtividade. No primeiro momento me perguntei: ‘O que está errado comigo? Eu não estou dando conta?'”, narra à DW a bióloga, mãe de três filhos.

Fernanda Staniscuaski
A bióloga Fernanda Staniscuaski, mãe de três filhos. Foto: Gustavo Diehl/UFGRS

Conversas com outras mulheres mostraram que não se tratava de algo individual – como ouvia de muitos colegas homens. Algo estava errado no sistema que produz ciência e precisava mudar. Foi o estopim para que seis mães e um pai fundassem o movimento Parent in Science, com o objetivo de discutir a parentalidade no meio científico.

O primeiro passo foi gerar dados sobre o cenário. Um levantamento feito com quase 3 mil docentes mostrou que, após a chegada do primeiro filho, as mães registram uma queda drástica na taxa de publicação de até 50%, a depender da área. O mesmo não acontece com homens cientistas que se tornam pais.

“É algo tão lógico de se pensar. A mulher vai se afastar da carreira por algum momento para cuidar do filho. O dado foi importante para reconhecer que o impacto existe e que não se pode penalizar a carreira das mulheres. Mas o sistema ainda é muito injusto”, analisa Staniscuaski.

Felipe Ricachenevsky, um dos fundadores do Parent in Science, sofreu ao ver a esposa, que teve passagem por Harvard, ter dificuldades na vida acadêmica. Ela seria considerada extremamente produtiva, mas o “buraco” de publicações de dois a três anos após a maternidade fez com ela perdesse colocações num concurso para professora. “O potencial dela é enorme, como os anos em que esteve focada na ciência demonstravam, mas a avaliação só olhou números brutos”, diz.

Na percepção do pesquisador, ao contrário da esposa, a paternidade parece ter sido benéfica. “Se eu cancelava um compromisso, uma reunião, até uma aula porque minha filha estava doente, era um exemplo de pai; e se ainda assim estivesse presente, era um exemplo de profissionalismo”, diz à DW. “A mãe, ao contrário, está sempre devendo: falta em compromissos, não pode em determinados horários, é pouco profissional; se está presente, é julgada como mãe que deixa os filhos com os outros. É uma situação de um peso, mas duas medidas bem diferentes”, afirma.

A métrica da produtividade

O ano em que virou professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Zona Oeste (UERJ-ZO) foi o mesmo em que a farmacêutica Rossana Soleti engravidou da primeira filha. Ela nasceu com uma cromossomopatia e a corrida inicial atrás de diagnósticos e tratamentos foi intensa.

“Co-orientei um aluno durante a licença-maternidade e foi negado que meu nome constasse no trabalho. E perdi diversas oportunidades, não porque tive filhos, mas porque o sistema não leva em consideração que a mulher entrou em licença. Isso gera uma bola de neve”, diz Soleti à DW.

Isso ocorre pois a métrica usada para medir a produtividade de um cientista é o número de publicações de artigos. Quanto menor esse número, menor a competitividade no meio. É daí que vem a máxima usada na academia: “Publique ou pereça”.

“Muitas mulheres abandonam a ciência por causa disso. A licença-maternidade não te deixa menos competente, é um tempo de pausa necessário para cuidar de uma vida que acaba de chegar”, destaca a farmacêutica, que atualmente é professora na UFRGS.

Mão de mulher mexe em centrífuga de laboratório
Diminuição da frequência de publicações durante licença-maternidade afeta progressão na carreira. Foto: Felipe Dana/AP/picture alliance

A astrônoma Karín Menéndez-Delmestre, pesquisadora na Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ, passou anos tentando recuperar a produtividade depois que teve a segunda filha. Ela considera que teve sorte, mas não deixou de reparar como diversas mulheres sofreram microprocessos diários que as expulsaram da carreira.

“Essa não deveria ser uma questão de mães tentando sobreviver na ciência. A mudança no sistema tem que ser feita, a partir das vivências de todas aquelas que se sentiram expulsas e foram embora”, opina a astrônoma, que coordena um projeto temático na universidade e briga para que as alunas não percam a bolsa de iniciação científica quando se tornam mães.

Mudanças lentas à vista 

Joice Ferreira, pesquisadora da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) em Belém, optou por ser mãe quando sua carreira já estava mais estabilizada. A filha, de dois anos, às vezes a acompanha em eventos científicos, que são pouco ou nada organizados para receber mães.

“Já estou estabelecida no meu trabalho, não estava muito preocupada em ter uma queda de produtividade, tenho um trabalho permanente e pude pagar por uma rede de apoio. Sei que é uma situação privilegiada. Mas quando voltei, depois da licença, as pessoas já começam a cobrar que você esteja no mesmo ritmo de antes, e você ainda nem consegue dormir uma noite inteira”, diz Ferreira.

Para que jovens cientistas cheguem a uma situação parecida à de Ferreira, mudanças precisam avançar. Na avaliação de Gusmão, da Elsevier, algumas iniciativas em andamento vão nesse sentido, como a oferta de prazos estendidos em editais para candidatas mulheres apresentarem seus projetos e a criação de um grupo de trabalho no Ministério da Educação para realizar estudos sobre a Política Nacional de Permanência Materna nas Instituições de Ensino Superior.

Desde que puxou este debate com a criação do Parent in Science, a bióloga Staniscuaski diz também ter visto algumas melhorias. “Mas não são suficientes. No geral, precisamos de flexibilidade de prazos para as estudantes, de tempo do curso, das entregas, das regras de análise de produtividade. A mentalidade no meio científico ainda é muito rígida. O sistema foi criado por pessoas que tinham alguém em casa cuidando de todas as outras esferas da vida, e ainda é injusto”, argumenta.

 

Veja em: https://www.dw.com/pt-br/por-que-%C3%A9-dif%C3%ADcil-m%C3%A3es-seguirem-fazendo-ci%C3%AAncia-no-brasil/a-68471797

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