Nascido há 120 anos, artista soube dialogar com a arquitetura e abordar problemas sociais de sua época. Para especialistas, ele democratizou a arte ao retratar a classe trabalhadora do Brasil.
Por: Edison Veiga | Créditos da foto: Yadid Levy/IMAGO. “Café”: Portinari ganhou projeção ao colocar temas sociais e políticos em suas obras
O filho de imigrantes italianos que nasceu, há exatos 120 anos, em uma fazenda de café no interior de São Paulo se tornaria um dos maiores artistas da história brasileira, com obras de relevância mundial. Candido Portinari (1903-1962) costuma ser celebrado pelos gigantescos murais Guerra e Paz, feitos nos anos 1950 e instalados na sede da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York. Mas, para especialistas ouvidos pela DW, sua importância transcende a enormidade dessas obras.
“Ele tornou-se, ao longo do tempo, personalidade indiscutível”, define o arquiteto Lucio Gomes Machado, professor na Universidade de São Paulo (USP). “Portinari ainda é uma beleza profunda e muito lapidada do Brasil”, completa o arquiteto Henrique de Carvalho, pesquisador na USP e fundador do Ateliê Tanta.
Criador do Museu Fama, em Itu, o empresário, artista plástico e colecionador de arte Marcos Amaro atenta que Portinari era “dotado de um olhar aguçado de sensível para as complexidades do Brasil”.
“Sua obra transcendeu as fronteiras da mera expressão artística, adentrando os terrenos das questões sociais que assolavam o país”, comenta. “A preocupação genuína de Portinari com temas como a fome, a miséria, o sertão e as carências sociais brasileiras imprimiu em suas telas não apenas pinceladas de tinta, mas um grito de denúncia e uma busca por transformação.”
Amaro ainda acrescenta que os murais deixados por ele “desempenharam um papel crucial ao aproximar sua obra do povo, ultrapassando os limites do mercado artístico e da elite da época”. “Sua arte tornou-se acessível e impactante, transformando-se em um meio de comunicação visual que ultrapassa barreiras socioeconômicas”, pontua. “Ao fazer isso, Portinari contribuiu para democratizar a arte, elevando-a a um instrumento de conscientização e reflexão coletiva.”
O pintor, pesquisador e professor universitário Israel Pedrosa (1926-2016), certa vez afirmou que “nenhum pintor pintou mais um país do que Portinari pintou o seu”.
“Portinari é o artista que melhor representou a alma brasileira, tanto quando pintava os trabalhadores do campo ou da cidade, ou os retirantes, como as paisagens do interior do Brasil com suas sutis particularidades, sempre com um estilo muito pessoal e com uma técnica que nunca se fixou em nenhum estilo específico”, diz a arquiteta Marcia Iabutti, professora de história da arte da plataforma Pensaer. “Apresenta características muito especiais e individuais que fazem com que suas obras sejam reconhecidas à primeira vista.”
Dos cafezais às artes plásticas
Nascido em Brodowski — hoje, um município; na época, distrito de Batatais —, Portinari teve uma infância simples no universo do cultivo de café. Mas, desde cedo, manifestou aptidão artística.
Quando ele tinha 14 anos, acabou se tornando ajudante de um grupo de pintores italianos que andavam de cidade em cidade restaurando imagens de igrejas. Foi isso que o motivou a engrenar carreira na área e, dois anos mais tarde, foi para o Rio de Janeiro, então capital federal, com o objetivo de se formar na Escola Nacional de Belas Artes.
Foi quando começou a se destacar. Aos 20 anos, já participava de exposições. Em 1928, venceu um concurso e, como prêmio, ganhou uma bolsa para viver dois anos estudando e criando em Paris.
Lá, conheceu outros artistas de sua geração e a uruguaia Maria Martinelli (1912-2006), que se tornaria sua companheira pelo resto da vida.
O retorno ao Brasil no início dos anos 1930 colocou Portinari em um status maduro e gigante. Gradualmente, foi deixando de se dedicar tanto a telas para priorizar murais e afrescos. Em 1934 concluiu um dos seus trabalhos mais conhecidos: O Lavrador de Café.
“Gosto de pensar se há relação entre o contexto formador e a obra do artista. Seus professores lhe transmitiram na infância o espírito nacionalista e positivista do início da República no país. Conviveu, muito provavelmente, com filhos de escravizados. Traz, portanto, a potência do aterramento de influências europeias em solo brasileiro, de ímpeto nacionalista, sem necessariamente obrigar-se à construção mítica e heróica da imagem nacional”, analisa Carvalho.
“Vejo em suas obras a influência bem assimilada do renascimento e dos barrocos […]. Com bagagem erudita, ele assimila novidades como o expressionismo e o cubismo de forma particular, fazendo nas artes plásticas movimento semelhante ao dos arquitetos modernos brasileiros, que usaram sua erudição para radicalizar a assimilação ao incluir dados da realidade nacional no processo”, acrescenta o arquiteto. “Ele foi um Villa-Lobos na pintura.”
Professora na Universidade Presbiteriana Mackenzie, a comunicóloga e historiadora da arte Leslye Revely contextualiza que Portinari ganhou projeção ao “colocar temas sociais e políticos em seus quadros”. “Mais que isso, ele começou a colocar os trabalhadores rurais, antes ainda não tanto protagonistas. Ao invés de, como o modernismo, retratar a cidade grande e as pessoas de elite.”
Em 1939, expôs três telas no Pavilhão Brasil da Feira Mundial em Nova York.
Os trabalhos chamaram a atenção da crítica americana especializada. A direção do Museu de Arte Moderna de Nova York, o MoMA, passou a cobiçar sua presença no acervo. Em 1940, a instituição comprou a tela Morro do Rio. Em seguida, o museu preparou uma exposição individual de Portinari. Nessa passagem pelos Estados Unidos, o artista fez dois murais para a Biblioteca do Congresso, em Washington.
Nos anos 1950, Portinari já estava consolidado e havia garantido seu lugar na história da arte brasileira. Ele teve uma sala de destaque na 1ª Bienal de São Paulo, em 1952, e passou a viajar o mundo a convite de exposições — esteve em diversos países da Europa, nos Estados Unidos e e em Israel. Entre 1953 e 1956, fez sua obra-prima: os murais Guerra e Paz presenteados à sede da ONU, em Nova York.
Nesse período, contudo, começou a enfrentar problemas de saúde — em decorrência de intoxicação pelo chumbo presente nas tintas.
Parceria com arquitetos
Especialistas destacam o fato de ele ter trabalhado de forma complementar a criações arquitetônicas. “Na primeira metade do século 20, os arquitetos tinham como dogma a integração das artes”, explica Machado. “Isso levou a que os projetos fossem concebidos para receber obras de arte integradas ou complementares de seus espaços.”
Exemplos notáveis são os painéis feitos por Portinari na Igreja da Pampulha, em Belo Horizonte, projetada por Oscar Niemeyer (1907-2012) e os azulejos de sua autoria no prédio do Ministério da Educação e Saúde, no Rio, concebido pela equipe do arquiteto Lúcio Costa (1902-1998), que incluía o próprio Niemeyer.
“O único caso de mural com formas geométricas desenhado por Portinari, um mosaico de pastilhas de vidro, com 250 metros quadrados, está na Galeria Califórnia, em São Paulo”, cita o arquiteto, lembrando do edifício projetado por Niemeyer e Carlos Lemos.
Perto de onde nasceu, em Batatais, há um conjunto impressionante de Portinari: 14 murais em alusão à via-sacra. “Essas obras não podem sair do Santuário do Senhor Bom Jesus da Cana Verde, por determinação do termo de doação, registrado em cartório, elaborado por Portinari”, conta o arquiteto Machado.
É o escritório dele que está elaborando o projeto de restauração do santuário. De acordo com o arquiteto, um dos objetivos principais será “proporcionar condições ambientais de conservação da obra pictórica”. A via-sacra é tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
Influência na arte contemporânea
“A mensagem passada pelas obras de Portinari é atemporal porque estas apresentam temas humanos e universais como vida, morte, alegria, tristeza, infância ou nostalgia, além de sua concepção da arte como um agente de transformação social e de criação de uma consciência nacional”, define Iabutti.
Professora na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), a comunicadora visual e designer Vera Zunino ressalta que a obra de Portinari segue significativa e usa como exemplo Guerra e Paz. “O artista descreve os horrores das guerras, a desumanidade e violência, enquanto envolve em cores alegres e traços fortes a paz”, comenta. “A mensagem desses painéis, infelizmente, é bastante atual.”
A professora salienta que o artista deixa de legado às novas gerações uma refelxão sobre “diversidade social, com representação única”.
Nas artes contemporâneas, a influência de Portinari segue presente. Para estudiosos, principalmente na arte de rua, onde os grandes murais são praxe. “Comparar épocas e gerações é desafiador, mas é notável observar que artistas contemporâneos, como [os grafiteiros e muralistas] Kobra e Mundano, também buscam, de maneira atual, representar os sentimentos coletivos e abordar questões sociais prementes”, comenta Amaro. “Assim como Portinari, esses artistas contemporâneos utilizam a arte como uma forma de diálogo com a sociedade, ampliando as fronteiras da expressão artística e provocando reflexões sobre o mundo ao nosso redor.”
Para Iabutti, seu “fazer artístico” teve continuidade com artistas como Claudio Tozzi, Maurício Nogueira Lima (1930-1999), Tomie Ohtake (1913-2015) e, “hoje, é representado em obras de pintores ‘de rua’, como Kobra e Os Gemeos”.
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